domingo, 10 de novembro de 2024

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Se avaliassem a ortografia como fizeram com a EFACEC



Excerto de um oportuno artigo de Nuno Pacheco hoje publicado no Público. https://www.publico.pt/.../avaliassem-ortografia-fizeram...

"(...) 1) Nenhum dos objectivos do AO90 foi alcançado (nem a unificação da língua ou da escrita, utopia irrealizável; nem as obras de versão unificada a circularem por todo o espaço lusófono; nem a ratificação do AO90 por todos os países envolvidos, já que só quatro o fizeram e em condições legalmente suspeitas; nem a “simplificação” da língua, pois o que reina é um caos ortográfico em que já ninguém sabe pôr mão; nem o tal “prestígio internacional” que levaria o português a ser língua de trabalho na ONU – mais depressa chegou um português a secretário-geral das Nações Unidas do que o idioma a alcandorar-se a tal posto);

2) O AO90 foi realizado sem fundamentação, técnica e independente, do interesse público invocado [para o justificar] (isto foi dito e provado milhares de vezes, até antes de no-lo impingirem à força de uma miragem falsamente científica e de uma, aliás gorada, ambição política);

3) Não fez acompanhar o AO90 de uma análise de impacto nas finanças públicas e até agora custou aos cofres públicos uma soma que ninguém ainda avaliou, mas que em termos de futuro, na progressão natural do português, vai acumulando prejuízos a cada ano que passa.

Lembram-se do que disse o deputado independente Jorge Lemos na reunião plenária de 28 de Maio de 1991, quando se discutia o dito acordo? Disse que era “inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista, infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de instabilidade e inoportuno”. Justificou cada uma destas palavras e depois rasgou o documento. Infelizmente, a coragem demonstrada por Jorge Lemos tornou-se, nos muitos que passaram a lamentar que o acordo tenha sido aprovado, uma espécie de desabafo clandestino e inútil. (...)"

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

"Vá meninos, peguem nos telemóveis porque eu quero começar..."


Em Portugal há um Movimento por "menos ecrãs, mais vida", formado por quatro mães professoras, inclusive, uma petição no sentido de proibir ou limitar, nas escolas, o uso de telemóveis e os manuais digitais. Uma proposta que foi levada ao Ministério e, pelo que já foi divulgado, não sei se na sequência dessa reunião, o governo decidiu propor aos estabelecimentos de educação a adopção de medidas, para já, no quadro da utilização dos telemóveis.



Compreendo a preocupação, embora o foco esteja desajustado. A iniciativa apresenta-se no quadro da libertação de uma pressuposta obsessão pelo telemóvel e tudo o que a ele está associado. Compreendo, também, o interesse por, ao longo de toda a infância, tornar a escola em um espaço de vida, convivência e de desenvolvimento de toda a educação motora que os jogos, tradicionais e outros, transportam. Todavia, há múltiplos aspectos que me fazem não acompanhar aquele tipo de abordagem e até posicionar-me no lado oposto.

Para as autoras daquela iniciativa, a utilização do telemóvel constitui uma situação preocupante, contudo, a realidade, apresenta outros contornos que devem ser observados. Até porque vivemos num espantoso tempo tecnológico que nos faz estar rodeado de tantos e importantes estímulos. E saber geri-los deve constituir preocupação primeira. Se, nos últimos trinta anos, a investigação provocou uma evolução que "esmagou" todo o conhecimento acumulado ao longo da História da Humanidade, imagine-se o que acontecerá nos próximos trinta. 

Tenhamos presente a sinopse da notável série da RTP 1, "10 segundos para o futuro": "(...) As próximas décadas vão sofrer a maior e mais veloz transformação de sempre. Na tecnologia, na ciência, no ambiente, nas relações interpessoais. Vivemos numa espécie de grande acelerador de ciência, em que o ritmo das descobertas não para de surpreender. Nas últimas décadas acumulou-se mais conhecimento científico do que em toda a história da Humanidade. Em 2077 esse conhecimento científico terá duplicado várias vezes (...)". Pois, perante isto, de que vale proibir ou, docemente, limitar? Porque os franceses, entre outros, assim determinaram? Ou será que, por lá e por aqui, andam a reboque de percepções e achismos despidos de um qualquer fundamento?

Ora bem, não é o telemóvel, entre outros equipamentos, que deve ser colocado em causa, mas o sentido organizacional da escola que deve ser profundamente questionado, a cultura e a sua cultura interna, a mentalidade, os actos pedagógicos no quadro de crianças nascidas no Século XXI, os currículos, os programas, os mofentos conceitos de sala de aula, de turma, o número de alunos por estabelecimento, as avaliações, as metas curriculares, a burocracia, as reuniões que são mais do mesmo, a falaciosa autonomia dos estabelecimentos, o medo e subserviência à hierarquia, enfim, tudo o que encontramos da porta da escola para dentro e que não abona em favor de uma aprendizagem onde o aluno seja protagonista. Nesta escola os alunos não são sujeitos, são objectos. Ainda ontem, na TVI/CNN, o ministro foi claro ao assumir que "o sistema educativo não está centrado no aluno".


Portanto, proibir não me parece ser a solução para a tal propalada obsessão, dependência e isolamento dos alunos. Os próprios professores, por uma razão ou outra, nos intervalos, nos seus espaços de descanso entre uma e outra aula, não dispensarão o telemóvel. Então, o caminho terá de ser outro, o de tirar proveito para que jovens aprendam melhor e muito para além do manual. Agora, se à semelhança dos últimos duzentos anos, queremos alunos espartilhados na claustrofobia de uma sala, com professores obrigados a debitar matéria, exigindo que os passageiros do autocarro da sua viagem se mantenham sentados, serenos, calados e perfilhados pelo pescoço do da frente, então sim, o telemóvel poderá constituir um empecilho para o cumprimento do programa. 

O que existe é uma grave discrepância entre as características rotineiras do sistema educativo, a mentalidade, a sociedade que os políticos criaram (que a escola ajudou) e o uso dos equipamentos que a tecnologia colocou ao nosso dispor. Se a cultura organizacional da escola for outra, se a escola for muito mais que aulas focadas na transmissão do manual, se a tecnologia entrar na escola com o seu notável poder no processo de aprendizagem, então será ridículo proibi-la porque isso significará estar contra o tempo e a ciência. De resto, de uma forma simplista eu diria que se não podes proibir, associa-te e aproveita o momento no sentido de uma aprendizagem consistente e duradoura.

Li no blogue do Professor Alexandre Henriques: "Vá meninos peguem no telemóvel porque quero começar". E mais adiante: "(...) É apenas uma questão de tempo, mas acredito que esta expressão será um dia realidade na maioria das escolas (...) qualquer escola, qualquer professor que mantenha a aposta no modelo tradicional vai simplesmente ficar para trás. Existe uma nova religião, a religião tecnológica e esta tem muitos, muitos crentes, dependentes e até fanáticos. A escola apesar de laica, terá de aprender a conviver com ela, aceitá-la e, acima de tudo, orientá-la. Mas temos um problema! Os adultos que habitam nas escolas... a incapacidade que temos de acompanhar estes novos ritmos e os seus benefícios, fruto da nossa natural ignorância, é limitadora da sua implementação. Não é fácil entrar numa sala de aula em que o aluno se torna professor e o professor se torna aluno". Ora aí está!

Por outro lado, a talho de foice, já tem uns anos, perguntei a um jovem o porquê dos da sua geração estarem sempre "agarrados" ao telemóvel. Respondeu-me de forma subtil, mas profunda: "para não estarem sós; para se sentirem acompanhados". Pergunto, quanto isolamento existe nesta escola face ao qual ninguém faz um esforço de compreensão buscando as causas? Não devo generalizar, mas há muito isolamento e sinais de muitas depressões e frustrações escondidas. Porventura, o telemóvel assume-se como refúgio. Alguém está preocupado com isso? De todo, não. Lembrem-se que as camas de pedopsiquiatria estão quase sempre ocupadas. 

Finalmente, duas conclusões: 1. o telemóvel não é apenas jogos, fotografias e mensagens. É um factor de conhecimento que está muito para além dos manuais; 2. ele é muito mais poderoso que essa coisa dos manuais digitais. Ademais, é pessoal e não depende de investimentos públicos. Basta que o estabelecimento tenha um sinal de net.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Professores a menos ou a mais?

 

Mais uns dias e os alunos "regressam" à Escola. Neste momento, assiste-se ao problema de uma alegada falta de professores em função dos horários curriculares dos alunos. Sobretudo nos últimos anos, esta cantilena repete-se e acentua-se. De uma forma enervante, porque ninguém querer olhar de forma distintiva e portadora de futuro.



Mas será que temos professores a menos? Ou será que temos sistema educativo a mais? Se nos enquadrarmos nas lógicas organizacionais e pedagógicas dos últimos duzentos anos, obviamente que faltam professores. Cada disciplina um professor. E como à escola tudo vai parar, logo, o défice será sempre maior.

Só que nós estamos no século XXI, os tempos são outros, vivemos cercados de tecnologia e a extensa investigação produzida diz-nos que, organizacional e pedagogicamente, a aprendizagem já não se faz através da segmentação das disciplinas. O conhecimento é global e integrado. Entre muitos outros e em síntese, diz-nos Salman Khan que "(...) a escola tradicional não responde ao funcionamento do cérebro, porque as redes neuronais funcionam com a associação de ideias, não com temas estanques" ou autoconclusivos. Portanto, está em causa a segmentação das disciplinas.

