quarta-feira, 28 de novembro de 2018

ESCOLA ENCURRALADA


Um artigo de
Vera Gouveia Barros
24 Novembro 2018

A autonomia deveria permitir às escolas seleccionar aqueles docentes cujas características, qualidades e experiência melhor se adequassem ao seu projeto educativo.

No meu penúltimo artigo, deixei a promessa de, em texto futuro, me debruçar sobre a reforma do funcionamento das escolas. Ora, há uns dias, deparei-me com um artigo de Bárbara Reis sobre o professor Joaquim Sousa. O nome provavelmente não será reconhecido. É natural. O professor Joaquim Sousa era “apenas” o director da Escola Básica do Curral das Freiras, o estabelecimento de ensino que, em 2010, ocupava o 1209º lugar do ranking, para, em 2017, ter ficado em 275º e 318º lugar, respectivamente, nos exames do 9º ano de Português e de Matemática.
O número 8 da revista “XXI Ter Opinião”, devotado ao tema da igualdade, dedicou um artigo a este caso de sucesso. Nele, Joaquim Sousa explica o que fez: na avaliação, o conhecimento da matéria passou a valer 90%, quando antes representava 60% (vindo os restantes 40% do comportamento, da assiduidade, da participação); eliminou o toque de campainha; os alunos tinham menos uma hora livre que nas demais escolas e os horários foram conciliados com o dos autocarros; desapareceram os trabalhos de casa, mas reforçaram-se os apoios nas disciplinas nucleares.

É esta a receita para o êxito? Resultou no Curral das Freiras, local isolado, com uma orografia pouco amistosa, uma das freguesias mais pobres da Madeira, onde a grande maioria dos alunos aufere Acção Social Escolar e tem pais com reduzida escolaridade. Mas não é uma fórmula de aplicação universal. Num meio diferente, com um contexto sócio-económico distinto, os resultados provavelmente seriam outros. E, por isso, as escolas precisam de autonomia.

Em Portugal, as escolas gozam de um regime de autonomia desde 1989. Teoricamente, pelo menos. O Decreto-Lei n.º 43/89 veio instituí-lo. No seu preâmbulo pode ler-se que “entre os factores de mudança da administração educacional inclui-se, como factor preponderante, o reforço da autonomia da escola”. Já o Decreto-Lei n.º 115-A/98 começa com a frase “A autonomia das escolas e a descentralização constituem aspectos fundamentais de uma nova organização da educação”, ideia que vamos reencontrar, sob outra formulação, no Decreto-Lei n.º 75/2008.
Na prática, passados quase 30 anos e três diplomas, Portugal continua a ter um sistema de ensino muito centralizado, em que é o Estado a tomar três quartos das decisões que afectam as escolas. Quem o diz é a OCDE, no Education at Glance 2018, documento que, na comunicação social, foi destacado por afirmar que os professores portugueses eram mais bem pagos que outros profissionais com o mesmo nível de qualificações.
E não creio que o Decreto-Lei n.º 55/2018, aprovado em Julho passado, venha operar uma verdadeira reforma neste domínio. Estendendo a todos os estabelecimentos de ensino o Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (implementado como experiência-piloto em 2017/18), deu às escolas o poder de, nomeadamente, gerir até 25% da carga horária do currículo escolar, desdobrar turmas, organizar o funcionamento das disciplinas (por exemplo, anuais ou semestrais), combiná-las e adoptar uma perspectiva multidisciplinar.
Pode ser pessimismo meu, mas entendo que a autonomia das escolas fica esvaziada se estas não tiverem capacidade para gerir os seus recursos humanos, a começar logo pela sua escolha. No oitavo episódio do programa Fronteiras XXI, intitulado “De Que Escola Precisamos?”, Joaquim Sousa não deixou de referir a dificuldade que a constante mudança de corpo docente lhe trouxe enquanto director da EB123 com Pré-Escolar do Curral das Freiras.
Uma instabilidade que afecta igualmente os professores, que estão constantemente a mudar de escola, sendo colocados ora no Algarve ora no Minho. Vendo as coisas por esse prisma, talvez não seja, afinal, uma profissão assim tão bem remunerada. E já se percebe que seja tão pouco cativante.
Mas o pior são as externalidades negativas decorrentes dessa falta de vínculo para a própria qualidade da Educação. Uma pessoa que não se identifica com a orientação educativa do estabelecimento de ensino que lhe calhou no concurso nacional de professores, que não se revê nos seus princípios, nos seus valores, nas estratégias adoptadas, dificilmente será um profissional totalmente comprometido e empenhado.
Parece-me, pois, que seria importante mudar a forma de contratação dos professores. A autonomia deveria permitir às escolas seleccionar aqueles docentes cujas características, qualidades e experiência melhor se adequassem ao seu projecto educativo, como, de resto, acontece com quase todas as organizações, incluindo da Administração Pública. E, claro, exemplos de dedicação como o de Joaquim Sousa devem ser enaltecidos e incentivados, devidamente reconhecidos.
Estranhamente, a Secretaria da Educação decidiu integrar a escola do Curral das Freiras na escola básica de Santo António, no Funchal. Retirou-lhe a autonomia que lhe permitiu transformar-se num caso de sucesso nacional e afastou o seu director, recentemente reeleito.
“São miúdos, iguais aos outros miúdos, e têm direito a ter os mesmos sonhos.”: era isto que dizia Joaquim Sousa a quem chegava para ensinar na escola do Curral das Freiras. Aparentemente, ele é que não tinha direito ao seu sonho de mostrar que “a escola é, por definição, um elevador social”.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
Publicado neste endereço
https://eco.pt/opiniao/escola-encurralada/?fbclid=IwAR3HFtDtiqyVVi8ecBvBI37gmpiux0JkvC7Waz1oyXqd-0KF7EtNmB5q_IA

terça-feira, 27 de novembro de 2018

FLEXIBILIDADE: HÁ QUEM ANDE AOS PAPÉIS* POLITICAMENTE SEM RUMO


O Professor Hélder Lopes (Universidade da Madeira) assina, na edição de hoje do DN-Madeira, um artigo de opinião que titulou por "Flexibilidade". Li e considero, mais do que uma chamada de atenção, um tiro no centro do alvo. Deixo aqui um excerto.


"(...) Obviamente que só os mais distraídos (para ser simpático) é que acreditam que o dito insucesso em algumas disciplinas se resolve com mais horas. Talvez estejam mais interessados em corporativamente valorizar a sua área...
É sobejamente conhecido que o problema é mais amplo e radica fundamentalmente no facto do sistema educativo ainda manter a matriz do século do XIX... No fundo um sistema (do básico ao universitário) avesso a processos dinâmicos.
O que não deixa de ser surpreendente (ou talvez não) é que ao nível do discurso ainda temos o descaramento de reconhecer e apregoar que o mundo mudou e continua a mudar de forma acelerada, mas ao mesmo tempo continuamos a dizer que no nosso tempo é que era bom ... pelo menos no que concerne ao ensino... em que é que ficamos?
Não nos devemos esquecer, tal como noutras alturas alertámos que, neste tipo de problemática em termos profissionais, não conhecer as alternativas que existem ao que está instituído é demonstrativo da mais elementar ignorância. Que conhecer alternativas que sejam viáveis e mais adequadas aos objetivos visados e não as saber implementar se trata de incompetência. Que conhecer alternativas viáveis, saber implementá-las e não o fazer é muito provavelmente um indicador de desonestidade... (...)"
Ilustração: Google Imagens.
* "não conseguir resolver um problema ou encontrar solução para ele".

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"AMBIENTES INOVADORES DE APRENDIZAGEM"


Julgo que para qualquer professor, sensibilizado para as grandes questões da Educação, a paciência esgota-se sempre que o governo da Madeira aborda este sector. Ontem, li um texto que me fez situar na meia-noite de 31 de Dezembro: o fogo que ilumina o anfiteatro do Funchal e que logo se apaga, continuando tudo na mesma, apesar dos bem intencionados votos. O secretário resolveu fazer mais um disparo, através de uma iniciativa denominada por "Ambientes Inovadores de Aprendizagem". Sublinhou coisinhas que todos dominam: os alunos "já nascem com a tecnologia, pertencem à população digital e terão trabalhos altamente tecnológicos (...) temos de "prepará-los para esses desafios profissionais" (...) "muito diferentes dos padrões a que estávamos habituados". Só não falou do projecto que implicará colocar tudo em causa... simplesmente, porque não existe projecto.

