sábado, 4 de maio de 2024

Com a verdade se engana

 


Li uma parte da intervenção do secretário regional da Educação na abertura de um seminário sobre Educação que tem como tema: "Horizontes Educativos - Estratégias para uma Escola transformadora". Disse (transcrição textual Dnotícias): 

“(...) se queremos uma escola transformadora é em primeira instância a escola que tem que se transformar. Se queremos uma escola que corresponda aos desafios especiais, não pode ser uma escola que fique numa trincheira. Tem de ser uma escola que seja uma charneira entre aquilo que são as dimensões sociais, a formação dos alunos e a preparação para os desempenhos sociais, sejam eles profissionais ou de cidadania” (...) “a escola transformadora não transforma só quem por lá passa e tem que passar, tem de ser uma escola que também tenha capacidade de se transformar para dessa forma responder melhor aos nossos alunos, à sociedade, mas acima de tudo também a aquilo que são as competências dos profissionais de educação” (...) A escola “tem de ser à medida de cada um”.

Há duas perguntas que, desde logo, devem ser colocadas: em abstracto, sendo as palavras ditas absolutamente pacíficas, o que é que a secretaria regional que lidera, desde 2015, tem feito de substancial, no sentido de corresponder o posicionamento divulgado à realidade da escola pública? Que grau de liberdade, falo também de autonomia, têm as direcções e os professores para criarem estabelecimentos de aprendizagem com dinâmicas organizacionais e pedagógicas distintas umas das outras?

Aliás, junta-se a estas perguntas uma outra fundamental: qual o pensamento político e respectivo plano a quatro, oito, doze, dezasseis anos que corresponda à concretização de "uma escola à medida de cada um"? Até onde isto me levaria!

Do conhecimento público esse pensamento e plano não existem. Bem pelo contrário, relembro como exemplo, quando o Professor Joaquim José de Sousa, no Curral das Freiras, no seio de um alargado número de professores, tentou e conseguiu concretizar uma escola "transformadora", de oportunidade para todos (ali, 92% beneficiavam da Acção Social Educativa), paradoxalmente, o secretário moveu-lhe um processo disciplinar, mais tarde ganho pelo professor em todos os patamares da Justiça. A realidade que descrevi, em Novembro de 2018, foi a da "existência de uma ridícula trama, por inveja, porque a escola saltou de um lugar desprestigiante, mil duzentos e muitos do famigerado ranking nacional, para uma das melhores escolas públicas do país. Os louros, os prémios e o reconhecimento nacional, obviamente, foram para a direcção da escola presidida pelo Professor Joaquim José Sousa. (...) Começou aí a intriga. Havia que "corrigir" ou dar um correctivo a quem, terá pensado o dito, estaria a ultrapassar a hierarquia. E assim foi montado o esquema de linchamento que terminou com a fusão da escola com uma outra do Funchal. Pelo meio, telefonemas, inspecção à vida gestionária e administrativa da escola, vasculhando o que possibilitasse a abertura de um processo e, naturalmente, o surgimento de uma vítima (...)".

Não aceito a trapaça discursiva. Não aceito quem, com responsabilidades de governo, leia umas coisas de véspera a partir do título de um seminário (Estratégias para uma Escola transformadora) e divulgue um pensamento que não corresponde rigorosamente nada à sua histórica práxis política. Fica feio, é intelectualmente desprestigiante, pois demonstra que engana com a verdade ao falar de acordo com as circunstâncias. 

A escola transformadora é muito mais que o espectáculo mediático das "salas do futuro", dos "tablets", o vaivém de sessões de "meritocracia" e muitas páginas de "pontos e vírgulas". A escola transformadora evita paleios introduzidos a martelo e mediatismos bacocos; não persegue quem deseja fazer diferente, antes pensa e estuda a sociedade, nela integra a escola e torna-a cultural; preocupa-se com a rede e com a arquitectura dos espaços de aprendizagem, com o número de alunos por estabelecimento, liberta-os das salas para que possam ver o mundo e a ciência; interage com todos os outros sistemas dando, recebendo e cruzando; respeita os talentos e sonhos; passa ao lado de tanta tralha programática; vive na utopia como caminho; derruba muros e desmantela conceitos mofentos de aula e de turma; vê a avaliação como um processo necessário que parte do próprio aluno e que serve de reflexão para o professor; provoca o debate e ensina a pensar ao despertar para a curiosidade; preocupa-se com o conhecimento e não com o débito de matéria para engolir e esquecer; não rouba às crianças o tempo de infância; tem uma noção global que "há qualquer coisa de podre na Educação" (Merlí) e actua nas suas causas; preocupa-se com o facto de milhares andarem por aí e que não estudam nem trabalham; não martela estatísticas e desvaloriza essa história do PISA ("concurso de beleza da pedagogia" - Pablo Gentilli; preocupa-se com os 70% de professores em exaustão emocional (Burnout) e 84% que deseja a aposentação; a escola transformadora não se enclausura na doentia rotina dos currículos e dos programas, não burocratiza para poder controlar, não se perde no labirinto de centenas de projectos desenquadrados, antes procura ser fermento para a vida, lugar de paixão e sonho, aprendizagem e produção de saberes consistentes. Enfim, entre um sem fim de alíneas, uma educação transformadora exige que o político, partindo da base, ouse criar, incentivar e desenvolver a escola que a sociedade reclama. 

Neste pressuposto, destes nove anos de mandato, a minha leitura é que nada restou portador de futuro. Foi um tempo perdido, porque repetitivo, porque não quis ou não soube dar passos no sentido da paulatina transformação da sociedade. E assim sendo, na minha leitura, valem zero as palavras ditas na tal sessão de abertura. Corresponde a uma monumental mentira dita de forma séria. Numa Região Autónoma, com órgãos de governo próprios, nem engenho teve para propor e lutar por uma autonomia que conduzisse a uma alteração constitucional (Artigo 164º - Bases do sistema educativo é reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República) na decorrência de uma próxima revisão. 

E assim, Segunda-feira, tudo continuará igual. É exactamente isso que lamento. 

Ilustração: Dnotícias