quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

ÉTICA NO DESPORTO - A Gestão do Desporto, segundo Gustavo Pires


Manuel Sérgio
George Steiner, no seu conhecido livro sobre Heidegger, concluiu que “precisamos de dar mais assistência ao pensamento”. Podíamos parafrasear Steiner, neste passo, e escrever: no Desporto é preciso dar mais assistência ao pensamento. E em que sentido? Para o vermos mais lúcido e sensato. Com “vontade de descoberta” e “vontade de consciência” (servindo-me das palavras de Malraux), é preciso fazer um desporto diferente, fiel ao legado ímpar que lhe tocou, proveniente, entre outros de menor relevância, de Pierre de Coubertin. E afinal de todas as consciências críticas, que procuram a raiz da dimensão humana, numa perspectiva cultural, afirmativa e criadora. Gustavo Pires, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana, é hoje, em Portugal, um cientista social e simultaneamente uma consciência crítica.


Num ponto havemos todos de convir: é o nosso primeiro especialista em Gestão do Desporto, disciplina que ergueu do nada, perante a indiferença letárgica ou a incapacidade de crer e afirmar de um ambienta adverso. Por outro lado, trata-se de um escritor que, aliando a ciência à cultura, tenta libertar-se (e libertar), com corajoso desembaraço, da cachoeira lodosa que é, grosso modo (e sem esquecer as inevitáveis excepções), o dirigismo desportivo português. No seu livro Gestão do Desporto – desenvolvimento organizacional, edição da APOGESD e do Forum Olímpico de Portugal, ele escreve: “O desporto mudou. Já não é o que era. Contudo, se o desporto mudou, os responsáveis pelo vértice estratégico do Movimento Desportivo não mudaram. Acomodaram-se aos lugares que acumulam e perpetuam-se, neles, anos a fio, em prejuízo das novas gerações”. (p. 338). Quando se escuta a linguagem da esmagadora maioria dos nossos dirigentes, logo se infere que são incapazes de qualquer lucidez investigativa e sondeadora dos grandes problemas desportivos. Não se esconde o amor clubista de praticamente todos eles. Mas dão-nos a sensação, através da sua prática (e da sua linguagem) que ainda vivemos o desporto da década de 50. 
Ora, Gustavo Pires descobre, numa correta definição de Desporto, componentes lúdicas, componentes agonísticas, componentes do movimento, componentes institucionais, componentes do projecto. E acrescenta, a este propósito: “ Uma ideia de projecto é de fundamental interesse, para uma definição de desporto, sob pena de o próprio desporto se transformar num instrumento de alienação de massas”(p. 125). Está bem à vista de toda a gente que, se não alienam as massas, estes dirigentes também não sabem fazer mais nada. Gustavo Pires exacerba, por vezes, o tom das suas críticas de verdadeiro “expert”. E há quem, recolhido na caverna platónica, apareça à luz do dia, afirmando que o Gustavo Pires injuria e ofende. De facto, o Gustavo Pires não injuria, nem ofende – ele incomoda!
Gustavo Pires
E incomoda porquê? Porque ele sabe, como poucos, que a problemática do desenvolvimento do desporto se coloca, com premência, dado que “subsistem populações com enormes carências, para as quais a justiça distributiva, em matéria de acesso à prática desportiva, ainda não lhes chegou, ou ainda não é suficiente. Por isso, o desporto, na sociedade moderna, deve ser considerado como um instrumento de políticas públicas, implementadas para melhorar a qualidade de vida das populações, sobretudo das mais desfavorecidas”(p.321). E quantos são os dirigentes desportivos que pretendem fazer do desporto um fator de desenvolvimento? Quantos são os que aceitam de boa mente que o dirigismo desportivo, hoje, exige especialização universitária, cultura desportiva e não tanto uma diligente “carolice” e um verbo empalhado, incolor e banal? Não esqueço que convivi com alguns dos pioneiros do desporto português e é evidente, para mim, que sem amor o desporto não acontece.
Recordo, entre outras comovedoras lembranças, o engenheiro Vasco Pinto de Magalhães, ainda na década de oitenta (e com os seus setenta e muitos anos), orientando treinos de râguebi, no Estádio Universitário de Lisboa. Só que, em 2015, a Gestão do Desporto é um dos aspetos em que o Desporto se desentranha e desdobra e a Gestão se enriquece e se questiona. E assim já não basta a “carolice”, a devoção acrisolada, para o dirigente desportivo. É preciso bem mais e melhor – afinal, tudo o que o Doutor Gustavo Pires ensina, no seu livro Gestão do Desporto – desenvolvimento organizacional. 