Esta parte essencial da sua intervenção na Escola Secundária Jaime Moniz é desesperante. É mais um tirinho, quando o sector da Educação não subsiste com paleio pontual, em um constante faz-que-anda-mas-não-anda. Decididamente, tenha o governante consciência disto, o problema não está em dotar as escolas de algumas centenas de computadores, para substituir muitos velhíssimos e outros inoperacionais. Tampouco o sistema não se altera apenas por falar de robótica. O problema está, fundamentalmente, na criação de um PROJECTO global para a Região e não em decisões e acções meramente pontuais, desfazadas desse tal "ambiente inovador de aprendizagem". Esse projecto global não existe. Se existisse, há muito que seria tema de debate político e público, para não falar da ânsia de "mostrar serviço". Não existe pensamento político sobre esta matéria e a prova está, passados três anos de mandato (fora os outros) é a rotina, a crescente privatização do sector e o controlo absoluto sobre as escolas e os professores que dominam. Não existe, repito, qualquer "projecto inovador". Aliás, em um à parte, só seria "inovador" se nunca tivesse sido realizado antes, o que não é verdade. Existem projectos em muitos países, relatórios, dissertações e posições muito claras oriundas de vários autores, pensadores e instituições. Portanto, na lógica da Alice na "Região das Maravilhas", quando não se sabe para onde se caminha, qualquer caminho serve. É o que, desde há muito, acontece. Daí ter falado, também, das "salas de aula do futuro". Tratou-se de um outro tirinho porque, a propósito, seria importante conhecer se os projectos dos novos estabelecimentos do Porto Santo e da Ribeira Brava tiveram em conta a arquitectura das tais "salas de aula do futuro". Adiante.
Li, vai para dois anos, uma importante entrevista a Pepe Menéndez, diretor adjunto da Fundació Jesuïtes Educació, da Catalunha. Entre muitas outras, arquivei-a e dela já me socorri algumas vezes. Tenham os leitores em consideração esta parte que aqui deixo, apenas a título de exemplo (existem muitos outros):

"(...) O provincial dos jesuítas pediu-nos há sete anos que fizéssemos a Ratio Studiorum do século XXI: se os jesuítas foram o motor de um modelo educativo, então agora mudem-no em profundidade. Pareceu-nos um desafio muito motivador. Pode parecer um pouco naïf, mas o modelo é mudar o olhar. Em vez de ver as coisas de perto, abrir os olhos e tentar ver o que no século XXI pode fazer crescer uma pessoa num ambiente de globalização, tecnologia, com tanta incerteza. O filósofo [Zygmunt] Bauman fala de um mundo líquido. Neste contexto, como posso ligar-me ao coração dos alunos, à sua motivação?

Como chegaram a este modelo e porquê escolher este e não outro?

É uma tradição dos jesuítas. O nosso delegado mundial de educação disse: nós vamos ao supermercado da pedagogia, apanhamos o que nos agrada e com isso fazemos um modelo. O nosso modelo é sincrético. A Ratio Studiorum já foi assim, um pouco daqui, um pouco dali. Fomos conhecendo modelos diferentes, vimos escolas e fomos agarrando o que nos agradou. Fomos construindo um puzzle, mas as peças têm de encaixar, não podem ser...

... incompatíveis?

Exato. Aplicamos uma parte da [Teoria] das Inteligências Múltiplas (Howard Gardner, 1985, Harvard), uma parte da aprendizagem baseada em problemas, uma parte do trabalho colaborativo, e fazemos um ecossistema. O nosso modelo baseia-se muito no trabalho interdisciplinar por projetos.

Como escolhem os projetos?

Primeiro houve uma fase de pegar na tesoura e no currículo e começar a cortar. O currículo é excessivo, demasiado grande, mas não podes perder os elementos essenciais, tens de garantir que o aluno os aprende. Juntámos um grupo de professores e dissemos: têm de estabelecer prioridades nos conteúdos do currículo. Esse trabalho durou dois anos. Não foram dois meses, foram dois anos. Porque começam a priorizar e só cortam uma parte, e é preciso reduzir mais. O mais importante é garantir que os alunos aprendem os conteúdos. Precisamos de mais tempo, porque precisamos de uma metodologia muito mais construtivista. (...)"

Exemplo de uma antiga sala face aos novos espaços.
Sublinho, levaram alguns anos para dar forma a um novo paradigma, no quadro de uma educação transformadora. Reflectiram, escutaram, visitaram e produziram um novo paradigma de aprendizagem. "Nas actividades propostas, o grupo foi incitado a refletir sobre três questões fundamentais: que escola queremos? Que futuro desejamos? Como deve ser a escola em 2020? (...) Ao todo, foram apresentadas 56 mil ideias. Dessas, 17 propostas foram selecionadas para servir de base para a formulação do modelo sincrético (...)". Deitaram abaixo paredes de salas tradicionais, transformando-as em espaços de conhecimento através de projectos conjuntos, eliminaram a ideia de disciplinas separadas, testes, horários e trabalhos de casa. Tiveram a coragem de "romper com a ideia tradicional de que o professor dá o ensinamento. Definiram que, agora, ele é companheiro e o aluno é protagonista da aprendizagem". 
E assim, "(...) no que sobra do horário, há projectos para concretizar. Os alunos conhecem os objectivos, sejam semanais ou mensais. Eles sabem onde têm de chegar, mas cada um é livre de escolher o caminho para chegar à meta. Esta é a mais-valia deste modelo", defende Jordi López. Daqui se conclui que a definição de um novo paradigma leva, seguramente, alguns anos e, naturalmente, muito investimento desde a transformação dos espaços de aprendizagem até à própria mentalidade vigente. O grande trabalho na Educação é para o aluno, jamais deve ter os governantes como protagonistas. 
Depois, do que li, emerge um outro erro, quanto a mim grave porque desadequado, o de querer controlar tudo até o processo de formação. Li a preocupação de formar "(...) professores para que se familiarizem com este conceito e possam ajudar os alunos" (...) isto é, há que "saber como funcionar, como actuar com essa componente que não fez parte da nossa experiência enquanto estudantes, para nos enquadrarmos, usufruirmos e tirarmos o máximo proveito das tecnologias". Ficou-me claro que, uma vez mais, o processo não nasce de baixo para cima, mas ao contrário. Simplesmente porque os cordelinhos têm de estar nas mãos do governante. Melhor seria que descentralizassem e deixassem os professores organizarem a sua escola. Porque eles não são mentecaptos, uma esmagadora maioria sabe o que quer, apenas está amarrada à portaria, à circular, ao despacho, a uma intencional parafernália burocrática limitadora de qualquer projecto proveniente do debate interno. Amarrada, também, à ausência de investimento. O resto, convenhamos, está tudo ou quase tudo em qualquer motor de busca da Internet e no youtube. Mas é esta mania do medo da descentralização (eles não são capazes sozinhos) que prevalece, cujo exemplo mais recente ficou demonstrado na fusão da Escola do Curral das Freiras, quando esta apenas desejava fazer diferente. E fez! Porém, em vez de potenciarem, destruíram-na! Em vez de a utilizarem como experiência piloto, bloquearam a sua autonomia pedagógica.
Finalmente, do tanto que me fica por escrever (não faltarão oportunidades) se eu estivesse no activo, há muito que tinha, cara-a-cara, perguntado ao secretário: diga-me lá para onde deseja seguir e que plano tem para lá chegar?
Ilustração: Google Imagens.

Nota
Esta pergunta fez-me agora lembrar um almoço que tive com uns generais e brigadeiros da Força Aérea. Um deles contou que, um dia, tinha estado em um jantar muito bem regado. De lá saiu muito confuso. O soldado motorista abriu-lhe a porta do "mercedes benz". Depois, perguntou-lhe: meu General para onde deseja que o leve? E o General respondeu-lhe: "segue a estrela".
Assim está a Educação. 