Aos que têm responsabilidades políticas sugiro a metáfora do "homem do aspirador". Quando todos sopravam houve um que procurou fazer o movimento contrário. Descobriu o aspirador e ficou rico. Moral da história: que vejam o outro lado. Se por aí forem, porventura teremos professores a mais e descobrirão que é o Sistema Educativo que está errado. Pensem nisso!

Para além deste aspecto e não se trata de uma frase feita, "mais escola não significa melhor escola".

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Quem nos roubou os longos dias de verão?


Por
Francisco Oliveira
Coordenador da Direcção
do Sindicato de Professores da Madeira

Há poucos anos, o verão era verão até ao fim, ou seja, até ao dia 22 de setembro; agora, o verão acaba no fim de agosto, para prepararmos, logo no início de setembro, o regresso à escola.



Que a escola anda em contraciclo com a vida já, há muito, constataram os que refletem sobre ela, mas que a escola também anda em contraciclo com a natureza é coisa mais recente. Na verdade, repare-se: enquanto o verão se vai estendendo por setembro e outubro fora, com os dias quentes cada vez mais frequentes, as crianças e jovens são obrigados a largar, à pressa, as brincadeiras de verão, logo no início de setembro, para voltarem contrariados à rotina escolar.

É certo que a escola é e continuará a ser fundamental para a formação das gerações mais jovens, mas há muita vida para além dela. Por isso, deixemos as crianças aproveitar os encantos do verão até ao fim. Porquê a pressa de voltar à escola?

Curiosamente, a geração que, hoje, decreta a abertura das aulas no início de setembro, quando jovem, só voltava no dia 1 de outubro. Até lá, tinha tempo para apanhar sol, mergulhar, correr, jogar à bola e calcorrear as serras até mais não poder. Agora, esquecida do prazer que isso lhe dava e inconsciente de quanto esse tempo foi importante para a sua formação integral, manda todos para as salas de aula, enquanto, lá fora, os encantos do verão continuam a brilhar.

Dir-me-ão muitos que tem de ser assim, porque os pais têm de regressar aos seus trabalhos. Dir-lhes-ei que não tem, não, de ser assim, tanto mais que a escola não foi criada para ser depósito de crianças e jovens; antes existe para potenciar o seu desenvolvimento a todos os níveis; existe para os ajudar a pensar, a criar, a manifestar as suas emoções através de formas simples ou artísticas; a desenvolver o prazer pelo conhecimento, pela cultura, por tudo o que as rodeia.

Tudo o mais são imposições sociais que, ainda que importantes, não devem, nunca, pôr em causa a sua missão primordial. A escola, como instituição social, deve ser sensível às preocupações dos alunos e das suas famílias, mas não pode, obviamente, ser manietada de tal forma que a sua essência seja posta em causa.

É certo que a escola tem de evoluir, mas não para ser manietada pelos interesses de uma sociedade focada no trabalho e pouco preocupada com os direitos das crianças e dos jovens e com o seu desenvolvimento harmonioso.

A escola tem de se libertar das amarras centenárias que fazem com que “roube a infância às crianças”, nas palavras de Eduardo Sá. Não podemos continuar obcecados com a ocupação contínua das crianças, de manhã à noite, sete dias por semana e durante doze meses por ano.


A infância é para crescer, devagarinho, sem pressões; a adolescência é para continuar a crescer, devagar, e para errar muito; a juventude é para crescer, mais um pouco, descobrir novos horizontes e encarar a vida com otimismo.

Nada substitui o encanto dos longos dias de verão.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Tim Vieira: “É preciso deixar que os jovens falhem e que aprendam com os falhanços”


Na edição do Público, com texto de Cristiana Faria Moreira e fotografia de Catarina Póvoa, segui uma entrevista com o empresário Tim Vieira que criou um projecto educativo denominado "Brave Generation Academy", que visa oferecer aos alunos uma escola diferente. Aos poucos, um pouco por todo o lado, assisto à sementeira de um novo pensamento sobre a Escola. Infelizmente, Portugal não acompanha esta onda. Os governos persistem nas metodologias dos Séculos XIX e XX.



Salienta Tim Vieira a paradoxal realidade: "uma criança que siga o nosso sistema pode ir para (as universidades de) Stanford ou Oxford, mas não pode ir para uma universidade portuguesa, porque não tem a equivalência. E isso é que é difícil, porque as nossas crianças estão a ir para a Holanda, para a Inglaterra, para os Estados Unidos." Muito esclarecedor!

Na Brave Generation Academy (BGA), não há propriamente uma sala de aula ou professores e os alunos podem ir “à velocidade que precisam (...)". Assume que gostaria que assim fosse na escola pública. "Estamos num sistema em que nem os pais, nem os professores, nem as crianças estão muito felizes. Mas com algumas mudanças podemos ter resultados enormes."

Pergunta a jornalista: Acredita na escola pública?
"Acredito numa escola pública com qualidade que dá oportunidades. Não acredito numa escola pública que não prepara as crianças para o mundo de hoje (...) acho que até o Governo sabe que a escola tem de mudar. E que é preciso uma escola pública diferente. Só precisam de coragem para fazer isso acontecer. Neste momento, estamos a tentar tapar buracos, estamos a estragar a vida a muitas crianças todos os anos."


A jornalista insiste: Acha que as crianças não estão no centro das decisões?
"Não, não estão no centro. E é pena. Só quando estiverem no centro é que vamos ter um futuro bom para elas e um país de futuro, mais preparado" (...) Olhei para os meus três filhos e não percebia como é que eles ainda estavam a fazer a escola como eu e os meus avós fizemos. Achei que devia haver uma maneira mais flexível, mais personalizada, mais preparada e relevante para os dias de hoje. E em que conseguiríamos usar a tecnologia online misturada com o melhor do offline, que são as pessoas."

Toda a entrevista pode ser lida aqui: 

sábado, 10 de agosto de 2024

Paris 2024 diz-nos: procurem as causas do desencanto!

 

Em Paris nada de novo. Apenas a confirmação das crónicas debilidades dos sistemas educativo e desportivo nacional. Portugal conseguiu vários "diplomas", aos quais, tenhamos a frontalidade e humildade de assumir, devia juntar-se o "diploma da irresponsabilidade" e o da "falta de visão" sobre como se estrutura um sistema para atingir, a longo prazo, o Olimpo, cumprindo o princípio iniciado em 776 aC, em honra de Zeus, na antiga cidade de Olímpia. Não basta uma representação nacional, mas a qualidade dessa representação. E não se trata, até, de um problema de financiamento, mas de organização, formação e de planeamento. 



Ora, um país que, segundo o Eurobarómetro (edição de 2023), é o último de toda a Europa na prática física e ou desportiva  - inclui as regiões autónomas - (ver nota 1), com apenas 4% de praticantes regulares, 18% com alguma regularidade e 78% raramente (5%) ou nunca (73%) é óbvio que não pode disputar as "coroas de oliveira", hoje, medalhas de ouro, prata e bronze. Não pode! E o mais grave é que aquelas percentagens incluem as idades escolares. Até à véspera do encerramento dos Jogos, somar, apenas, quatro medalhas, que colocam Portugal no 50º lugar dos países presentes, só pode constituir uma continuada desilusão. Nem o ouro de Iúri Leitão/Rui Oliveira consegue disfarçar.

Ora bem, não está aqui em causa a dedicação e o notável esforço dos praticantes, dos seus treinadores e clubes que conseguiram qualificar-se para os Jogos de Paris 2024. Curvo-me perante todos, porque sei do que falo. Tenho presente as palavras de um reputadíssimo treinador, Peter Daland, que sintetizou o treino como "dor, sofrimento e agonia". Daí a minha profunda consideração por todos. Não é isso que está em causa, mas a seriedade (neste caso, a ausência dela) do pensamento que estrutura o edifício da base ao alto rendimento. É pública e notória uma incapacidade para analisar as causas, vendo para além do horizonte, numa atitude política séria que conduza à mudança de paradigma. 

O  melhor exemplo da fragilidade do sistema, com todo o respeito relativamente ao passado da atleta, é a aceitação da participação de Ana Cabecinha, de 40 anos, três meses depois de ser mãe (43ª nos 20 km marcha) e, por outro lado, na ausência de talentos nacionais de topo, se prefira oferecer a nacionalidade portuguesa a outros (Pichardo, nascido em Cuba, ofereceu a Portugal uma das três medalhas) provavelmente, para esconder o problema de fundo que está aos olhos de quem deseja ver. No livro que neste momento leio, a Escola da Alma, de Josep Maria Esquirol, destaco: "(...) Olhar não é difícil. Mas olhar bem custa muito. E na realidade só vê aquele que olha bem". Ora, este profundo desencanto obriga a que se olhe bem e parta para o debate, sério e profundo, indo às causas e, por mais que a mudança doa, há que resetar e partir de novo. Sem isso nada feito.

Trata-se de um problema complexo, eu sei, que mexe com muitos "queijos", mas, desde logo, tenho por certo que a raiz do problema está na Escola, na sua organização estrutural, na ausência de coragem, como escreveu o meu Amigo Filósofo Catedrático Jubilado Manuel Sérgio: na "(...) substituição da disciplina de Educação Física pela de Educação Desportiva que, por sua vez, integraria o que hoje se pratica na Educação Física e no Desporto Escolar. A Educação Física “desportivizou-se” e, portanto, deixou de existir. Aliás, epistemologicamente, já há muito tempo que morreu. (...) É preciso, no meu entender, transformar o Desporto em Cultura e a Cultura em Desporto (...)". Enquanto a escola for aquilo que é, com as federações e associações a se substituírem à escola (a participação quantitativa está na escola e a qualitativa no associativismo) e os apoios assentarem numa lógica completamente insensata, creio que, repetidamente, navegaremos nessa onda do desencanto. 

