segunda-feira, 7 de abril de 2025

EDUCAÇÃO: AS COISAS, AS COISAS TODAS, E O PENSAMENTO DAS COISAS


Por
Nuno Morna
Dnotícias 
07.04.2025

Nota
Sigo, com muita regularidade o que escreve o meu Amigo Nuno Morna. A sua crónica de hoje é espantosa e, sobretudo, entusiasmante para quem a lê. Está dividida em dois pontos: primeiro, as considerações em redor da Autonomia; depois, o tema Educação. E neste, confesso, as palavras e o sentido conceptual, escorreram-me garganta abaixo como mel. Por aqui, há muito que não lia um texto com a profundidade entre "as coisas" e o "pensamento das coisas". Muitas vezes apetece-me desistir de escrever, pelo sentimento que transporto que o sector da Educação constitui uma batalha perdida. E quando alguém, com a inteligência abrangente do Nuno, escreve de forma tão assertiva, retomo a vontade que, afinal, vale a pena. Obrigado Amigo Nuno por ter tocado nesta ferida profunda que alguns tentam curá-la com pensos rápidos. Este texto, mais do que muitas leituras programaticamente obrigatórias, pelas variáveis que ela engloba, devia ser "obrigatória" para governantes sem dimensão e professores subjugados aos ditames do sistema. Obrigado Nuno Morna.



2. "(...) O miúdo sentava-se no fundo da sala, o segundo da fila encostado à janela, que era a única coisa que lhe dava sol naquele edifício que cheirava a vomitado velho e giz, a professora com hálito de pastilha de mentol a repetir as mesmas frases de sempre, os olhos dela semicerrados como se estivesse permanentemente a tentar ver através de uma cortina de fumo, a aula de Ciências, ou talvez História, ou Filosofia, mas isso não interessa porque o que se ensina é sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo, como se os professores fossem robôs de carne com manuais no lugar do cérebro e as palavras entrassem na cabeça dos alunos com a delicadeza de um tijolo arremessado por uma janela.

Ensinar, diziam. Ensinar o quê? As coisas. Sempre as coisas. A Revolução Francesa em três pontos, as camadas da Terra, o número atómico do cloro, a ordem dos reis de Portugal como se Portugal tivesse alguma vez sido um país com rei que importasse mais do que o cheiro do mar em Setembro.
E o miúdo a olhar para fora, a ver a chuva a bater nos vidros como se os vidros chorassem por ele, ou por nós, ou pelo país inteiro, que ainda acha que educar é alinhar miúdos como sardinhas numa fábrica de conservas, cada um com o seu rótulo, cada um com o seu conteúdo certificado, preparado para ser exportado para a Holanda ou para o Canadá, com boas maneiras e inglês técnico, mas sem uma ideia própria na cabeça.

As coisas. Sempre as coisas.

E a cabeça cheia delas, tão cheia, tão atulhada, que já nem se ouve a si própria. O pensamento, esse, ficou lá atrás, algures entre a infância e o primeiro teste intermédio, desapareceu num corredor da escola, talvez num armário onde se guardam mapas antigos e a vergonha dos professores que ainda se lembram do que era ensinar antes do ensinar coisas e dos cronogramas de competências.

A professora de Português, que já foi boa, dizem, que já foi alguém, entra na sala com a cara cansada de quem passou a noite inteira a corrigir redacções onde ninguém pensa nada, onde todos escrevem como papagaios domesticados com medo de errar, com medo de dizer uma frase que não esteja na rubrica de avaliação, e ela própria, coitada, já não se lembra bem porque é que começou a ensinar, talvez porque amava os livros, ou as palavras, ou a possibilidade de fazer um aluno pensar, mas isso agora é proibido (o pensar) é subversivo, é desestabilizador, dá origem a perguntas difíceis e, acima de tudo, não melhora os resultados nos “rankings” das escolas.

E ensinar a pensar?

Isso é outro campeonato. Isso não dá jeito. Isso não encaixa nos horários. Isso atrasa o programa.
Ensinar a pensar é pôr os miúdos a desconfiar, e a escola não foi feita para isso, a escola foi feita para os formatar, para os domesticar, para os moldar em série, com a mesma fórmula com que se fazem croquetes, com os mesmos ingredientes, os mesmos tempos de fritura, a mesma crosta por fora, e por dentro, carne picada que já não se sabe bem de onde veio.

Pensar, diz ela (a professora, que ainda sonha às vezes, às vezes só), pensar é perigoso. Pensar leva a revoltas, a insónias, a recusar aquilo que nos é dado como certo. E os governos gostam de certezas, e os pais gostam de notas boas, e os senhores da Secretaria gostam de ver planos de aula com todos os objectivos específicos alinhadinhos como soldados em parada.

O pensamento é o inimigo da ordem.

E, no entanto, é só no pensamento que há liberdade.

Não nos manuais, não nos exames, não nas fichas de avaliação contínua.

E o miúdo - o mesmo miúdo - que desenhava nos cantos do caderno rostos que talvez fossem dele, talvez fossem dos outros, ou talvez fossem apenas rostos, começa a perceber que tudo aquilo, o mapa da Europa no quadro, a definição de sistema digestivo, as guerras liberais, tudo aquilo serve apenas para o ensinar a repetir.

E repetir não é saber. Repetir não é compreender. Repetir não é existir.
Existir é pensar. Pensar é existir.
Mas isso não se ensina. Isso tem de se roubar.
Roubar no silêncio, nas margens do manual, nas entrelinhas de um poema que o professor leu depressa demais. Roubar o pensamento como quem rouba pão. Como quem tem fome e precisa de se alimentar de ideias antes que o sistema o esmague, antes que o futuro o transforme num técnico de alguma coisa sem nome, útil, produtivo, eficaz, e profundamente inútil para si próprio.