Texto publicado no blogue:
www.gnose.eu

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

TODOS JUNTOS POR UM SISTEMA "BY THE BOOK"


Tenho muita dificuldade em decifrar as intervenções políticas do secretário da Educação do governo regional da Madeira. Normalmente fala, eu diria, sem nexo causal, com ausência de noção do que realmente deve ser o sistema educativo. No seu discurso utiliza uma mescla de palavras que ficam a meio caminho, com contradições e das quais nada resulta. Voltou a acontecer no quadro de um encontro sobre "Partilha de boas práticas em autoavaliação de escolas". No cumprimento desse número político, o secretário considerou que as boas práticas são "um fator de grande economia porque, se elas são boas, à partida, se as fizermos, estaremos a fazê-las bem", aproveitando experiências anteriores com vista á melhoria do sistema. - Fonte JM.


E fez questão de sublinhar o que o Governo Regional pretende: "que acima de tudo a Região possa ter um contexto favorável para o ensino e para a aprendizagem. Isso só será possível se nós estivermos todos envolvidos, se caminharmos todos com os mesmos incentivos e imperativos, mas, acima de tudo, se conhecermos bem a nossa realidade". Vou por partes, embora de forma muito breve.
Perante estas declarações coloco, desde logo, a pergunta: o que são "boas práticas" no sistema educativo? Ora, se o sistema, genericamente, mantém-se inalterável, porque não existe uma única ideia inovadora, logo, se as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, as tais "boas práticas" não passam de um discurso vazio de significado no quadro do sucesso da aprendizagem. Complementarmente, o que são "boas práticas" quando não existem dois estabelecimentos de aprendizagem iguais, dois públicos iguais, duas populações iguais, dois núcleos de professores iguais? Sendo assim, parece-me óbvio, que as tais "boas práticas" são uma mistificação, pelo que não são nem devem ser generalizadas. Se entrarem será pela pancada do martelo com a subserviência dos órgãos dos estabelecimentos! 
Primeira conclusão: existe naquele discurso um erro grosseiro de avaliação de processo, quando ignora a autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem, a dinâmica pedagógica que deverá nascer da sua específica comunidade educativa e um indisfarçável desejo de querer generalizar o que, nem em teoria, é defensável. É a política do "acho que...". Aliás, a língua do governante acabou por traí-lo quando sublinhou a ideia de "caminharmos todos com os mesmos incentivos e imperativos". (imperativo significa autoritário, arrogante, prepotente e expressa uma ordem).  Em síntese, todos juntos por um sistema "by the book". 
Mas existe uma segunda conclusão: o problema da centralização dos processos (um princípio da Sociedade Industrial), isto é, a defesa subliminar da teoria que desemboca em um princípio político: por razões várias, como não devo impôr, associo-me, faço de conta, generalizo, mas sempre com os cordelinhos na mão. Cai, assim, por terra a declaração que li: "(...) só através de um projeto educativo que corresponda aos diferentes contextos, poderemos atingir efetivamente o percurso de sucesso". Ora, esta frase é a contradição do que antes tinha afirmado, isto é, por um lado, manifestou o desejo em difundir as "boas práticas", generalizando-as, por outro, porque fica bem no plano político, dissertou sobre o respeito pelos "diferentes contextos". Em que ficamos? A plateia deve ter-se apercebido, porque é óbvio que não se pode generalizar e ao mesmo tempo falar de diferentes contextos. 
Finalmente, o governante ainda não entendeu (ou já percebeu mas não quer), que, para que o sucesso aconteça, necessário se tornará alterar, substancialmente, as traves-mestras do sistema, através de um novo paradigma que respeite a autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem (organização diferenciada), o que implica fugir ao permanente desejo de controlar e esmagar tudo e todos. Isto passa por entusiasmar as direcções e todo o quadro docente no sentido de sonharem e criarem a escola que corresponda à actualidade do conhecimento, passa pela vivificação da formação que as mudanças implicam, passa pela desburocratização da função docente, passa pelos meios necessários à implementação dos projectos de cada escola e passa pela ideia maior que "não é a criança que tem de se adaptar à escola, mas a escola que tem de se adaptar a cada  criança" - ver filme de Pierre François Didek, Sonhar o Futuro - A Escola do Futuro/RTP2.
  Ah, e passa, também, por fazer um trabalho sério, a montante do sistema educativo, nas famílias e na sociedade em geral. Porque a escola recebe todas as assimetrias sociais, económicas e culturais.  
Tudo o resto é fantasia, é discurso político pobre e inconsequente, é marcar a agenda mesmo que a imagem que fique seja a de um sistema "engatado em marcha-atrás".
Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Que sociedade queremos, que escola precisamos?


A Escola do Curral das Freiras continua a dar que falar. A perseguição ao Professor Joaquim José Sousa, agora, foi "premium" no Observador. 

A escola não é a sociedade mas confunde-se com esta e deve ser um lugar onde se aprenda a produzir, onde se aprenda pelo trabalho e não simplesmente o lugar onde se aprende para um dia ter um trabalho. Ao decidir acabar com um projeto educativo de sucesso como o foi a EB123/PE do Curral das Freiras, o governo regional da Madeira decidiu que a inovação e a modernidade não são o caminho escolhido. Sem explicar os motivos da extinção, mas quem acompanhou o processo sabe quais são as verdadeiras intenções. O governo regional descredibilizou a escola pública, tornando-a dispensável, pois é demasiado cara, tem problemas insanáveis e por vezes pessoas incontroláveis, numa clara estratégia de tentar desmerecer o seu papel social e desvalorizar a sua missão.