Começará por aí o nascimento de uma nova mentalidade e, por extensão, os talentos que darão asas aos seus sonhos no dificílimo espaço dos Jogos. Neste contexto, o professor de EF, no quadro do actual sistema educativo (que também está em causa), ao contrário de procurar a igualdade com as outras disciplinas curriculares, deve procurar a diferença. O problema não está na sua formação académica e científica (que é complexa e de excelência), mas porque é diferente. Olhe-se para tanto talento desperdiçado, anos a fio, a perder tempo no cumprimento de exaustivos e repetitivos programas, aulas, testes, avaliações e modalidades que não lhe diz nada, em um completo divórcio entre os sistemas educativo e o desportivo.

Sobre a participação portuguesa neste Paris 2024, onde tudo devia ser escalpelizado, convido-vos, governantes, políticos, professores e dirigentes, desde o Comité Olímpico às federações e associações, a lerem os textos aqui publicados "LUDUS PRO PATRIA", do meu Amigo Catedrático Gustavo Pires: Ludus pro Patria - Gustavo Pires

Aí está tudo. Se continuarem a persistir no erro, em Los Angeles 2028, os resultados serão, novamente, os do desencanto. Com 4% de praticantes regulares não se chega a parte alguma! Certo?

Notas
(1) Pergunta: com que frequência se exercita ou pratica desporto? Por "exercício" entende-se qualquer forma de atividade física que pratica num contexto desportivo ou relacionado com o desporto como natação, treino num centro de fitness ou num clube desportivo, corrida no parque...

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 27 de julho de 2024

Ludus pro Patria III: Sob a Síndrome de Alice


Por
Gustavo Pires
Professor Catedrático Jubilado 
da Faculdade de Motricidade Humana

Nenhum programa de preparação olímpica, algum dia, poderá cumprir, com eficiência e eficácia, uma missão estratégica que só pode competir ao Estado. 



Certamente encantado por uma olímpica cultura “dixit” que, em matéria de desenvolvimento, reduziu o desporto a uma inútil verbosidade burocrática que só serve para alimentar uma certa comunicação social toldada pelos casos da bola que estão a dar cabo do futebol, o Sr. Secretário de Estado do Desporto de seu nome Pedro Dias, relativamente aos medíocres dados da prática de atividade física e desportiva dos portugueses, divulgados pelo Eurobarometer (2022), numa entrevista ao jornal Público (2024-07-02), afirmou ter “algumas dúvidas quanto aos termos metodológicos e à forma como a recolha dos dados é feita”. E acrescentou: “o problema é mais profundo”, sem especificar qual a profundidade. Ao fazê-lo, cumpriu a máxima de Dario III e matou o mensageiro, quer dizer, o tal relatório elaborado pela TNS Opinion que produz os trabalhos de base necessários para a produção estatística, entre outras entidades, da Comissão Europeia. 

Antes de alinhar no discurso instituído pela nomenclatura associativa que, regra geral, se esquece de declarar os seus interesses relativamente às situações em que opina, a tutela política devia ler a entrevista do Ministro do Desporto José Lello (1944-2016) que, parafraseando, afirmava haver no dirigismo desportivo um discurso pouco claro e pouco rigoroso, sem objetividade que cultiva o hábito de ficar tudo no ar, instila desperdício e despesismo e é movido por factos consumados. (Público, 2001-03-23). Pois bem, alguém devia informar Pedro Dias que se alguma coisa mudou foi para pior. E, a menos que se mude a vigente cultura inculta, que reduziu o desenvolvimento do desporto: (1º) Às preocupações sobre o “dress code” das olímpicas cerimónias; (2º) Aos discursos de vulgaridades niilistas que aniquilam valores e destroem convicções e; (3º) Ao relativismo ético-moral que confunde e baralha os princípios da igualdade e da equidade que devem presidir à justiça social, a tendência é, naturalmente, para piorar. 

Em matéria de atividade física e desportiva, a metodologia aplicada pelo Eurobarometer nos 27 países da União Europeia (UE) tem vindo a ser progressivamente afinada desde o ano 2002. E quem cruzar os dados dos diversos países com outros indicadores sociais, chegará à conclusão de que a comparação traduz, senão uma situação coincidente, pelo menos, muito próxima da realidade. Desde logo porque o desporto é um produto da dinâmica político-social. Segundo o Eurobarometer (2022), 4% dos portugueses com mais de 14 anos de idade dizem praticar desporto com regularidade, 18% com alguma regularidade, 5% raramente e 73% nunca. Ora, esta situação, se não coincide, está muito próxima da realidade. A partir do Eurobarometer (2022) consideremos as seguintes premissas: 

1. Dos 9 109 225 portugueses com mais de 15 anos de idade (INE/PORDATA:2022), 4% (364 369) diz praticar atividade física e desportiva com regularidade e 18% (1 639 666) diz praticar com alguma regularidade; 
2. Segundo o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) (2024), tendo em atenção os dados relativos ao ano de 2022, existem 686 214 praticantes inscritos nas federações desportivas nacionais o que representa 7,5% da população com mais de 15 anos de idade. Entre os 4% de praticantes regulares do Eurobarometer e os 7,5% do IPDJ existe uma diferença de 3,5 pontos percentuais que interessa investigar. 

Mas, como mais importante do que conhecer aquilo que existe é compreender aquilo que está a mudar, vamos analisar os dados do IPDJ durante o corrente século tendo em atenção três momentos (2000; 2012 e 2022) a fim de melhor se compreender a situação e, finalmente, confrontarmos os números de 2022 do IPDJ com os do Eurobarometer (2022). 

Dos dados do IPDJ decorre que, desde 2000, o número de praticantes desportivos federados tem vindo a aumentar: 

• Em 2000: 322 761; 
• Em 2012: 524 093; 
• Em 2022: 686 214. 

Entretanto, é necessário olhar para estes números em pormenor e dar-lhes o devido desconto, na medida em que neles estão incluídas atividades como o aeromodelismo, a columbofilia e, entre outras, o xadrez que, numa acção moderna, não são considerados desportos. Também importa esclarecer em pormenor o que se passa nas várias modalidades. Por exemplo, entre outros aspetos, em 2023, embora os dados ainda sejam provisórios, o voleibol, à custa de programas básicos de iniciação na modalidade como o “gira vólei”, numa iniciativa similar à da ginástica com o chamado projeto “play gym”, apresenta um volume de 59.202 praticantes superando desportos como o: 

• Atletismo: 21 875; 
• Andebol: 48 594; 
• Basquetebol: 30 833. 

A Federação Portuguesa de Natação (FPN) também apresenta uma situação singular. Em 2012, tinha 11 232 praticantes para, em 2023, aumentar para um volume de 103 494 praticantes. Em matéria de prática desportiva federada, trata-se, evidentemente, de um número inflacionado de praticantes em consequência dos alunos inscritos nas múltiplas “escolinhas de natação” espalhadas pelo continente e ilhas, em utilitários programas de aprendizagem e manutenção primária “certificada” através de um programa promocional designado “Portugal a Nadar”. 

O que é que não conseguiria a FPA com uma iniciativa semelhante à do voleibol, à da ginástica ou à da natação? 

Nas circunstâncias de cada federação, não se põe em casa a veracidade dos números apresentados, mas é imperioso definir rigorosamente qual o critério de elegibilidade dos praticantes desportivos federados, masculinos e femininos nos vários escalões etários e determinar o sistema de apuramento e controlo de dados fornecidos pelas federações que devem obedecer a normas claramente estabelecidas e respeitadas sob pena de, no quadro de afetação dos recursos públicos, por deficiente informação, se acometerem injustiças. Já em 2016, José Leandro, ao tempo presidente da Federação Portuguesa de Vela (FPV), num documento de 15 de janeiro, alertou a tutela político-administrativa para o facto de o financiamento ao desporto federado “não ser consubstanciado em nenhum modelo equitativo visível” pelo que, entendia que a FPV estava a ser prejudicada. O problema é que a situação de inflação do número de praticantes federados através de crianças tanto dá jeito às federações que esperam receber da tutela mais uns euros, como à própria tutela protagonizada ao longo do tempo pelos partidos da governação que, assim, veem aumentar a prática desportiva federada que, sem cosméticas, apresenta valores abaixo da linha de água. 

O que é facto é que os resultados estatísticos apresentados pelo IPDJ estão a aumentar à custa do número de praticantes dos escalões etário de “até juniores” e de veteranos. A evolução da estrutura etária do desporto federado do ano 2000 ao ano de 2022 apresenta a seguinte evolução: 

• 2000: “Até juniores” (45,38%); Juniores (12,34%); Seniores (31,51%); Veteranos (2,35%); 
• 2012: “Até juniores” (58,01%); Juniores (9,34%); Seniores (26,67%); Veteranos (5,97%); 
• 2022: “Até juniores” (57,16%); Juniores (7,37%); Seniores (20,94%); Veteranos (14,53%). 

Quanto aos praticantes “até juniores”, já o referimos, há muito que algumas federações contabilizam como praticantes desportivos federados simples crianças. E a situação tem-se vindo a generalizar. A taxa de praticantes “até juniores”, na estrutura etária do desporto federado nos momentos indicados apresenta os seguintes valores: 

• Em 2000: 45,38%; 
• Em 2012: 58,01%; 
• Em 2022: 57,16%. 

