Por
Nuno Morna
Dnotícias
07.04.2025
Nota
Sigo, com muita regularidade o que escreve o meu Amigo Nuno Morna. A sua crónica de hoje é espantosa e, sobretudo, entusiasmante para quem a lê. Está dividida em dois pontos: primeiro, as considerações em redor da Autonomia; depois, o tema Educação. E neste, confesso, as palavras e o sentido conceptual, escorreram-me garganta abaixo como mel. Por aqui, há muito que não lia um texto com a profundidade entre "as coisas" e o "pensamento das coisas". Muitas vezes apetece-me desistir de escrever, pelo sentimento que transporto que o sector da Educação constitui uma batalha perdida. E quando alguém, com a inteligência abrangente do Nuno, escreve de forma tão assertiva, retomo a vontade que, afinal, vale a pena. Obrigado Amigo Nuno por ter tocado nesta ferida profunda que alguns tentam curá-la com pensos rápidos. Este texto, mais do que muitas leituras programaticamente obrigatórias, pelas variáveis que ela engloba, devia ser "obrigatória" para governantes sem dimensão e professores subjugados aos ditames do sistema. Obrigado Nuno Morna.
2. "(...) O miúdo sentava-se no fundo da sala, o segundo da fila encostado à janela, que era a única coisa que lhe dava sol naquele edifício que cheirava a vomitado velho e giz, a professora com hálito de pastilha de mentol a repetir as mesmas frases de sempre, os olhos dela semicerrados como se estivesse permanentemente a tentar ver através de uma cortina de fumo, a aula de Ciências, ou talvez História, ou Filosofia, mas isso não interessa porque o que se ensina é sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo, como se os professores fossem robôs de carne com manuais no lugar do cérebro e as palavras entrassem na cabeça dos alunos com a delicadeza de um tijolo arremessado por uma janela.
Ensinar, diziam. Ensinar o quê? As coisas. Sempre as coisas. A Revolução Francesa em três pontos, as camadas da Terra, o número atómico do cloro, a ordem dos reis de Portugal como se Portugal tivesse alguma vez sido um país com rei que importasse mais do que o cheiro do mar em Setembro.
E o miúdo a olhar para fora, a ver a chuva a bater nos vidros como se os vidros chorassem por ele, ou por nós, ou pelo país inteiro, que ainda acha que educar é alinhar miúdos como sardinhas numa fábrica de conservas, cada um com o seu rótulo, cada um com o seu conteúdo certificado, preparado para ser exportado para a Holanda ou para o Canadá, com boas maneiras e inglês técnico, mas sem uma ideia própria na cabeça.
As coisas. Sempre as coisas.
E a cabeça cheia delas, tão cheia, tão atulhada, que já nem se ouve a si própria. O pensamento, esse, ficou lá atrás, algures entre a infância e o primeiro teste intermédio, desapareceu num corredor da escola, talvez num armário onde se guardam mapas antigos e a vergonha dos professores que ainda se lembram do que era ensinar antes do ensinar coisas e dos cronogramas de competências.
A professora de Português, que já foi boa, dizem, que já foi alguém, entra na sala com a cara cansada de quem passou a noite inteira a corrigir redacções onde ninguém pensa nada, onde todos escrevem como papagaios domesticados com medo de errar, com medo de dizer uma frase que não esteja na rubrica de avaliação, e ela própria, coitada, já não se lembra bem porque é que começou a ensinar, talvez porque amava os livros, ou as palavras, ou a possibilidade de fazer um aluno pensar, mas isso agora é proibido (o pensar) é subversivo, é desestabilizador, dá origem a perguntas difíceis e, acima de tudo, não melhora os resultados nos “rankings” das escolas.
E ensinar a pensar?
Isso é outro campeonato. Isso não dá jeito. Isso não encaixa nos horários. Isso atrasa o programa.
Ensinar a pensar é pôr os miúdos a desconfiar, e a escola não foi feita para isso, a escola foi feita para os formatar, para os domesticar, para os moldar em série, com a mesma fórmula com que se fazem croquetes, com os mesmos ingredientes, os mesmos tempos de fritura, a mesma crosta por fora, e por dentro, carne picada que já não se sabe bem de onde veio.
Pensar, diz ela (a professora, que ainda sonha às vezes, às vezes só), pensar é perigoso. Pensar leva a revoltas, a insónias, a recusar aquilo que nos é dado como certo. E os governos gostam de certezas, e os pais gostam de notas boas, e os senhores da Secretaria gostam de ver planos de aula com todos os objectivos específicos alinhadinhos como soldados em parada.
O pensamento é o inimigo da ordem.
E, no entanto, é só no pensamento que há liberdade.
Não nos manuais, não nos exames, não nas fichas de avaliação contínua.
E o miúdo - o mesmo miúdo - que desenhava nos cantos do caderno rostos que talvez fossem dele, talvez fossem dos outros, ou talvez fossem apenas rostos, começa a perceber que tudo aquilo, o mapa da Europa no quadro, a definição de sistema digestivo, as guerras liberais, tudo aquilo serve apenas para o ensinar a repetir.
E repetir não é saber. Repetir não é compreender. Repetir não é existir.
Existir é pensar. Pensar é existir.
Mas isso não se ensina. Isso tem de se roubar.
Roubar no silêncio, nas margens do manual, nas entrelinhas de um poema que o professor leu depressa demais. Roubar o pensamento como quem rouba pão. Como quem tem fome e precisa de se alimentar de ideias antes que o sistema o esmague, antes que o futuro o transforme num técnico de alguma coisa sem nome, útil, produtivo, eficaz, e profundamente inútil para si próprio.
E talvez um dia, talvez, alguém se lembre que educar não é alinhar factos como quem empilha caixas.
Que educar é acordar a inquietação. Que educar é ensinar a não aceitar. Que educar é dizer: ouve, pensa, sente, e depois decide se isto faz sentido.
Mas para isso é preciso coragem.
E a coragem, como o pensamento, não consta dos programas.
Ilustração: Google Imagens/Dnotícias