Custo de oportunidade é um conceito económico que significa, grosso modo, aquilo que estamos a abdicar para ter aquilo que temos agora. Digo-vos, um sistema educativo aquém das suas inúmeras potencialidades tem um custo de oportunidade elevadíssimo. Perdemos muito por não oferecer ferramentas de sucesso aos alunos, perdemos por não fazer os alunos acreditarem no seu talento e perdemos por não superar as mentalidades que não escapam ao local, ou seja, que não são capazes de tirar pleno proveito de um mundo tecnológico, digital e globalizado. Por outro lado, uma mentalidade chauvinista e revanchista nos lugares de topo cria custos invisíveis que vão desde o stress ao burnout. Tenho uma profunda preocupação com o nosso futuro coletivo e pela nossa crónica dificuldade de criar capital social, do modo como sistematicamente dificultamos o sucesso do talento “sem pedigree” na Região Autónoma da Madeira (RAM).
Afirmam diferentes especialistas que “as hipóteses de os jovens terem uma carreira de sucesso dependem fortemente das suas origens socioeconómicas e do capital humano dos pais”. Diz a Constituição da República que o Estado deve garantir a existência de uma rede pública de estabelecimentos de ensino livre e de qualidade, que sirva as necessidades e os interesses das populações, assegurando a igualdade de oportunidades e o progresso social, sem exclusões. O atual sistema de ensino não potencia a existência da escola enquanto elevador social. Urge reativá-lo para que não continuemos a perder gerações.
Existem muitos professores na RAM que são verdadeiramente excecionais, muitos são cultos e têm um profundo e sistemático conhecimento das matérias que lecionam. Porque será que este talento não se traduz em resultados objetivos como os testes PISA e outros indicadores de sucesso educativo demonstram? Porque será que estamos distantes de colocar sistematicamente alunos nas faculdades de topo do país e da Europa? Podem sugerir sardonicamente que estou a ser demasiado ambicioso, mas confesso que gostava de ver mais madeirenses nas melhores universidades do continente europeu, confesso que gostaria de ver a nossa região como um exemplo de excelência não só no âmbito nacional como internacional. É ambicioso, é verdade, mas esta ambição não é vã, prende-se exclusivamente com os alunos que já encontrei. Temos uma juventude de talento. Muitos acreditam que a nossa juventude perdeu valores face aos seus progenitores, não acredito nisso. Vejo que muitos alunos têm enormes dificuldades em singrar, aliás, vejo que a minha geração teve muito mais oportunidades que as gerações atuais. Também no campo da esperança, a minha geração foi muito mais favorecida.
Os tempos mudaram, da massificação que abriu portas numa administração em mudança e sedenta de quadros com formação superior, chegámos a uma sociedade que olha para a educação como um custo e não como investimento. Quando num território isolado e distante como o Curral das Freiras despontou uma escola, indo da creche ao 12º ano com resultados assinaláveis ao nível da formação de excelência e do potenciar de condições de igualdade, como o comprovam o reconhecimento nacional traduzido nos prémios da Fundação Montepio ou o reconhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos e da Associação Corações com Coroa em menos de uma década, estávamos na presença dum balão de esperança num eventual modelo que fazia renascer a ideia da escola enquanto elevador social.
Através dum Projeto Educativo que se baseava (1) no profundo conhecimento do aluno de modo a poder intervir sobre os seus constrangimentos de partida; (2) na aquisição pelo aluno de confiança pessoal e social; (3) na aquisição efetiva de competências académicas e sociais. Estando o mesmo orientado para proporcionar aos alunos condições de Equidade – respeitando a identidade de cada um e potenciando as suas competências de trabalho e de excelência, no ensino regular ou profissional; Igualdade – apoiar – recuperar – potenciar, cada jovem que abandona a escola sem completar a escolaridade é uma perda tremenda para a região e para o país de potencial humano e poder económico (o futuro em educação constrói-se, não se adia); Individualidade – cada aluno tem a sua identidade própria, diferente de todos os outros e era com ele elaborado o seu projeto de vida académico com realismo, de modo a promover a excelência académica e de prevenir o abandono escolar; Acesso às artes e ao desporto – o desenvolvimento harmonioso depende do desenvolvimento do corpo, da sua integração no espaço, da perceção do belo; Sentimento de pertença – todos os elementos desde o porteiro ao presidente do conselho Pedagógico são fundamentais para a formação académica e social dos alunos; Desenvolvimento do cidadão reflexivo – de modo a criarmos cidadãos participativos, críticos e intervenientes nas suas comunidades; Construção do futuro – continuávamos a acompanhar os alunos mesmo depois de saírem da escola, assim como apostámos na formação dos país.
O mundo atual está em permanente transformação, não é sustentável que a escola mantenha o mesmo paradigma, urge iniciar um novo ciclo pedagógico, curricular e administrativo adaptado aos desígnios dos alunos, tendo por princípio chegar a todos, proporcionando-lhe melhores e mais significativas aprendizagens.
Grandes mudanças avizinham-se no horizonte. Singrar neste mundo novo exige um conjunto de aptidões, conhecimentos e faculdades completamente novas. Será que estamos a disponibilizar estas competências aos alunos? Julgo que estamos muito longe disso e esta situação exige uma mudança rápida de rumo. É preciso reunir novas metas e objetivos no sistema educativo que prepare os alunos para os sinuosos desafios da modernidade, não só para que tenham competências técnicas, mas também que estejam preparados como cidadãos e indivíduos para as dificuldades. Os nossos jovens merecem uma herança social melhor, eles são também a garantia que a região salvaguarda os seus valores culturais, são o seu elo com o mundo. Os nossos jovens serão o futuro da nossa comunidade, da nossa pátria e nós temos o dever de lhes proporcionar todas as condições para que quando chegar o momento deles, eles possam transportar um testemunho geracional de excelência. Não podemos continuar a perder gerações, perante os dados demográficos, cada criança que perdemos é Portugal que fica mais pobre.
Tenho a ambição que no futuro o cenário se altere e os nossos jovens não tenham que partir por falta de oportunidades na sua terra. Urge devolver à escola pública a sua legitimidade, o que passa em meu entender por lhe conferir dimensão ética na sua organização e o gosto pelo ato de aprender e ensinar em si. Com isto quero dizer que os atores educativos deverão retomar a sua posição social de relevo, assente na dignidade e no saber que transportam e que as aprendizagens devem ser significativas e que permitam aos alunos compreender e intervir na sua sociedade e não sejam apenas um acumular de conhecimentos para um qualquer exame que “traga” hipotéticos benefícios futuros.
A escola não é a sociedade, mas confunde-se com esta e deve ser um lugar onde se aprenda a produzir, onde se aprenda pelo trabalho e não simplesmente o lugar onde se aprende para um dia ter um trabalho. O ato de aprender pela repetição de conhecimentos tão comum na escola tradicional parece-me de todo desfasado no tempo. A escola deve sair das suas “amarras” e procurar produzir conhecimento, nem que seja de cariz cultural, como o foi o projeto da Cultura Madeirense desenvolvido na escola do Curral das Freiras e sem razão objetiva, entretanto, extinto.
A evolução da sociedade da informação, tornou imediatos e crus factos outrora diluídos pela distância da informação, os jovens não podem crescer sós num mundo onde a informação e as “fake news” se confundem. O ato de debater a realidade da comunidade, da região do país e do mundo, o ter opinião sobre o ambiente, as intolerâncias, as desigualdades e ou a democracia é o princípio duma cidadania ativa. Acreditando como acredito que a escola forma Homens e Mulheres para e com a sociedade, é para essa mesma sociedade que a escola deve preparar os jovens, pois o tempo não para e não podemos continuar a perder gerações.
São metas ambiciosas, reconheço. Mas o fluxo imparável da modernidade assim o exige.

NOTA
Texto publicado no Observador e que aqui reproduzo pelo seu enorme interesse. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

"Desigualdade à nascença" é a principal ameaça aos direitos das crianças


Da morte à ignorância, passando pela pobreza, quais são as principais ameaças às crianças portuguesas, 59 anos volvidos desde a proclamação da Declaração dos Direitos da Criança, pela Assembleia Geral das Nações Unidas? “A pobreza e a ignorância andam associadas, porque sabemos que o sucesso escolar e o desempenho das crianças não são indiferentes ao meio em que nascem”, responde a demógrafa Maria João Valente Rosa.

Eliminar esta “desigualdade à nascença” das crianças deve surgir no primeiro lugar da lista de prioridades dos decisores políticos em Portugal, país em que “subsistem determinismos sociais que impedem que todas as crianças estejam em iguais circunstâncias na sua trajectória”, defende a também directora do Pordata – portal estatístico da Fundação Francisco Manuel dos Santos. 
“Em Portugal, a pessoa tem mais sorte ou mais azar consoante o sítio e a família em que nasce: os rendimentos e o capital social de que esta dispõe... E não pode ser. A sorte e o azar não podem continuar a ser os determinantes na trajetória das nossas crianças, e nós, enquanto adultos, não podemos permitir que a trajectória de uma criança seja determinada, por exemplo, pelo azar de ter nascido num meio que não valoriza suficientemente a escola”, aponta Maria João Valente Rosa. 


A questão está assim em saber se a escola – principal nivelador social – "está a contribuir como devia para atenuar as desigualdades e se está a fazê-lo à velocidade necessária para que estes determinismos terríveis se apaguem”, acrescenta a directora do Pordata, para concluir que não: “Continuamos a ser muito marcados pelo insucesso escolar e o insucesso não é algo que aconteça por acaso”, acusa, para lembrar, por exemplo, que, em 2017, 13% das crianças e jovens “já não estavam a estudar mas não tinham completado o secundário”. 


Se recuarmos a 2001, a taxa de abandono escolar precoce era de 44,3%. Muito foi feito, portanto. E muito mais há a fazer. “A reincidência no insucesso escolar é muito importante e a retenção é algo que mancha a trajetória escolar. Não defendo que todos tenham de passar de ano, mas é preciso aqui um esforço adicional para que as crianças de meios desfavorecidos ou culturalmente mais frágeis consigam acompanhar o ritmo das crianças vindas de outros meios e que beneficiam de outros suportes e apoios.” 
Por onde começar? “Podemos começar por olhar para a quebra demográfica como uma oportunidade”, responde ainda Valente Rosa. “Se há menos crianças a chegar à escola, porque nascem menos crianças, podemos começar por reduzir o número de alunos por turma, o que poderia fazer uma enorme diferença na atual dificuldade da escola em acompanhar todos os alunos”, sugere. 
Desde há sete anos que as crianças com menos de cinco anos são numericamente inferiores aos idosos com 80 ou mais anos de idade. Atualmente, as crianças e jovens até aos 15 anos de idade representam 14% da população residente, contra os 29% de 1971. Esta diminuição deu-se apesar de a taxa de mortalidade infantil (número de crianças que morre antes de completar um ano de idade) ter diminuído, no que Portugal se tornou, de resto, um exemplo à escala internacional: em 1987 morriam 14,2 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos e 30 anos depois, em 2017, esse número tinha descido para as 2,6 crianças por cada mil nascimentos. 