Milhares destes ditos praticantes federados são crianças que não obedecem ao critério estatístico do Eurobarometer que só considera alguém como sendo praticante de atividades físicas e desportivas a partir dos 15 anos de idade. Não haveria qualquer problema, antes pelo contrário, se as coisas ficassem por aqui. Mas não acontece assim. Estas crianças, através de atividades de promoção de pouca consistência, para além da cosmética propagandística e nenhuma projeção estrutural relativamente à organização do futuro, são contabilizadas para efeitos das estatísticas oficiais e, depois, simplesmente, descartadas porque o sistema não tem capacidade, criatividade ou até vontade para as absorver. Em consequência, de 2000 a 2022, deu-se um aumento de 11,78 pontos percentuais na estrutura de prática “até juniores”. Um aumento que se traduz numa prática virtual na medida em que: 

Em 2000 a taxa de descarte anual dos jovens até aos 18 anos de idade foi de 72,81%; 
• Em 2012: 83,90%; 
• Em 2022: 87,11%; 
• De 2000 a 2022 deu-se um aumento de 14,3 pontos percentuais na taxa de descarte; 
• Há desportos em que a taxa de descarte anual supera os 90%. 

Nenhum sistema desportivo terá alguma vez êxito a funcionar com taxas de descarte desta dimensão. Quanto ao escalão etário de veteranos, na contabilidade das federações, de 2000 a 2022, aconteceu um aumento de 12,18 pontos percentuais. A sua evolução na estrutura etária foi a seguinte: 

• Em 2000: 2,35% 
• Em 2012: 5,97% 
• Em 2022: 14,53%. 

Nos últimos dez anos o aumento do escalão de veteranos na estrutura de praticantes foi de 8,56 pontos percentuais o que denuncia um sistema desportivo nacional no caminho dos dinossauros. À semelhança dos praticantes “até juniores”, os veteranos estão, ilusoriamente, a servir para aumentar o volume total da prática desportiva federada. Até já há federações a apelarem para que os praticantes informais veteranos, com uma prática desportiva recreativa esporádica, se federem só para aumentarem o volume estatístico do respetivo desporto. Esta situação, se fosse devidamente contabilizada, até seria de louvar, todavia, trata-se, tão só, de um expediente a fim de iludir a tutela político-administrativa. Mas o mais grave da estrutura etária do desporto federado português tem a ver com os grupos intermédios de praticantes juniores e seniores que, no seu conjunto, suportam a competição formal de onde decorre o alto rendimento: 

1. De 2000 a 2023, a involução da posição conjunta dos grupos etários de juniores e seniores na estrutura total de praticantes foi a seguinte: 

• Em 2000 os representavam 43,85%; 
• Em 2012 representavam 36,01%; 
• Em 2022 representavam 28,31%; 
• Em 2023 representavam 26,72%. 

2. No seu conjunto o número de praticantes juniores e seniores, de 2000 a 2022, sofreu uma redução de 17,13 pontos percentuais a uma média de 0,74% ao ano. O desporto nacional nunca atingirá os valores médios da prática de base ao alto rendimento dos países da UE conduzido por gente cheia de pressa que, tomada pela Síndrome da Galinha dos Ovos de Ouro, julga ser possível, através de um programa de preparação olímpica, correr a Maratona como se corre uma prova de velocidade. Gente que anda nisto há, pelo menos, vinte e cinco anos. 

Se, a partir das estatísticas do IPJD, compararmos o somatório dos praticantes juniores e seniores relativos ao ano de 2022 que perfazem um total de 194 229 verificamos que se trata de um valor bem inferior ao que resulta dos 4% dos praticantes regulares indicados pelo Eurobarometer que totalizam 363 636 mil. 

A questão estatística do desporto é de fundamental importância para o seu desenvolvimento. Planeia-se aquilo que se conhece e o planeamento será tanto mais eficaz quanto mais for suportado em dados quantitativos credíveis que, posteriormente, permitem avaliar os resultados. Um sistema desportivo sem uma inquestionável base estatística de sustentação, animado por uma cultura de mediocridade, incompetência e irresponsabilidade, por mais planos estratégicos que se façam que nunca passarão de ilusionismo, nunca saberá para onde deve ir nem onde quer chegar. A confirmá-lo, à parte de um ou outro resultado de excelência de atletas de exceção gerados no desporto nacional, aí está a equipa portuguesa que vai participar nos JO de Paris (2024) que, parafraseando esse enorme treinador de atletismo que foi António Fonseca e Costa relativamente aos JO de Los Angeles (1984), ― mesmo antes de partir, já está derrotada. Não pelos atletas ou treinadores, mas por dirigentes associativos e políticos que insistem num programa que está a dar cabo da estrutura e da dinâmica do desporto nacional. E, hoje, o sistema desportivo português encontra-se num círculo vicioso. 

Desde 2000, capturado por um absurdo programa de preparação olímpica, a funcionar no espírito tuga do “lá vamos cantando e rindo” que nada tem a ver com o espírito olímpico do Citius, Altius, Fortius, como já tivemos oportunidade de referir, levou quatro vezes mais atletas aos JO e desperdiçou 62,55 M€, que fizeram falta à promoção da prática desportiva de base que deixou de alimentar o alto rendimento. E porque os “níveis de integração” no programa de preparação olímpica (cf. Programa de Preparação Olímpica / Tóquio 2024 (IPJD/COP, p. 6), concebidos sobre o mantra do “não se discriminarem atletas em nome de uma seleção de elite”, em confronto com os critérios de elegibilidade para os JO determinados pelas Federações Internacionais (FI), são mais uma prova do quanto o sistema desportivo nacional não está a responder aos jovens portugueses, às famílias, ao desenvolvimento do desporto da base ao alto rendimento e ao País. Em resultado, depois de um financiamento de 22 M€: 

1. Dos 116 atletas previstos para competirem nos JO de Paris (2024) (80% de 145 integrados no programa de preparação olímpica) só 73 (50,31%) vão estar presentes. Note-se que no JO de Helsínquia (1952) Portugal esteve representado por 71 atletas; 
2. Portugal só vai competir em 15 desportos quando foi previsto competir em 17. Mas, considerando que nos 15 desportos estão incluídos três novos desportos (breaking, skateboarding e surf) que só passaram a fazer parte do Programa Olímpico do Comité Olímpico Internacional (COI) nos JO de Tóquio (2021), na realidade, Portugal só vai competir em 12 desportos. 
3. De Sydney (2000) a Tóquio (2021), já o referimos, Portugal esteve presente em 22 desportos. Todavia, só 7 estiveram sempre presentes em todas as edições dos JO ou 8 se considerarmos o triatlo presente desde 2004. 
4. E Portugal não vai participar em desportos como o badminton, o boxe, a esgrima, o futebol, o golfe, a luta ou o taekwondo. 

E, ao cabo de mais de cem milhões de euros, Portugal leva aos JO de Paris (2024) menos 43 atletas do que aqueles que estava previsto levar a um custo para o erário público de 301,4 mil euros por atleta quando, em Tóquio (2021), o custo por atleta ficou em 201,1 mil euros. E, se para os JO de Pequim (2008) foram previstas 5 medalhas falhadas, para os JO do Rio (2016), em grandes parangonas, foram anunciadas 12 medalhas (Público, 2015-11-11), quer dizer, um doze avo daquilo que viria a acontecer para os JO de Paris (2024) a nomenclatura limitou-se a programar os seguintes objetivos: 

• 4 medalhas; 
• 15 diplomas; 
• 36 classificações entre os 16 primeiros; 
• 57 pontos entre os 8 primeiros. 

Mas, ao cabo de trinta anos a falar de preparação olímpica, a nomenclatura foi incapaz de indicar os desportos, os eventos ou os atletas. Em consequência, mais uma vez, as olímpicas previsões estão mais perto dos favores dos deuses do que da competência dos homens, o que revela, tão só, o estado de inconformidade de um programa completamente inútil a funcionar, não na base da propaganda oficial do “unidos somos mais fortes”, mas na expressão desse grande dirigente desportivo que foi Acácio Rosa, na base do “todos ao molho e fé em Deus”. 

Perante mais este olímpico fracasso, a fim de criar uma “barreira de fumo”, a nomenclatura político-associativa, “embandeirou em arco” porque o número de mulheres (37) superou o número de homens (36). Um patético “embandeirar em arco” sem qualquer significado se, por mera hipótese académica, as equipas masculinas de andebol e futebol tivessem conseguido o projetado apuramento. Portanto, o que se espera é que as burocracias institucionalizadas não prejudiquem a natural linha de tendência da evolução do desporto entre as mulheres uma vez que a olímpica corporação desportiva é pródiga em, para além das boas práticas, utilizar as mulheres tal como uma rosa decorativa, cujo destino é o caixote do lixo logo que, aos olhos da nomenclatura macho, a rosa murchar. E, por isso, até se esqueceram de informar que o número de mulheres só superou o dos homens, devido a uma política desastrada de naturalizações de aviário sem qualquer sentido. 

Continuando entre as mulheres, no presente ciclo olímpico, uma das estórias que, certamente, ficará para a história de um desporto que não sabe onde está nem para onde vai, está a ser vivida por duas mulheres, ambas judocas, que acabaram por não protagonizar um momento partilhado das suas vidas o que prova a inutilidade de um programa de preparação olímpica que não serve os atletas, os clubes, a federação e o País. Telma Monteiro (n. 1985), uma judoca de excelência com um currículo desportivo impressionante, querida e estimada pela generalidade dos portugueses que se interessam pelo desporto, devido a uma lesão, não conseguiu o apuramento para os JO de Paris (2024). Esta situação, embora de lamentar, acontece circunstancialmente no alto rendimento pelo que sendo de lamentar não é de estranhar. O que não se percebe é como, ao cabo de trinta anos de um programa de preparação olímpica, um desporto como o judo com uma tradição portuguesa que vem da participação nos JO de Tóquio (1964) de Fernando Costa Matos (de quem, em 1968, no INEF, fui aluno), perante a quebra de uma atleta já a atingir o limite da carreira, não tenha na linha competitiva, pelo menos, uma atleta, se possível duas, capazes de a substituírem! 