E talvez um dia, talvez, alguém se lembre que educar não é alinhar factos como quem empilha caixas.
Que educar é acordar a inquietação. Que educar é ensinar a não aceitar. Que educar é dizer: ouve, pensa, sente, e depois decide se isto faz sentido.

Mas para isso é preciso coragem.
E a coragem, como o pensamento, não consta dos programas.

Ilustração: Google Imagens/Dnotícias

sábado, 5 de abril de 2025

"Ranking's" das escolas: um concurso de beleza da pedagogia


Uma vez mais, aí estão os "ranking's" das escolas. Diabolizo-os. Mas há, infelizmente, professores, direcções de escola (quando convém) e governantes que espumam com alguns resultados. 



Ora bem, "lendo estudos e reflectindo sobre todas as variáveis, entendo que constitui uma infantilidade conceptual defendê-los. A escola deve ser avaliada por aquilo que faz, pela estrutura organizacional que implementa, pela cultura pedagógica que persegue, pelas preocupações inclusivas e pelo esforço no sentido de que ninguém fica para trás, pela sua luta que atenua as diferenças económicas, sociais e culturais e pelo trajecto dos seus alunos após a passagem por um determinado estabelecimento. Diabolizo-os, não apenas pelo facto em si, mas porque é um erro grave conjugar no mesmo patamar os sectores de intervenção público e privado. Não faz qualquer sentido, nem justificação existe, seja qual for o ângulo de análise, tolerar sequer a existência de ranking's de exames e de escolas! Há outras formas de acompanhamento e de avaliação dos processos de aprendizagem. Ademais, tolerar os "ranking's" significa tolerar o actual sistema educativo que mantém e acelera a desigualdade. - Do livro "A Escola é uma seca", pág. 175.

Numa aproximação a Pablo Gentili, Doutor em Educação pela Universidade de Buenos Aires, que se referiu aos famigerados testes PISA, eu diria que os "ranking's" (…) son el concurso de belleza de la pedagogia". Portanto, esqueçam-nos, porque se trata de um mecanismo artificial que "nadie lo cuestiona, y luego compara". Ignoram que existem diversas realidades históricas, económicas, sociais e culturais, que não permitem, com rigor, comparar o que é incomparável.


Do citado livro, da minha autoria, deixo aqui uma passagem de um texto do Padre José Martins Júnior, página 179: "(...) Nunca foi cronologicamente tão inoportuna, objectivamente tão desadequada e qualitativamente tão deprimente uma fasquia como esta que, todos os anos, empresas parceiras dos mesmos interesses expõem no estendal das folhas diárias para gáudio de uns (os privilegiados) e escárnio de outros (a maioria). (...) É a Educação vendida a metro. É a função do lucro marginal em pleno campo da economia do mercado escolar. Nem me demoro na dissecação crítica que docentes e sociólogos já fizeram e que se sintetiza na veleidade (direi mesmo, desonestidade) de comparar o incomparável, como seja a dicotomia privado-público, com a mais que escandalosa geometria variada que lhe está subjacente. Apenas limito-me a transcrever a análise de um director de escola, relativamente bem posicionada: "Nesta escola, primeiro debruçamo-nos sobre os condicionamentos económicos do aluno, depois pesamos os factores sociais que o determinam e, só depois disso, enfrentamos o seu processamento académico". Melhor ninguém diria! Focalizada sob a tríplice objectiva deste campo laboratorial, a Educação nunca será suficientemente revelada, nem sequer valorativamente apreciada, se tais parâmetros forem obliterados ou, pior, deliberadamente escamoteados. (...)"

Do mesmo livro, página 177: "Daqui concluo, "ranking's" não, obrigado; autonomia, sim, para as escolas, rapidamente, sem abusivas interferências. Porém, todos os anos regressa a história do "ranking's" das escolas. Com os estabelecimentos privados à frente. E todos os anos há quem valorize o que não deve ser valorizado. Ninguém se lembra de dizer que há estudos que provam que os alunos oriundos do sector privado, nos primeiros três anos de curso superior universitário, chumbam mais que os alunos vindos do sector público. Interessante, não é? Um facto nunca assumido. Uma coisa é o domínio da acessibilidade a um curso superior; outra, o desempenho dos alunos depois de lá entrarem. No privado, porque estão em causa pesadas mensalidades, qualquer instituição tende a forçar a aprendizagem no que “interessa” em detrimento de uma formação mais globalizante. Isto para além do recurso aos explicadores. No sector público, apesar de tudo, são sensíveis outras preocupações. E a verdade é que, ao longo do superior, os alunos do sector público conseguem uma melhor adaptabilidade e sucesso, consequência de algumas capacidades trabalhadas. (...)"

(...) "E em tudo isto existe uma grave hipocrisia do ministério. Ao mesmo tempo que assume que os "ranking's são “redutores", a verdade é que são publicados. Quem os disponibiliza? Para o ministério, se eles são “redutores”, os níveis ou notas de exame, deviam assumir uma característica reservada (não publicável) visando um sério estudo (global) sobre o sistema. Nunca para colocar escolas e professores sob suspeita. Os bons e os maus. É disso que se trata. E se assim não é, pergunta-se, de que valeu a publicação de todos os "ranking's" anteriores? O sistema melhorou? Não. Aliás, o ministério ao possibilitar a publicação dos resultados sob a forma de “ranking's”, desprestigia-se e dá um sinal (errado) à população que, mesmo neste contexto, o privado é melhor que o público. Não é. (...)"

Ilustração: Google Imagens.