Não há pediatra a residir em 163 concelhos 

Por outro lado, e apesar da diminuição do número de jovens, e do aumento do número de médicos pediatras, que passaram de 1329 em 2001 para 2085 em 2017, Portugal soma 163 municípios, dos 308 existentes, sem nenhum médico pediatra a residir. “Os dados que obtivemos assentam nos locais de residência e é óbvio que um pediatra pode residir num município e exercer noutro”, ressalva a demógrafa. Para assinalar, porém, que há vários municípios contíguos que têm em comum, além das fronteiras, o facto de não disporem de qualquer pediatra. “No Alentejo, por exemplo, Barrancos, Moura, Mourão, Reguengos de Monsaraz e Portel não têm nenhum pediatra”, exemplifica, apontando também o (mau) exemplo do arquipélago dos Açores, onde Corvo, Flores, Graciosa, São Jorge, Faial e Pico não dispõem igualmente de pediatra. 

Fonte: Público

terça-feira, 20 de novembro de 2018

RECUPERAR A DIMENSÃO POLÍTICA DA EDUCAÇÃO COMO BEM PÚBLICO


Serenamente, sem pressas, mastigando palavras e conceitos, indo à frente e regressando, ando a ler a última edição da notável revista A Página da Educação. Uma revista que todos os professores, todos os políticos, governantes ou não, deveriam assinar para conseguirem, creiam-me, sem qualquer sobranceria, poder ver mais longe. Porque a Educação e, claro, o sistema educativo, não pode quedar-se em um labirinto meramente administrativo, de insustentáveis e enervantes burocracias, de repetições e de ideias pré-concebidas, de rotinas próprias de quem não sabe fazer mais do que aquela tarefa. Como li em um artigo de Miguel Santos Guerra, "no hay connocimiento útil si no nos hace mejores personas". O problema está, portanto, entre a imensa e desarticulada tralha programática e a organização de um sistema que sirva a educação para uma sociedade melhor. Aos poucos e, intencionalmente, quando era expectável o seu reforço no quadro de um paradigma ajustado a um Mundo que corre sem freio, foram roubando pensamento crítico e, hoje, pergunta-se, afinal, qual o papel do conhecimento? Para que serve e ao serviço de quem está, pergunta Miguel Santos Guerra.

Por aqui chego a Susan L. Robertson, Professora de Sociologia da Educação, na Universidade de Bristol: "Em mais do que uma ocasião tenho sentido um claro desconforto em relação ao quanto, hoje em dia, a educação é enquadrada em termos económicos. Os alunos são "capital humano", ou usando a expressão cunhada pelo economista Gary Becker, "máquinas de habilidades"; a educação é um investimento cujo valor é medido pela dimensão do retorno financeiro que traz ao futuro do indivíduo (graduate premium); num número crescente de países a educação é referida como um setor de serviços que contribui, diretamente, para o produto interno bruto (PIB) (...)"
Este início de texto de Susan Robertson trouxe-me ao pensamento um artigo publicado na edição de Outubro de 2000, do Le Monde Diplomatique, artigo assinado por Riccardo Petrella, politólogo e economista italiano, na altura Conselheiro na Comissão Europeia e Professor na Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Falava o autor das cinco armadilhas para a educação e de uma cultura de guerra, a saber:
1. Primeira armadilha: “A crescente instrumentalização da educação ao serviço da formação dos recursos humanos”. Isto é, o recurso humano, habilmente, passou a ser considerado como uma mercadoria económica. Melhor dizendo, direitos a um canto, porque o que interessa é o rendimento do Homem ao serviço da economia.
2. Segunda armadilha: “A passagem da educação do campo do não mercador para o do mercador”. É a educação considerada como um grande mercado. 
3. Terceira armadilha: a educação “apresentada como um instrumento-chave da sobrevivência de cada indivíduo” (...) nesta era de competitividade mundial. No essencial, dir-se-á que a escola está transformada no lugar onde, subtilmente, se aprende uma cultura de guerra.
4. Quarta armadilha: a da “subordinação da educação à tecnologia”. Ora, a mundialização é filha do processo tecnológico pelo que resta à educação fornecer os instrumentos de adaptação ao pensamento único.
5. Quinta armadilha: “a utilização do sistema educativo enquanto meio de legitimação de novas formas de divisão social”, isto é, uma sociedade dividida entre qualificados e não qualificados, entre os que dominam o conhecimento e os excluídos desse acesso. Estamos a falar do “e-comércio”, da “e-educação”, da “e-empresa” e do “e-trabalhador”.

No essencial, Susan L. Robertson, no seu notável artigo, que conjuga o mercado e o Estado, o bem público e o privado, vem desafiar o economicismo, concluindo: "(...) e se desafiássemos o domínio do pensamento económico da educação? E se ousássemos construir um conjunto diferente de assunções baseadas em valores e considerássemos que é um bem societal que contribui para o bem público? Que ações poderiam resultar daí? Primeiro, discutiríamos como sociedade o que pensamos ser importante aprendermos;

em segundo lugar, provavelmente, não usaríamos a terminologia como "capital humano", mas referir-nos-íamos a pessoas, reconhecendo-as não como máquinas de habilidades, mas como seres sociais e morais complexos, com necessidades, capacidades e vulnerabilidades; terceiro, iniciaríamos um debate sobre a educação como bem societal (...); quarto, asseguraríamos um debate público contínuo sobre a centralidade da educação, na produção de um público e de um político capazes de pôr limites a qualquer grupo que pretendesse fixar os nossos presente e futuro de formas que colocam a economia para além da política e os mercados acima da política e da sociedade (...)".
Regresso ao início. Pois bem, "no hay connocimiento útil si no nos hace mejores personas". Pelo caminho que obrigam a seguir o desfecho continuará a ser trágico. Repensar a EDUCAÇÃO e todo o sistema é pois a maior obra que se pode edificar no sentido de um mundo melhor.
Ilustração: Google Imagens.
Publicado no blogue: https://www.gnose.eu/

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

ESTRANHO, MUITO ESTRANHO... DO CURRAL À UNIVERSIDADE!


O Professor Doutor Hélder Spínola foi dispensado pela Universidade da Madeira. Um caso muito estranho e que deveria o Senhor Reitor explicar a situação. Entretanto, esta "carta do leitor", publicada na edição de hoje do DN-Madeira, assinada pelo Catedrático António Brehm, é muito elucidativa. Na Região estão a acontecer casos estranhos, muito estranhos.

"Hélder Spínola, 
um exemplo a seguir

Veio mencionada no DN, uma carta assinada pelo meu antigo aluno e há vários anos, colega, Hélder Spínola, queixando-se de perseguição que lhe está a ser movida na Faculdade de Ciências da Vida (FCV) da Universidade da Madeira e que ditou o seu afastamento do conjunto de professores que aqui leciona. Mágoas justíssimas. Tenho por este meu amigo e colega, a obrigação moral de vir a público fazer o seu elogio e dar-lhe a minha solidariedade. Uma universidade constrói-se através das competências do seu pessoal docente e pela qualidade do seu ensino. Não me cabe aqui falar dos outros, mas sim do Hélder Spínola que, nos últimos 15 anos, foi mão para todo o trabalho em termos de lecionação. O Hélder deu de quase tudo, e deu com um nível de exigência máxima, de que só beneficiaram os alunos que tiveram o privilégio de serem seus.
Foi meu aluno, e logo lhe vi o potencial não só para desenvolver investigação, como de transmitir o seu saber aos discentes. Doutorei-o depois em genética molecular, e desde os primeiros momentos (mesmo antes do seu doutoramento) publicou inúmeros artigos científicos (mais de uma trintena), a maioria nas melhores revistas internacionais da especialidade. O seu curriculum científico (o único que me cabe aqui julgar) é impressionante e, seja em que universidade for, nomeadamente na da Madeira, é absolutamente exemplar.
A actividade do Hélder Spínola não se resumiu à investigação, que nos últimos tempos esteve dedicada ao estudo de marcadores genéticos específicos de certas patologias existentes na população madeirense. Decorreu deste estudo a implementação de testes que o Laboratório de Genética Humana desta universidade presta aos agentes de saúde da Região. Algumas destas técnicas são feitas a pedido de laboratórios muito bem credenciados do país, sinal do reconhecimento da nossa experiência e do saber do agora “dispensado” Hélder Spínola.
A dispensa dos serviços de um docente com qualidades tão evidentes, mesmo a nível nacional, é um triste fim, mesmo para aqueles que, como eu, sempre se bateram por um ensino de qualidade, com pessoas com qualidade. E se essas pessoas forem filhas da própria “casa” tanto melhor. Resta-me dizer, no entanto, que é com mágoa que verifico que, lutando por uma implementação de um ensino superior de qualidade, se ignorem, por santas e insondáveis razões, os produtos do nosso próprio trabalho e saber. Manifestações de um povo notoriamente superior."
António Brehm, FCV, Professor Catedrático.

domingo, 11 de novembro de 2018

COMPUTADORES, MUITOS COMPUTADORES PARA UM "SISTEMA DE SUCESSO". IMPRESSIONANTE.