E, enquanto os portugueses ainda digeriam com dificuldade a ausência de Telma em Paris, foram surpreendidos com a notícia de que a judoca (-57 Kg) portuguesa Mariana Carvalho Esteves (n.1996) havia obtido a qualificação para os JO de Paris (2024), não em representação de Portugal, mas da Guiné-Conacri. E, claro, a primeira pergunta que, certamente, muitos portugueses formularam foi: Porque é que a Mariana não foi selecionada para ir aos jogos no lugar deixado vago pela Telma? Tanto mais que, Mariana, perante a Federação Internacional de Judo e o Comité Olímpico Internacional, até podia estar numa posição elegível para poder ocupar o lugar deixado por Telma Monteiro. De ascendência africana por parte da mãe, a Mariana, desde muito cedo, começou a praticar judo. Em 2014, aos 18 anos de idade, em representação de Portugal, conquistou um 3º lugar no Mundial de Juniores. Desde então, apesar de vários resultados significativos nacionais e internacionais e de ter estado integrada no famigerado programa de preparação olímpica, aquilo que devia ter sido uma carreira bem pensada e programada através de um processo competente no domínio do alto rendimento a decorrer, de A a Z, sob a responsabilidade do Estado, não passou de um rodopio de paradoxos e contradições e mal-entendidos impossíveis de entender. O que acabou de acontecer foi uma inacreditável quebra na linha de progressão nos -57KG que já vinha do tempo de Filipa Cavalleri em que, num sistema em que o Estado, à revelia da Constituição, não tivesse abdicado das suas responsabilidades e obrigações, podia ter sido ocupada pela Mariana ou outra judoca na linha do alto rendimento do judo nacional. 

Um qualquer sistema de alto rendimento desportivo deve: 

• Estar perfeitamente integrado no processo global de desenvolvimento do desporto nacional; 
• Começar na escola na disciplina de educação física cujo programa deve ser concebido e organizado em função dos grupos etários, por áreas ou especialidades e de acordo com os interesses dos alunos e do País e não ao serviço dos interesses corporativos dos professores; 
• Prosseguir no desporto escolar em programas do lazer desportivo ao rendimento desportivo; 
• Espalhar-se por todo o território nacional, através de uma estrutura piramidal de clubes de base ao alto rendimento; 
• Ser, do ponto de vista técnico, coordenado de A a Z pelas federações cujos dirigentes devem ser responsabilizados; 
• Do ponto de vista político, deve decorrer sob a responsabilidade do Governo do País, através de um gabinete técnico que, no quadro das estruturas político-administrativas tenha os recursos, os meios humanos e as competências sistémicas para o efeito. Nenhum programa de preparação olímpica, algum dia, poderá cumprir, com eficiência e eficácia, uma missão estratégica que só pode competir ao Estado.

É assim que se passa na generalidade dos países. Os Comités Olímpicos Nacionais (CONs) não têm vocação, competência técnico-política nem legitimidade democrática para tal. Quando não se sabe para onde se quer ir qualquer caminho serve. Ora, quando qualquer caminho serve o destino certo é chegar-se a lado nenhum que é onde o desporto nacional se encontra.

sábado, 20 de julho de 2024

Os exames e a angústia no acesso ao superior


Nota
Chegámos ao momento da angústia para os alunos que terminaram o 12º ano e se submeteram aos exames de acesso ao superior. Não só para eles, mas também para os pais. Desde logo, para uma larguíssima maioria, a ansiedade de escolher, no "menu", o curso, a cidade, depois, a fase do "entra não entra" e, mais tarde, o sofrimento de deitar contas à vida no que concerne aos encargos mensais. Um tormento!



Já nem falo do processo completamente abstruso que envolve as médias escolares entre o 10º e 12º anos, conjugadas com o resultado dos exames, sejam quais forem as ponderações atribuídas. Centro-me, apenas, no final da história e aí, por uma décima, um jovem pode garantir o acesso no quadro dos seus sonhos e talentos e, por uma décima, pode ser "atirado" para uma alternativa que não desejam para a sua vida. Uma décima! E mais, questiono, o que difere um aluno de 17,5 de outro com 19 ou 20 valores, quando se sabe que, por mais rigorosos que sejam os critérios de avaliação dos exames, qualquer avaliação transporta sempre uma enorme subjectividade.

Junta-se a isto o alarde que certas escolas fazem com os seus resultados, como há dias li, salientando médias genericamente superiores às nacionais. Apenas propaganda. Paralelamente ao trabalho dos professores, não os vejo falar sobre a relação de mérito entre o trabalho realizado na escola e as "notas" à custa dos designados "explicadores" da matéria, que custam muito dinheiro aos pais. Tampouco os vejo, humildemente, assumirem quantos ficaram para trás e por que ficaram! Esta daria, certamente, uma boa Dissertação de Mestrado.

O Professor José Pacheco referiu que "a prova não prova". Concordo. Mas pior do que isso é manter um modelo que acaba por matar sonhos, talentos e gerar muitas frustrações. Só a nata é evidenciada. Neste sistema, um aluno com 87,5% (17,5) devia poder entrar em qualquer curso, muito mais ainda no curso que correspondesse à sua vocação.

Em Fevereiro de 2019, publiquei um texto da autoria do Professor Catedrático Domingos Fernandes. Deixo aqui um excerto para reflexão:

Por
Domingos Fernandes
Professor Catedrático da Universidade de Lisboa

"(...) Dir-se-ia que os exames podem ser utilizados com intenções e propósitos louváveis. Porém, os seus efeitos nefastos e indesejáveis estão largamente comprovados. O principal é o chamado “empobrecimento” do currículo, decorrente do facto de o ensino se concentrar no que “sai nos exames” ignorando tudo o mais (e.g., competências relacionadas com conteúdos específicos, aprendizagens de natureza social e emocional). Todas as disciplinas que não são objeto de exame perdem a sua relevância na formação dos alunos.
Por outro lado, os exames induzem práticas tais como: apostar mais nos alunos que se pensa poderem ter melhores resultados do que naqueles que, supostamente, não terão essa possibilidade; treinar respostas para certas questões; ensinar técnicas para rejeitar certas opções nas perguntas de escolha múltipla; e pressionar os alunos com mais dificuldades para desistirem. Temos assim um conjunto de efeitos indesejáveis que questionam frontalmente a natureza e a profundidade das aprendizagens assim supostamente desenvolvidas. A investigação tem evidenciado que os exames, por natureza, não contribuem para aprender melhor, com mais profundidade e compreensão. As avaliações internas, da responsabilidade dos professores, são as que podem melhorar substancialmente as aprendizagens de todos os alunos. Nestas condições, surgem desafios relativamente à forma, conteúdos e propósitos dos exames e também às suas relações com as avaliações internas, porque os seus efeitos nefastos superam, comprovadamente, os seus efeitos positivos. (...)"

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Inclusão ou exclusão encapotada!


Sem papas na língua e sem esmorecimento, Joaquim Azevedo acaba de publicar um livro (Modo de produção da exclusão escolar – olhar a escola a partir dos excluídos) que tem tanto de desafiante como de provocatório. Pretende mostrar, com base em dados empíricos, que, tal como está, a escola continua a excluir alunos, apesar de ter feito, nessa matéria, um percurso notável no período do pós-25 de Abril. É por vezes contundente na crítica a uma lógica de funcionamento que, para alguns alunos, não é só injusta, mas também “humilhante”. Mas faz essa análise para que, conhecendo e reconhecendo os mecanismos da exclusão, ela consiga mais facilmente dar uma resposta institucional e comunitariamente inclusiva. Fá-lo, de resto, a partir da experiência do Arco Maior, uma instituição socioeducativa por ele criada, na zona do Porto, para, precisamente, acolher os excluídos do ensino formal. Nesta entrevista exclusiva ao 7MARGENS, o investigador e professor jubilado da Universidade Católica, antigo governante e protagonista do ensino profissional, explica como funcionam os mecanismos de exclusão, mas também dá chaves para encontrar caminhos de saída … as quais serão aprofundadas num segundo volume que, desde já, anuncia.



7MARGENS – Como nasce este tema/perspetiva de abordagem?

JOAQUIM AZEVEDO – Devo este trabalho e esta pesquisa aos alunos do Arco Maior. Começámos em 2013 a trabalhar, procurando encontrar uma resposta educativa para os miúdos que abandonavam as escolas – e eram muitos, na altura, no Porto – começámos a conceber um modelo educativo que pudesse ajudar a fazer um caminho com eles no plano educativo, procurando também reinseri-los socialmente. Desde essa altura até hoje, já trabalhámos com mais de 500 miúdos e desse contacto contínuo com os casos, as situações, os dramas, as dificuldades deles e nossas, foi surgindo a pergunta: o que é que acontece nas escolas para eles serem excluídos e chegarem ao Arco Maior tão desestruturados, não acreditando em si próprios, desconfiando de tudo e de todos? É verdade que, em geral, eles têm famílias pobres e com problemas de violência doméstica, de abandono, é verdade que também vivem em contextos de pobreza e até segregação social. Mas há também uma intervenção da escola, acerca da qual há uma grande cortina de fumo. A minha ideia foi ir atrás verificar isso, tentar perceber.

7M – Ir atrás, como?