Tenho pena que a nossa republiqueta desportiva, aqui e além abrangida pelas certeiras frechadas com que ele a fulmina, não seja capaz de um exame de consciência, à luz das observações justas, fundamentadas de Gustavo Pires. Verberá-lo por uma crítica mais ou menos apressada, bem é (poder-se-á fazer o mesmo, em relação a mim próprio), conquanto se tenha presente, neste caso, donde a crítica parte: do mais qualificado e prestigiado especialista português em Gestão do Desporto. Merecer a crítica de alguém que alcançou o fastígio da sua carreira de cientista social e que almeja tão-só o progresso do desporto, parece-me honroso e motivo de reflexão. Há muitos homens superiores cuja aura pública conduziu a um autocentrismo exagerado e que fazem da sua pessoa a sua ocupação principal. Gustavo Pires, ao invés, luta por um desporto novo, como universitário distinto e como escritor; não se refugia num cómodo desdém – é um especialista que acredita no que faz e descobriu, precisamente no que faz, um poderoso fator de desenvolvimento. 
Quem lhe negará uma postura ética, para além de científica? Mas voltemos ao livro de que nos ocupamos: “De há cerca de vinte anos a esta parte, através da indústria do lazer, o desporto entrou naquilo a que podemos designar como a era económica. De facto, se o desporto dantes era um sistema integrador de uma cadeia vertical de valores sociais, hoje, cada vez mais, é um sistema integrador de uma cadeia vertical de valores económicos. Em conformidade, a concepção do posto de trabalho, nos mais diversos ambientes que caracterizam as práticas desportivas, está num processo de transformação acelerada, que acabará por definir o gestor do desporto do futuro e as suas especialidades”(p. 166). Gustavo Pires culto, pimpante, fresco, olhar aceso é, hoje, um dos mais sábios e tenazes críticos desportivos portugueses. E que ninguém pode cominar de qualquer indignidade, isto é, não pratica a baixeza da crítica pela crítica, nem a traição das ideias por subserviência ao Ter e ao Poder. A sua impermeabilidade ao oportunismo de todos os matizes significa, acima do mais, que vive o que a sua alma esclarecida lhe dita. 
No livro de Guillem Turró Ortega, El valor de superarse – deporte y humanismo (Editorial Proteus, 2013) pode ler-se: “la ideologia actualmente preponderante convierte el deporte en una actividade en la cual lo único importante es el resultado, donde la alternativa entre el éxito y el fracasso queda extraordinariamente polarizada. El deporte triunfa en una sociedad individualista e hipercompetitiva en la cual lo que más cuenta es ganar” (p. 125). Anos antes (1999), no meu livro, Algumas Teses sobre o Desporto (Nova Vega, 2014, 1 º edição, 1995) já eu escrevi: “Os clubes de maior nomeada funcionam hoje como instrumentos de conservação do poder, por parte de grupos de interesses, arredando os sócios das magnas decisões sobre a coisa desportiva. Daí, o seu carácter indiscutivelmente oligárquico. Escasseiam os combativos militantes de uma cultura desportiva, que seja cultura, isto é, humanização progressiva do Homem, da Sociedade e da História. Só como prática humanizante, movimento em direção à transcendência, o Desporto é salutar. Um desporto, físico tão-só, não é salutar, porque o Homem é corpo-alma.desejo-natureza-sociedade. Não há saúde, se à componente empírica do anátomo-fisiológico não se acrescentam outras componentes, elementos do mesmo todo (…). Enquanto o Desporto for tão-só físico, o clubismo continuará um fortim de conservadorismo e de absentismo, renitente a um clima de convivência e de tolerância. Enquanto o Desporto for tão-só físico, os clubes continuarão sacrificados à voragem do monólogo agressivo. Porque o físico, por si só, não fala uma linguagem universal de libertação” (p. 14).
Tudo isto, o Doutor Gustavo Pires sabe e defende nos seus livros, designadamente através da Gestão do Desporto, disciplina que ele criou em Portugal, com carácter científico e universitário, sem favor, notável! Orgulho-me do muito que aprendi; lastimo o pouco que ensinei, no INEF, no ISEF e na Faculdade de Motricidade Humana. O ensino não é mera informação do saber, mas sobre o mais exemplo de trabalho sério, testemunho de vida. Uma Escola que só se distinguisse pelo ensino de informações teóricas, não poderia traduzir, em diferentes registos, a experiência do encontro fraterno entre pessoas. Presunçosos auto-suficientes, invejosos, egocêntricos, sempre os encontraremos, ao longo do tempo. Mas também por lá encontrei, a iluminar-me o caminho de estudioso e de professor, alguns companheiros de jornada. Mas com sapiência ex cathedra, logo humanizada em solidário convívio, ninguém como o Gustavo Pires. Pertencemos ele e eu, o Carlos Neto, o Vítor da Fonseca, o Francisco Sobral, o Jorge Crespo, a Maria Luísa Melo Barreiros, o António Paula Brito, o Francisco Madeira, o Armando Moreno, o Francisco Carreiro da Costa e mais alguns, liderados pelo Henrique de Melo Barreiros – pertencemos, dizia eu, a uma geração de pioneiros que anunciou um modo diferente de teorizar e praticar o desporto, contra a multiplicação passional dos passadistas que a esclerose, por vezes, obnubilava. Mas este é assunto para outro dia… 
NOTA
Artigo de Manuel Sérgio, Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

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