Segundo o DN-Madeira o secretário da Educação anunciou que a governo vai entregar 490 computadores às escolas, de um total de 1582, fundamentalmente para substituir os existentes, segundo se sabe, velhos e muitos inoperacionais. Sai mais barato adquirir do que reparar! Só que o problema maior da aprendizagem não é a substituição computadores antigos por novos. Desde que haja orçamento, obviamente, não faltam interessados em fornecer equipamentos. O problema, portanto, é outro, e situa-se na premissa: o computador como ferramenta de aprendizagem. O que implica que, paulatinamente, cada aluno tenha o seu equipamento e que o processo pedagógico seja outro. 


Ora, isto entronca em um novo paradigma do sistema educativo e, consequentemente, em uma nova concepção do processo de como aprender. Se o computador se destina, prioritariamente, a salas específicas, isto significa que no processo de aprendizagem tudo continua igual. Pior, ainda, se o computador serve para repetir o que está no manual, visando o cumprimento do programa, significa que o computador é utilizado em substituição dos velhinhos acetatos. 
As tecnologias têm de ser utilizadas de forma adequada e concordantes com uma visão radicalmente diferente de como aprender. Por isso, distribuir computadores é o mais fácil; mais complicado é gerar um sistema onde o computador constitua uma excelente ferramenta de aprendizagem. Só que o secretário não fala deste pressuposto maior. Fica-se pela politicazinha do orçamento e da distribuição!
Mas nada disto me é estranho. 

Ainda ontem ouvi o presidente do governo assumir que o sistema educativo na Madeira é de "sucesso". Das duas, uma: 1. ou não tem presente os números do insucesso, do abandono, as carências dos estabelecimentos de aprendizagem e as graves fragilidades testemunhadas no facto de "65% da população da Madeira, com 15 ou mais anos, terem apenas até o 9º ano de escolaridade. 

Valor que está acima da taxa nacional que, no ano passado, ficou pelos 61%. Acresce dizer que a Madeira continua a estar pior do que a média nacional, naquela que é a taxa de abandono precoce de educação e formação (jovens dos 18 aos 24 anos que estão fora do sistema de ensino e sem o secundário): 23% na Região e 14% no País". Fonte - DN-Madeira/Pordata/Jornalista Ana Luísa Correia (Junho/2018); 2. ou, então, atira umas coisa para o ar talvez convencido que andam todos distraídos.
E para completar o ramalhete do desnorte e da ausência de ideias portadoras de futuro, ontem, o partido da força maioritária na Região, convidou o Professor Doutor David Justino, Licenciado em Economia e Doutorado em Sociologia, personalidade que foi ministro da Educação entre 2002/2004, e que nada deixou como marca. Se tivesse deixado, catorze anos depois, estava já o país a beneficiar da sua orientação política. E veio cá, dizer generalidades e até algumas banalidades. Fixei esta: uma Educação de Infância - dos 6 meses aos 6 anos - como uma prioridade e acima de tudo, como desígnio nacional - Fonte: DN. 
Eu diria que já vão aos três meses para um berçário, enquanto os pais trabalham horas a fio devido a um sistema organizacional da sociedade que não respeita o tempo de trabalho, o tempo de lazer e o tempo de descanso. 
Como me dizia uma Colega com algum desespero: "à mãe cui nerves!"
Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

QUALQUER POLÍTICO COM BOM SENSO E RESPEITO PELOS PROFESSORES JÁ TINHA IDO EMBORA.


Já tinha ido embora, pedindo desculpa aos professores da Região, ao Professor Joaquim José Sousa e, particularmente, a toda a comunidade educativa do Curral das Freiras. É triste verificar que o assunto é tema nacional pelas piores razões políticas.

Fica aqui um excerto de um texto do PÚBLICO, assinado por Bárbara Reis.

"(...) a história de uma escola pública que era a melhor do mundo, mas afinal é a pior — ou assim o dizem —, tão má que o director teve de ser afastado e a escola extinta.
Confuso?
Em 2009, o Governo Regional da Madeira abriu uma escola no Curral das Freiras, a freguesia mais pobre da ilha, num vale isolado de onde não se vê o mar. As crianças dos “sítios” do vale precisavam de uma escola ao pé de casa. Seria meio caminho para reduzir os chumbos e o abandono escolar. Joaquim Sousa, um professor de Geografia de Lisboa, foi nomeado director. Em 2010, quando a Escola Básica do Curral das Freiras ficou em 1207.º no ranking nacional das escolas, ninguém ficou espantado.
O espanto veio depois. Em 2015, o Curral ficou em terceiro lugar no exame nacional de Português do 9.º ano e no top 10 de Matemática, e foi a 12.ª melhor escola pública do país. O único aluno da Madeira que teve 100% no exame nacional de Matemática foi Dina Ascenção, aluna do Curral, e a melhor nota a Geografia da ilha foi de Albany Rodrigues, aluna do Curral.
Em cinco anos, a escola subiu 1000 posições.
Foram perguntar ao professor Joaquim Sousa o que tinha feito para conseguir isto. O que contou tornou o Curral uma inspiração nacional. Joaquim Sousa apareceu nos jornais, numa revista anual, num debate na Feira do Livro, na RTP. Quando quiseram saber se alguém, na Madeira, lhe dera os parabéns ou quisera conhecer os “truques” para uma mudança tão grande num lugar tão difícil e em tão pouco tempo, respondeu que “nem por isso”.(...)
É o retrato da Secretaria Regional da Educação. 
Enquanto professor sinto vergonha do que estão a fazer a um Colega.

NOTA
Ler o texto publicado AQUI.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

AFINAL NÓS É QUE PAGAMOS


Um artigo do Dr. Helder Melim
publicado na edição de ontem do DN-Madeira

Como é que se entende que, devido à quebra de natalidade haja escolas secundárias públicas em risco de fechar e o católico Colégio da Apresentação de Maria, com o auxílio do governo, tenha comprado e adaptado o ex. edifício da Ford para abrir uma escola secundária? Para onde vai o lucro deste negócio?