Pareceu-me que o caminho mais prático seria ir ver os processos individuais dos alunos – o que aconteceu desde que entraram na escola, de acordo com o que ficou registado nesses processos. Claro que, com alunos que têm problemas, conflitos, processos disciplinares, suspensões frequentes, os processos individuais são também volumosos, o que não acontece com os outros casos em que constam folhas adicionais, além das avaliações. Foram, pois, os miúdos que geraram a inquietação e a pergunta: “O que é que acontece?”.

7M – E o que é que acontece? Que permitem ver esses processos, em termos de mecanismos de exclusão?

Vê-se uma lógica que oculta, não uma lógica que esclarece e revela, sendo que há muitas coisas que contribuem para isso. No livro, identifico 12 passos… Por um lado, há uma deteção precoce de problemas relativos a uma tensão entre os miúdos e a escola e vice-versa. Isso gera, normalmente, uma catalogação. E aí começa o problema, porque estes miúdos são imediatamente identificados como miúdos em risco, miúdos problemáticos. Essa catalogação, que parece, à partida, muito inofensiva, vem a revelar-se profundamente prejudicial, porque ela mesma, em si, é uma negação do outro. Começa logo aí o problema do afastamento, do distanciamento.

“Trata-se de acender nos alunos o desejo de aprender”, considera Joaquim Azevedo. 


7M – É possível concretizar mais?

O facto de haver um aluno que é “de risco” leva a acionar medidas de apoio… Depois, há muita documentação que a escola elabora para justificar os défices desses alunos e as patologias – relatórios de psicólogos, de pedopsiquiatras, que se vão somando, a cada ano. Com alunos que têm muitos défices, trimestralmente os conselhos de turma analisam e passam ao papel listas infindáveis de défices desses miúdos, a que se juntam ainda os relatórios médicos. Os défices e as patologias, juntos, são desastrosos, desse ponto de vista. Tudo isto ajuda a criar uma armadura que ainda separa e distancia mais. Depois temos as reprovações – estes alunos reprovam e são incluídos em turmas como alunos mais velhos, repetentes – repetem o ano todo, mesmo que tenham tido sucesso a algumas disciplinas, o que é absurdo… Portanto, eles começam a ficar muito desfasados dos outros, havendo repetições que podem chegar a cinco vezes no mesmo ano de escolaridade.

7M – Parece ser mais do que desfasamento…

Isto é uma barbaridade. Falamos dos maus tratos familiares, mas, na nossa sociedade, temos de começar a falar dos maus tratos escolares, porque isto não pode acontecer. Esses miúdos ficam muito desalinhados com os outros e começam a tornar-se naquilo em que a escola acaba por os catalogar: problemáticos, inadequados, rebeldes, malcriados… isto é, eles transformam-se precisamente naquilo que sobre eles é projetado. Conseguem depois afirmar a sua identidade já não como a Ana ou o António, que lhes é negada, mas a do rebelde, o insolente que os fazem ser. Ligado a isto há muitas suspensões, há uma lógica escolar muito punitiva e pouco encorajadora, porque isso implica muita atenção, muita proximidade… Como isto não acontece, há essa punição sucessiva, muito agressiva, e o miúdo acaba por se convencer de que a escola não o quer e que ele não quer a escola nem serve para a escola. E, consequentemente, abandona.

7M – Como compreender, então, este abandono?

Este abandono – que é o termo que é usado – coloca o ónus sobre a criança ou o adolescente, porque foi ele que abandonou a escola, quando, na realidade, ele foi excluído da escola, ainda que dentro dela. Foi excluído de um conjunto de benefícios que a escola lhe deveria proporcionar – desde logo atenção, cuidado. Portanto, dá-se uma exclusão interior. A exclusão (para o exterior) é, depois, um ato muito menos relevante.

7M – Há experiências de resposta bem-sucedidas, isto é: que procurem remar num sentido mais centrado nas pessoas dos alunos?

Nas escolas do ensino geral, há respostas para muitos problemas destes, desde apoios pedagógicos até outro tipo de percursos alternativos… Sobretudo há professores que trabalham muito bem em termos de atenção, proximidade e respeito para com estes miúdos e que fazem um trabalho muito grande com eles, incluindo em tutorias que estão legalmente previstas. Ou seja, há muito trabalho que impede que o número [de abandonos] seja ainda maior. Aqui, nós estamos a falar dos miúdos que chegam ao Arco Maior. Há também outros cidadãos que têm percursos de vida muito próximos destes, mas que não chegam a este ponto, porque a escola é capaz de encontrar no seu seio não só professores aptos a trabalhar com eles, mas também circunstâncias e modalidades organizacionais e pedagógicas que ajudam a encontrar solução para eles. Portanto, acredito que a maior parte destas situações têm solução no interior das escolas e a preocupação pela inclusão é generalizada e genuína. A questão, por conseguinte, é que, apesar disso, há situações muito diferentes em que se gera muito este clima de tensão e de comportamento disruptivo… a escola então fracassa muito rapidamente na capacidade de responder. É claro que a taxa de abandono escolar precoce decresceu imenso, em Portugal, nas últimas décadas. Neste momento, poderá ter crescido alguma coisa com a imigração, mas temos oito por cento e tínhamos 50 por cento.

7M – Porém, no estudo, fica a ideia de que esses números podem, ao mesmo tempo, esconder realidades diferentes…

Sim, essa é uma outra questão que eu lanço e que é importante: as escolas estão muito colonizadas por uma lógica que eu chamo de “performatividade exibicionista”, que é a lógica de trabalhar para os resultados. Há escolas que conseguem encontrar solução para um conjunto de situações e resposta para muitos destes miúdos, mas há situações em que não conseguem, vê-se que não têm soluções pedagógicas alternativas, que também não conseguem pôr de pé modelos organizacionais diferentes para resolver estas situações e, dada a situação generalizada de desgaste e desmotivação, aderem a essa lógica. Ela pode traduzir-se em pretender apresentar 98 ou 99 por cento de sucesso, não interessando o que significa essa meta, mesmo que signifique fazer transitar um aluno que chega ao 9º ano com seis níveis negativos. Nós temos estado a desenvolver, nos últimos anos, esta lógica de trabalhar para os 98 ou 99 por cento de sucesso, o que quer que isso seja. E neste caminhar, nesta lógica, acabamos por cilindrar algumas situações mais difíceis e arrasá-las, empurrando para a exclusão.

Para Joaquim Azevedo, não chega dar a palavra aos alunos; é necessário escutá-los e envolvê-los na busca de soluções. 



7M – No livro Modo de produção da exclusão escolar, agora lançado, fica evidente a reduzida investigação feita do ponto de vista dos excluídos da escola e, mais ainda, que escute a voz desses excluídos. O que é que isto requer?

Requer tempo, que é uma dimensão que a escola tem de reivindicar ao conjunto da sociedade como nunca o fez. Isso implica reivindicar um espaço próprio e uma cultura própria. E essa cultura tem de ser a da atenção ou, como propõe um autor, o “paradigma do cuidado como desafio educativo”. Temos de pôr de pé uma escola que esteja particularmente atenta e capaz de cuidar de todas as situações, não na lógica de uma “inclusão degradada”, que é a dessa tal “performatividade exibicionista”, mas na lógica da proximidade, com respeito e cuidado, que permitam criar respostas individuais ou em pequeno grupo, como se justificar, que sejam capazes de encorajar todos e não apenas responder à maioria. Isto porque os oito ou dez por cento de excluídos de hoje são muito mais excluídos do que os 50 por cento que abandonavam há 50 anos, dado que vivem uma situação de exposição à exclusão muito mais grave.

7M – Como se poderia concretizar esse modelo de escola?

Eu costumo sintetizar isso à volta da ideia de participação. Vejamos: as crianças ou os jovens não participam da vida da escola. Não são chamados, não intervêm… e quando são chamados a intervir, isso acontece numa lógica de mera auscultação, que vem dirigida de cima para baixo e que conduz àquilo a que os adultos pretendem que se chegue. É, assim, uma auscultação muito pouco democrática. Pelo contrário, pondo-nos no lado das crianças e adolescentes que são ouvidos, ouvir com atenção, ouvir com cuidado, ouvir com tempo, ouvir sem inundar de moral o discurso e sem ter nada na manga, ouvir empenhadíssimo, ouvir a “olhar fixamente”, como propunha Simone Weil, isso permite que a realidade nos fale. Se isso acontecer, a vida destes alunos fala-nos. Isso exige estarmos disponíveis para ouvir o que eles dizem. E, a partir do que nos dizem, as crianças e adolescentes fornecem o material necessário para trabalhar com eles. São eles que têm esse material. O que nos diz a experiência do Arco Maior é que isso é viável e é possível. Torna-se possível, num ambiente diferente, de respeito e proximidade, romper a carapaça que qualquer cidadão cria quando é maltratado, fazendo com que eles, lentamente, se vão abrindo e permitam entrar num jogo que é o jogo do desejo. Trata-se de acender neles o desejo de aprender e de fazer com eles esse percurso.


7M – Como dar corpo a esse tipo de participação?

O maior capital que as escolas têm são os alunos e esse capital é desperdiçado, caso não exista esta escuta. Se forem ouvidos nesta lógica genuína, para em conjunto construir soluções educativas, eles tornam-se preciosos e indispensáveis. Quanto a esta ideia da participação dos alunos, desde as assembleias de turma até à participação na gestão do próprio currículo e mesmo na avaliação, se é verdade que já se fez um caminho grande, também é certo que estamos ainda na infância deste processo. E isso porque os miúdos não fazem parte do processo, já que são objeto do ensino e aprendizagem, de uma “maquinaria” que está pré-estabelecida.



Adolescentes do Arco Maior, em performance. Foto: Arquivo do Arco Maior

7M – Perante um fenómeno que é multidimensional, não se pode deixar de considerar as políticas, a nível local, nacional e europeu. Que aspetos ter em conta, nesta dimensão?

A escola não age sozinha e a minha sugestão, enunciada na parte final do livro, passa pela construção de projetos que designo por sociocomunitários, construídos localmente e comunitariamente, envolvendo as instituições da comunidade, desde as famílias (ou, não sendo possível, quem nas políticas sociais está mais próximo das famílias). Chamo-lhes “projetos de tolerância zero” face à humilhação escolar, porque assentes na recusa de lógicas de humilhação e marginalização de crianças. Isso é viável e é possível. De resto, há escolas que têm estado envolvidas em processos desse tipo e que conseguem resultados muito interessantes. Estes projetos têm que envolver o Ministério da Educação, porque é preciso, muitas vezes, criar mecanismos específicos que exigem autorizações especiais, casuísticas. Em vez de medidas pré-formatadas e gerais, é necessário um referencial genérico e, depois, flexibilidade bastante para adaptar localmente, em cada contexto específico. Estes projetos precisam de ser muito trabalhados e negociados institucionalmente. Podem surgir e desenvolver-se no interior da escola, num quadro de autonomia pedagógica, mas precisam desse envolvimento e horizonte sociocomunitário.

7M – No livro agora publicado, anuncia-se um segundo volume.

Sim, o próximo livro parte da experiência no Arco Maior durante estes dez anos para desenvolver uma pedagogia que vai ao encontro da possibilidade de incluir e reinserir socialmente estes adolescentes, que temos posto em prática e que tem dado bom resultado, nomeadamente quanto às dinâmicas de participação dos alunos. Esse segundo volume quer ajudar a pensar a escola e como é que ela pode ser outra, de outra maneira, no século XXI. Com as mudanças que a sociedade conhece, a escola tem mesmo de se reinventar, sob pena de se tornar uma instituição ridícula e irrelevante.


domingo, 14 de julho de 2024

Discurso conforme as circunstâncias


O secretário regional da Educação da Madeira discursa conforme as circunstâncias. Quando interessa faz disso propaganda política; quando a situação não é favorável, tal como o "rapper", "assobia para o lado". Isto a propósito dos famigerados "ranking's" das escolas e os resultados dos testes PISA.



Ontem, sobre os "ranking's", assumiu: "(...) nós não tomamos como referência essa hierarquização" dos estabelecimentos escolares. Entre as secundárias da região verificou-se que as classificações se situaram entre 146º (12,23) e 595º (10,00 valores); entre escolas básicas entre 49º e 1144º.

Concordo com o titular da pasta, pois tal como já escrevi: "(...) O Ministério da Educação continua a favorecer uma comparação com aquilo que não deve ser comparado. A aprendizagem não se alicerça em um campeonato entre estabelecimentos de aprendizagem, isto é, os da primeira liga (escolas privadas) e os do campeonato de Portugal (escolas públicas); entre os que dispõem de significativos recursos financeiros e os outros. A aprendizagem não visa, pontual e circunstancialmente, obter uma dada classificação colectiva e, no ano seguinte, encontrar-se de meia tabela para baixo. Ora, meter no mesmo rol instituições públicas e privadas constitui um erro grosseiro e desonesto. Não é de bom senso e é despido de rigor, directa ou indirectamente, comparar instituições de natureza privada, cujos alunos, normalmente, têm origem em famílias com outro tipo de formação e bem-estar, com as públicas que abrigam muitos milhares que transportam as históricas consequências das graves assimetrias económicas, sociais e culturais (...)"

O problema é outro. Ora bem, quer os "ranking's", abusivamente publicados pelo Ministério da Educação, quer os teste PISA constituem avaliações globais ao desempenho dos estudantes. Só que, no final de 2023, o político, no apuramento PISA, teceu elogios à qualidade dos estudantes madeirenses na literacia de leitura, matemática e ciências, colocando-os praticamente a par da Finlândia, Suécia, Dinamarca, Alemanha, França e, destacadamente, à frente dos resultados de Portugal Continental. 

Literacia de Leitura
1º Finlândia 490
Madeira 487
Continente 477

Literacia Científica
1º Finlândia 511
Madeira 492
Continente 484

Literacia Matemática
1º Dinamarca 489
Madeira 474
Continente 472

Com estes resultados seria lógico deduzir que, a Região da Madeira, está no topo do Mundo, pelo menos Europeu, no que à Educação diz respeito. Entretanto, surgem os "ranking's" que manifestam exactamente o contrário. Eu sei onde reside a incoerência, mas ficará para depois. Por agora, poder-se-á concluir que "a mentira tem perna curta". 

Hoje a história já é outra. Talvez para esconder a realidade, através de um estudo gerador de muitas dúvidas, porque passa ao lado de variáveis muito importantes, traz à colação a importância dos manuais digitais: "Manuais digitais trouxeram notas mais altas". Vou-me ficar por aquilo que o falecido Professor Doutor Santana Castilho, num encontro de professores, realizado no Funchal, disse sobre a utilização dos manuais digitais. Sumariamente, assumiu que nos Estados Unidos, a implementação dos manuais digitais, iniciada há oito anos, foi abandonada, porque os cientistas concluíram que o desenvolvimento cognitivo das gerações mergulhadas no digital é equivalente ao das crianças de 8/9 anos de há 30 anos; por outro lado, são cinco vezes mais caros para além de ter crescido em 30% as doenças oftalmológicas. 

O estudo, hoje publicado, fez-me lembrar a história que se conta nos meios académicos sobre actos de investigação sem rigor: um desses "investigadores" cortou uma pata a uma rã e disse para a rã saltar. E a rã saltou. Retirou uma segunda pata e uma terceira e a rã continuou a saltar. Retirada a quarta, mandou rã saltar e esta não saltou. Conclusão do estudo: uma rã sem patas é surda!

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Ludus pro Patria II Sob a Síndrome do Concorde


Por
Gustavo Pires
Professor Catedrático Jubilado
da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa
Observador - 18.06.2024

O desporto português tem sido condicionado por um programa de preparação olímpica que funciona na lógica da Síndrome do Concorde que só voou porque o eventual cancelamento seria pior que os prejuízos. 



Desde meados dos anos noventa do século passado, em consequência da queda do Muro de Berlim e da desagregação da URSS, as vitórias desportivas nas competições internacionais, para além das olímpicas disputas no âmbito da Guerra Fria entre os EUA e a URSS e seus satélites, começaram a ser valorizadas pelos Governos da generalidade dos países como, até então, nunca tinha acontecido. E as democracias liberais que estavam, sobretudo, interessadas em criar condições de acesso generalizado das populações à prática desportiva, começaram a olhar para os resultados nos grandes eventos porque, no quadro da economia global, as vitórias desportivas internacionais passaram a assumir uma inusitada importância política: 

(1.º) Do ponto de vista interno, no âmbito do entorpecimento social, transformaram-se num dos melhores afrodisíacos para o poder instituído; (2.º) Do ponto de vista externo, no quadro do neomercantilismo global, tornaram-se num excelente catalisador de negócios. 

A partir de então, independentemente de os países serem grandes ou pequenos, ricos ou pobres, autocracias ou democracias, as vitórias nas competições desportivas internacionais começaram a fazer parte das agendas políticas dos países. De Seul (1988), os últimos JO em que a URSS esteve presente, a Tóquio (2021), participaram mais 46 países, competiram mais 2866 atletas em mais 10 desportos, mais 19 disciplinas e mais 102 eventos. E as competições pelos primeiros lugares começaram a ser mais renhidas. Relativamente a Seul, em Tóquio os dez primeiros países ganharam menos 15,07% das medalhas em competição e os 20 primeiros países ganharam menos 20,01%. Em consequência, mais 12,5% dos Países ganharam uma medalha. Portanto, em trinta e três anos, envolveram-se nos JO mais 46 países, não para fazer turismo desportivo ao estilo do ir aos JO com 92 atletas para ganhar uma medalha de bronze, mas para, no espírito do citius, altius, fortius, ganhar. E, para ganhar, os países tiveram de: 

(1.º) Centralizar no poder político as decisões de interesse nacional, relativas ao desenvolvimento do desporto, da base de prática ao alto rendimento; 
(2.º) A partir da base zero, realizar o levantamento e a análise da situação desportiva e extradesportiva; (3.º) Identificar dificuldades e estrangulamentos; 
(4.º) Tirar partido da análise racional do quadro condicionante; 
(5.º) Identificar e integrar as forças e superar as fraquezas; 
(6.º) Apurar as próprias competências distintivas e as competências comparativas relativamente aos demais países; 
(7.º) Esclarecer quais os desportos críticos de sucesso; 
(8.º) Clarificar os processos de tomada de decisão; 
(9.º) Determinar objetivos claros e metas quantificadas; 
(10.º) Garantir os recursos humanos, materiais e financeiros necessários; 
(11.º) Dividir o trabalho e atribuir responsabilidades; 
(12.º) Integrar e alinhar processos de coordenação e conjugação de trabalho; 
(13.º) Desencadear as necessárias sinergias e combater inúteis burocracias; 
(14.º) Estabelecer marcos de avaliação e correção da trajetória; 
(15.º) Envolver os diversos protagonistas quer direta, quer 3 indiretamente interessados; 
(16.º) Instituir um sistema de controlo em paralelo, externo, independente e competente. 