No passado dia 20 de outubro, o DN-M, trazia na 1ª pg. como título principal “30 milhões para as escolas privadas”, e no dia 26 do mesmo mês, o título era “Tribunal de Contas sugere revolução na educação” com um subtítulo que referia que “face à redução da população infantil (...) uma redução de 1.600 professores (...) fusão de escolas do ensino básico ao secundário”.
A população está efetivamente a diminuir e os governantes, em vez de resolverem ou minimizarem de base o problema, que é sumariamente devido ao trabalho precário e mal remunerado, aliada à falta de habitação a preços comportáveis para as famílias, optam aos vários níveis por medidas mais ou menos piedosas, do tipo subsídio por nascimento, livros gratuitos, etc., que embora possam dar alguma ajuda, não resolvem minimamente o problema, nem incentivarão ninguém a “procriar” com base em tão parcos argumentos.
Voltando ao assunto que aqui hoje nos traz, a “parte de leão” dos 30 milhões que a educação entrega aos privados vai para organizações ligadas à Igreja Católica, como são o caso do Colégio do Infante (1.566.568,06€), Salesianos (1.668.920,08€), Colégio da Apresentação de Maria (1.569.959,47€), Colégio de S. Teresinha (1.304.274,96€) e APEL (1.484.312,30€), para não referir as demais com os quais se perfazem os referidos 30 milhões. Justifica-se plenamente a existência de subsídios a organizações privadas, quando o Estado não está em condições de assegurar as funções que lhe estão constitucionalmente atribuídas. No continente, o Estado analisou caso a caso todas essas situações e terminou os “contratos de associação” nas situações em que verificou que havia redundância, ou seja, quando num determinado sítio havia escola pública com vagas disponíveis.
Reconheço o direito aos pais de escolherem para os seus filhos a educação e a saúde que considerarem ser a melhor. Acho, contudo, que do mesmo modo que não é suposto que o Estado subsidie clínicas e hospitais privados, por já subsidiar o SNS para todos, também não deveria subsidiar os colégios privados, quando há uma oferta pública de educação que responde com maior qualidade às questões de educação do que o SNS responde às questões da saúde. Os pais, têm pois, todo o direito de pôr os filhos na escola privada que entenderem; não podem porém é pretender que sejam os outros contribuintes a pagar por isso.
O dinheiro dado a estas instituições privadas é dinheiro que é sonegado e que faz falta ao ensino público, onde a penúria que já vem de há décadas persiste e se agrava, impedindo que os “filhos de todos os outros” tenham maior qualidade. Nas nossas escolas o equipamento, vai avariando e fica “encostado às boxes”, computadores e outros estão obsoletos, não há cortinas nas janelas, faltam corrimãos nas escadas, etc., etc., etc. 95% do orçamento das escolas públicas é exclusivamente para pagar ordenados e os 5% restantes são insuficientes para as escolas funcionarem com um mínimo de dignidade.
Há dias, chegou-me ao email um apelo dum colega, professor altamente motivado e com sobejas provas dadas, para que o ajudassem a comprar uma lâmpada cara, que se tinha queimado, para o videoprojector que ele tinha comprado com o seu dinheiro, e que usava para dar as suas aulas, na sua escola pública, em melhores condições, pois a escola não dispõe destes equipamentos em número suficiente para as necessidades.
Para além disso, as escolas privadas cobram ainda bom dinheiro aos encarregados de educação, e mesmo assim, pagam pior aos seus professores. Como é que se entende que, devido à quebra de natalidade haja escolas secundárias públicas em risco de fechar e o católico Colégio da Apresentação de Maria, com o auxílio do governo, tenha comprado e adaptado o ex. edifício da Ford para abrir uma escola secundária? Para onde vai o lucro deste negócio?
Para esta situação, encontro duas explicações: 1 - Este governo neoliberal de direita só vê virtudes no que é privado (e só para alguns) e pecado no que é público; 2 - a “santa aliança” firmada entre Jardim e o Bispo Santana, onde um dá o dinheiro e o outro o púlpito.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

UMA ESCOLA POR ALUNO


"Uma escola por aluno" é a expressão mais simples, mais profunda e de um enorme significado que alguma vez encontrei para dar consistência a tudo quanto penso sobre o sistema educativo, particularmente, sobre a escola com vida, vivência, convivência e aprendizagem. No essencial, uma escola por aluno significa um estabelecimento de aprendizagem personalizado, que respeita as origens culturais, sociais e económicas dos alunos, que demonstra uma organização comprometida com o sucesso individual assente na diferença e nos ritmos de cada um. A expressão, aliás, é muito mais que um slogan ou uma chamada de atenção metodológica, é, sobretudo, uma atitude que sacode a ideia da aula tradicional, o conceito de turma, a focagem obsessiva na avaliação e centra as preocupações na pessoa, conhecendo-a e indo ao seu encontro. Uma escola por aluno significa que este não é mais um, não é um número na engrenagem traiçoeira de uma escola dirigida para milhares, antes uma escola com um olhar inteligente que sabe como agarrar as margens trazendo-as para o centro das preocupações educativas.


Como é que isso se consegue? Pondo tudo em causa, estudando e mudando, destruindo e reconstruindo, paulatina mas radicalmente, um sistema que está velho, caduco, enervante, imbecil e que mata a esperança. Consegue-se, rompendo com entranhados conceitos tradicionais, partindo para outros mais complexos, ao encontro do desenvolvimento tecnológico e da diversidade dos públicos. Não é possível de outra forma, quando, por um lado, calcula-se que, em 2025, 91% dos portugueses vão estar ligados à internet; por outro, a discrepância já evidente entre um mundo que avançou em turbilhão e uma escola que parou no tempo curricular, programático e pedagógico. Em 2016, o Professor Joaquim Azevedo, investigador da Universidade Católica, sintetizou: "A escola mudou pouco, os adolescentes mudaram muito". É esta tomada de consciência que deve ser colocada em cima da mesa, com coragem, firmeza e inteligência. Basta um  olhar atento sobre a iniciativa Web Summit. Será que perante o que ali se passa a escola pode ficar indiferente? Pode alguém ignorar o interesse de 170 países e de 70.000 visitantes? Eu diria que a escola de hoje é um beco perante a interminável avenida da Web Summit.
É óbvio que a construção de um novo paradigma não é possível com escolas com 2.500, 2000, 1.500 ou 1.000 alunos. Infelizmente, há quem se vanglorie disso, ao jeito da minha escola é maior que a tua, ou, então, é a maior do país. Um pouco de reflexão e perceberiam quanto errados estão. A escola não deve ser salas e professores que mudam a cada hora. A aprendizagem para a complexidade guia-se por enquadramentos muito distintos do passado. É possível com estabelecimentos de limitada dimensão. Escolas com aquela vastidão, os alunos e os professores, todos são números por maior que seja o empenhamento e as quase intermináveis reuniões, de repetição em repetição, desde o conselho pedagógico ao de turma. No verdadeiro sentido, ninguém conhece ninguém. Nem os professores entre si. Conhecem, apenas, o vaivém. Com este formato, espécie de linha de montagem, não são possíveis projectos de vida, antes o rigoroso e acéfalo cumprimento do estabelecido, de característica uniforme, quando todos são diferentes. Junta-se a este quadro, a infernal burocracia, o big-brother da hierarquia política, a incapacidade dos quadros intermédios dizerem não, na esteira de José Régio "(...) não vou por aí". E o círculo vicioso fecha-se e recomeça a cada ano, como se o mundo terminasse nos muros da escola.
Uma escola por aluno, enquanto conceito, rompe, necessariamente, com a ideia de "um fatinho igual para todos". Terão de ser feitos por medida, acautelando a diversidade dos interesses e das vocações. A isto eu chamo uma escola de cultura e com cultura. Porque tudo pode ser aprendido, os formatos para lá chegar é que, obviamente, terão de ser diferentes e múltiplos. Não enxergar isto, parece-me grave! Disse Clarice Lispector (1920/1977): "o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar".
Ilustração: Google Imagens.

domingo, 4 de novembro de 2018

“UMA CLASSE ADOECIDA PELA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO"


Setenta e cinco por cento dos professores e educadores do Ensino Básico e Secundário dão aulas em exaustão emocional. Praticamente metade demonstra sinais preocupantes e 24% têm sinais críticos ou extremos de desgaste. Quarenta e dois e meio por cento não se sentem realizados profissionalmente. Quase 22 mil confessam que tomam medicação a mais e cerca de nove mil falam em consumo excessivo de drogas e álcool para enfrentar o ritmo de trabalho e fazer face às exigências do sistema. Cerca de 3% apresentam consumos combinados de álcool, droga e medicamentos. Oitenta e quatro por cento desejam reformar-se antecipadamente sem penalizações. O maior estudo realizado no nosso país sobre a vida e o trabalho dos professores portugueses mostra uma “classe doente”. 


“O primeiro resultado completamente esmagador revela que estamos perante uma classe adoecida pela organização do trabalho”, refere (...) Raquel Varela, coordenadora do “Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal”, realizado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa a pedido da Federação Nacional dos Professores (FENPROF). “A maioria dos docentes está a trabalhar doente”, avisa. 
As imagens que sobressaem deste estudo são preocupantes. Uma parte significativa de quem ensina, e que tem uma enorme responsabilidade de transmitir conhecimentos às futuras gerações, está cansada, exausta, desmotivada, num desgaste contínuo. E uma classe doente empobrece um país. Por tudo isso, fala-se numa revisão do modelo de gestão das escolas. Raquel Varela, investigadora e historiadora da Universidade Nova de Lisboa, alerta para o perigo de uma alienação por parte de uma classe profissional e para um sentimento de não pertença a um lugar, neste caso, à escola. 
O desgaste emocional é uma das áreas que mais salta à vista no estudo: 47,8% dos professores revelam sinais no mínimo preocupantes, dos quais 20,6% exibem sinais preocupantes, 15,6% sinais críticos e 11,6% demonstram sinais extremos de esgotamento. Os professores sentem-se operários numa linha de produção que não pára. Raquel Varela refere, a propósito, que os professores “sofrem um processo de proletarização”. Ou seja, os docentes sentem que não são parte interveniente e pensante no processo educativo, em que as suas ideias, a autonomia, e a criatividade não são tidas em consideração, “e passam a estar sujeitos a ordens externas”. 
No entanto, o estudo mostra uma baixa taxa de despersonalização, que acontece quando alguém olha e trata as pessoas como objetos. Uma taxa de 7,6%. “O que significa que os professores ainda têm muito carinho pelos alunos. Adoeceram mas não explodiram nos alunos”, diz Raquel Varela. E este “adoecimento”, sustenta, não acontece “por um processo individual de culpa”. “É a organização do trabalho que os adoece”. Um trabalho amarrado a um modelo de gestão autoritário e a um sistema de ensino padronizado.

Indisciplina e burocracia 

O trabalho burocrático, a indisciplina, a pouca autonomia, a falta de reconhecimento público, o salário, a desmotivação. A coordenadora do projeto toca nestes pontos que se cruzam no estudo, com quase 120 perguntas e perto de 16 mil inquéritos completos respondidos por professores de norte a sul do país, incluindo ilhas, do ensino público e privado. E alerta para a necessidade de se rever um modelo de ensino “nos meios e nos fins”. Isto porque, em sua perspetiva, a escola continua a ensinar para o mercado e não para o capital humano. Educa-se para as necessidades das empresas, em constantes mudanças, esquecendo-se o essencial. “Precisamos de um ensino universal que dê acesso a todo o conhecimento produzido pela humanidade”, defende. 
Mais de 70% dos professores estão preocupados com a indisciplina e este é um ponto que se relaciona com esse “adoecimento”. E os problemas de indisciplina e de insucesso escolar aumentam e preocupam porque “não têm um tratamento coletivo”, ou seja, não se resolvem num trabalho e esforço conjuntos. “Os professores culpabilizam pais, pais culpabilizam professores, diretores culpabilizam professores. Entopem-se escolas de faltas disciplinares, processos burocráticos demorados e a questão da indisciplina tem-se revelado cada vez mais importante como fator de adoecimento dos docentes e de perturbação das escolas”, lê-se no estudo. 
O estudo confirma que o excesso de trabalho burocrático também está relacionado com o estado de exaustão emocional. “Aumenta toda a gestão burocrática. Aumenta a quantidade e multiplicidade de tarefas que os professores não devem, não podem, e não sabem fazer. É urgente que as escolas contratem profissionais que façam esse trabalho”. Por outro lado, é urgente valorizar as carreiras de quem ensina, fundamental para quem passa os dias na escola, transmite conhecimentos, contribui para o desenvolvimento do país. 
“A equipa de investigadores consegue provar que o problema é de organização do trabalho. O afastamento entre as expetativas dos docentes e a realidade do exercício da sua profissão é a principal causa dos problemas diagnosticados, bem refletidos nas conclusões que, nesta fase, é possível tirar, num estudo que, até pelo volume dos dados (cerca de dois milhões), não está e não podia estar terminado”, refere a FENPROF, em comunicado.
Fonte: Educare

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

DA ESCOLA ENCICLOPÉDICA AO GOT TALENT


A escola tem de ser mais do que manuais, sumários e pormenorizadas grelhas de avaliação, radiografando obsessivamente e encaixotando a sua diversidade em escalas percentuais. A escola tem de ser fermento de e para a vida, lugar e oportunidade de paixão e de sonho, de aprendizagem e de produção de saberes consistentes.

A Escola
… precisa de serenidade e isso não é possível com posturas centralizadoras ou da peregrina ideia da municipalização;
… necessita de autonomia organizacional e pedagógica, não de sufocantes políticas padronizadoras;
… precisa de financiamento para que as dívidas não perturbem a aprendizagem;
… tem de sair dos seus muros convencionais e projectar-se na vida real, interagindo com todos os outros sistemas, analisando-os e compreendendo-os com o necessário pensamento crítico;
… não pode ser a mera repetição que prepara exames, quando os alunos, hoje, se relacionam com o conhecimento de forma diferente das gerações passadas;
… não precisa de um fato de tamanho único ou de um velho com arranjos marginais, mas do respeito pela diversidade cultural, expectativas, potencialidades de cada um, liberdade de escolher e decidir o que aprender e como aprender;
… não pode ser professores, por um lado, alunos, por outro, auxiliares que cumprem ordens, pais distantes, antes uma comunidade em permanente aprendizagem;
… não deve caracterizar-se pela imensidão de pequenos projectos desarticulados no tempo, antes pela existência de um caminho, aglutinador e portador de futuro;
… não deve ser conservadora e reprodutora de modelos sociais, com um currículo e disciplinas desconjuntadas, antes um espaço de inspiração, criação, inovação, de cultura, de auto-estima e de afectos, capaz de gerar, paulatinamente, os pressupostos da curiosidade;
… é muito mais que manuais, sumários e pormenorizadas grelhas de avaliação, com percentagens para tudo, radiografando e encaixotando obsessivamente a diversidade social entre 0 e 100%, antes uma instituição de aprendizagem disponível para o conhecimento, produção de saberes consistentes e fermento de e para a vida;
… não pode ser um local de obrigação, triste, enfadonho, antes um espaço que apaixone, de prazer pelo estudo, pela descoberta e pelo desejo que conduz ao conhecimento sustentado;
… não pode caracterizar-se por um sentido individualista, quando as áreas de intervenção profissional fazem apelo ao sentido de grupo;
… não pode assentar em exaustivos programas e duvidosos conteúdos, injectados qual vacina, antes o foco da sua missão deve centrar-se na observação, experiência, raciocínio, questionamento integrado de tudo e na mútua descoberta de respostas, não aquelas exigidas em testes de exclusão, antes as que se alimentam na interrogação, na capacidade de argumentação e nas soluções criativas;
… não deve (a)fundar-se na burocracia, nos papéis, muitos papéis que circulam e enervam, uns repetitivos, outros desnecessários, tarde ou cedo destinados ao arquivo morto, que apenas justificam os lugares que a hierarquia política ocupa.

Lugar de paixão e sonho

Ora, criar instituições de aprendizagem, não estabelecimentos de ensino, dá muito trabalho! Romper com o passado e com as rotinas da fábrica, assentes na lógica do toca-e-entra-toca-e-sai, é complexo. É difícil operar uma revolução na aprendizagem, depois de dezenas de anos de rédea curta, de condicionamento da inovação, com uma classe docente trabalhadora, porém, envelhecida, cansada e desmotivada. Não é tarefa fácil assumir que aprender é muito mais do que transmitir conhecimento enciclopédico segmentado e que o papel do professor deve ser hoje a de mediador e potenciador da descoberta. Mas é por aí que o caminho deve de ser trilhado, para que o êxito aconteça e baixem os números do abandono, do insucesso e das qualificações que perturbam o desenvolvimento.
Há uma frase de Izabel Grispino que me cativa: "(...) antes de colocar a educação numa vala comum, é recomendável examinar cada indivíduo, cada anseio, cada desejo embutido na personalidade (...)". Baseado nessas palavras, à medida que digito, perpassam-me, por aproximação, algumas imagens que retenho do programa “Got Talent”, onde crianças e jovens mostram as suas capacidades em um hino à beleza sensorial das múltiplas artes. A estética em todo o seu esplendor atravessando, de uma ponta à outra, através do corpo, a música, a dança, o canto, a declamação, a magia, a comédia… No essencial, tudo quanto a imaginação, a vontade e o sonho podem conduzir. Ora, se tudo aquilo que nos toca e muitas vezes emociona até às lágrimas é possível, fico a pensar nas razões da escola não ser, igualmente, para a maioria, um local de paixão e sonho. A resposta está numa outra visão que conduza a excelentes ambientes de aprendizagem. Daí que o sistema educativo necessite de uma revolução, nunca de uma evolução através de acertos marginais.
Ilustração: Google Imagens.

Nota
Texto da minha autoria publicado na revista nacional A Página da Educação e no blogue Gnose