Ao tempo, o desporto português, ainda vivia sob o absurdo cultural dos anos sessenta proveniente da nova esquerda francesa contaminada pelo livrinho vermelho mais ou menos indecifrável de Mao Tsé-Tung. E, ao estilo das recomendações de Zhou Enlai (1898-1976) aos atletas chineses antes de partirem para os Jogos das Novas Potências Emergentes em Jakarta (1963) e Phnom Penh (1966), a equipa olímpica portuguesa partiu para os JO de Sydney (2000) sob o mantra: “não vos peço resultados, dignifiquem Portugal”. Embora a nacional inteligência desportiva afirmasse ter sido “realizada a melhor preparação olímpica de todos os tempos” (Record, 2000-09-03), porém, por via das dúvidas, simultaneamente, cunhou uma das mais idiotas metáforas alguma vez produzidas no nacional olimpismo: “uma preparação (olímpica) adequada não é sinónimo de êxito”. Quer dizer, os resultados eram o que menos lhes interessava. O projeto olímpico devia ser avaliado, não pelo número de medalhas conquistadas, mas pelo volume de trabalho burocrático realizado que, hoje, a nomenclatura traduz e reproduz pelo eufemístico “acrescentar valor”. E, a partir de então, o desenvolvimento do desporto português tem sido condicionado por um programa de preparação olímpica que, desde a hecatombe acontecida nos JO de Pequim (2008), passou a funcionar na lógica da Síndrome do Concorde, o avião supersónico anglo-francês que só voou porque o eventual cancelamento da sua produção e posterior operação provocaria incómodos políticos bem maiores do que aqueles que resultavam dos prejuízos económicos. 

E, à revelia do artigo 79.º da Constituição e de uma ética de autenticidade subjacente ao citus, altius, fortius da cultura olímpica, o programa evoluiu do medíocre “não vos peço resultados, dignifiquem Portugal” dos JO de Sydney (2000) para o não menos medíocre “não vamos discriminar atletas em nome de uma seleção de elite” institucionalizado desde os JO do Rio (2016). E esta olímpica cultura de nivelar por baixo, que de quatro em quatro anos se expressa nos eufémicos melhores resultados de sempre, desencadeou inimagináveis efeitos perversos no sistema desportivo nacional. Vasileia Karachilou uma velejadora grega, porque se incompatibilizou com a Federação Grega de Vela foi aliciada a vir para Portugal. E, em novembro de 2003, declarou à agência Lusa: “Sou grega, mas estou supercontente por competir por Portugal, é um novo desafio. Uma fantástica oportunidade e um grande passo na minha vida” (Lusa, 2022-11-23). O que aconteceu foi que, mesmo sem ter nacionalidade portuguesa, a velejadora, não se sabe como, munida de uma licença passada pela Federação Internacional de Vela (World Sailing) que, do ponto de vista jurídico-diplomático, vale zero, sob o veemente protesto do Comité Olímpico Grego passou a competir sob a bandeira portuguesa, entre outros eventos, no Mundial de Vela Haia (2023). E o presidente da Federação Portuguesa de Vela (FPV), para além de afirmar que “seria “bom” poder contar com a velejadora nos Jogos Olímpicos”, ainda acrescentou que Vasileia já estava a dar “formação a velejadores portugueses…” o que revela o estado em que se encontra um dos desportos mais antigos senão o primeiro praticados em Portugal.

Finalmente, ao estilo das tragicomédias gregas, segundo o Observador (2024-04-22), Vasileia acabou por ficar fora da equipa portuguesa para os JO de Paris (2024) uma vez que não lhe foi atribuída a nacionalidade portuguesa. E, pelos vistos, também não vai competir pela Grécia conforme se pode confirmar em (World Sailing | Paris 2024 Olympic Games – Who’s Qualified?) já que a quota para os JO conseguida pela velejadora grega na classe de embarcação ILCA 7 pertence a Portugal. Depois deste desfecho o que se espera é que a tutela político administrativa já tenha mandado abrir um inquérito a fim de apurar responsabilidades uma vez que a velejadora foi aliciada para um projeto irrealizável, desde logo porque a Grécia não é um país do Leste europeu, africano, da América central ou do Sul. E se o inquérito não foi levantado a velejadora já devia ter apresentado na Secretaria de Estado do Desporto um pedido de esclarecimento que, eventualmente, poderá transitar para o Ministério Público uma vez que, seguramente, existem responsabilidades a apurar já que a velejadora, no imediato, ficou com a sua carreira desportiva destroçada. 

Outro exemplo dos muitos que caracterizam o estado de desorientação política em que o desporto nacional se encontra é o da atleta (saltadora / comprimento) de São Tomé e Príncipe, de seu nome Agate Sousa que, em maio de 2024, a dois meses e meio dos JO de Paris (2024), foi autorizada pela World Athetics (Federação Internacional de Atletismo) a competir por Portugal uma vez que, entretanto, sem que se saiba exatamente quando e em que circunstâncias, adquiriu a nacionalidade portuguesa. Embora este caso seja bem diferente do anterior, trata-se de mais um reconhecimento “just in time” da nacionalidade portuguesa que levanta questões acerca da maneira como as naturalizações de atletas estrangeiros estão a ser conduzida. Sobre Agate Sousa, depois de o contactar, recebi, com data de 23 de janeiro de 2024, do Presidente do Comité Olímpico de São Tomé e Príncipe, João Costa Alegre o seguinte email: “Se dependesse do Comité Olímpico de STP, ela não seria tão já. Mas como não depende de nós ela até pode vir a ser. Mas que fique claro que nós estamos dispostos a ir a onde for, para manifestar o nosso mal-estar e ver a justiça feita, porque esta atleta ainda não reúne requisitos, conforme a Carta Olímpica, para representar Portugal nos Jogos Olímpicos, Paris 2024. O nosso descontentamento foi tornado público, ao Comité Olímpico de Portugal, CIO, ACOLOP, ACNOA e outras organizações do Movimento desportivo e Olímpico. Nós estamos aguardando para vermos o desfecho desta novela. Infelizmente, Portugal como membro da nossa Comunidade, devia jogar outro papel e não este. Mas esperar quê de alguém que tem uma atitude neocolonial. Com este comportamento fica claro que os países mais pobres e com fracos recursos, não têm o direito e nem hipóteses nunca de sonhar chegar ao pódio num Jogos Olímpicos. Portugal com esta atitude, matou o nosso sonho, os esforços consentidos, e toda uma estratégia delineada para este efeito. Contrariou todas as nossas expectativas, porque o que nós esperávamos, era apoio e encorajamento. O que infelizmente não aconteceu. 

A história é longa e com vários contornos, o futuro dirá”. Agate Sousa ganhou bronze nos Europeus de Roma (2024 de 7-6 a 12-6), já sob a bandeira portuguesa. Do ponto de vista pessoal, trata-se de um extraordinário feito e um orgulho para a atleta. Mas, do ponto de vista institucional, revela a degradação moral em que o desporto português está a cair. Para Pierre de Coubertin (1863-1937) (Essais de Psychologie Sportive,1913) “o desporto é apenas um coadjuvante indireto da moralidade. Para que se torne seu adjuvante direto, é necessário atribuir-lhe um objetivo ponderado de solidariedade que o eleve acima de si mesmo. Esta é uma condição sine qua non para a colaboração entre o desporto e a moralidade”. O que seria realmente de louvar, como o próprio Presidente do COSTP alvitrou, era ver a atleta competir por São Tomé e Príncipe em Paris (2024) e, com a sorte dos deuses, até ganhar uma medalha pelo seu país de origem. Depois, como qualquer um podia pedir a nacionalidade portuguesa e usufruir para o resto da vida da dupla nacionalidade. Se assim fosse, seria, certamente, uma heroína no seu país de origem e muito bem-vinda em Portugal. Entretanto, entre as várias perguntas a que as autoridades políticas e desportivas portuguesas deviam responder destacamos duas: (1.ª) Porque é que Portugal recuou perante o Comité Olímpico Grego e não perante o Comité Olímpico de São Tomé e Príncipe? (2.ª) Do ponto de vista ético-moral qual a diferença entre a obtenção da nacionalidade portuguesa para fins de acesso um tratamento médico negado no país de origem ou para fins de acesso aos JO igualmente negado no país de origem? As políticas públicas no âmbito do desporto, uma atividade com as suas idiossincrasias, devem esclarecer claramente as condições em que podem ocorrer as naturalizações de atletas estrangeiros. Porque, se não o fizerem, cortam as perspetivas aos jovens desportistas portugueses que, a todo o momento, correm o risco de ser preteridos por atletas estrangeiros que, numa solução de “outsourcing”, são naturalizados à última da hora. Este esclarecimento tem tanto mais razão de ser quanto se sabe que, segundo dados oficiais (IPDJ), dos JO de Sydney (2000) aos de Tóquio (2021), a taxa de descarte dos jovens portugueses federados aumentou 16 pontos percentuais. E, nos últimos dez anos, de 2013 a 2023, cresceu mais de 4 pontos percentuais. E se expurgarmos modalidades como o xadrez, a columbofilia e outras do género a situação ainda é mais dramática. O estado atual do desporto nacional resulta de uma visão medíocre do olimpismo, do “prefiro, sem hesitações, regressar à apologia da participação, à honra da presença nos Jogos, à nobreza que envolve o simples ato de competir sabendo-se que não se pode ganhar”, ideia expressa no Relatório de Missão aos JO de Sydney (2000) que nada tem a ver nem com o pensamento de Coubertin, nem com o espírito olímpico uma vez que entra em conflito a excelência do citius, altius, fortius que lhe é subjacente. Em consequência, ao cabo de 24 anos, apesar dos volumosos recursos investidos, os resultados globais das participações portuguesas nos JO pouco ou nada melhoraram: 

(1.º) Nos JO de Sydney (2000), participaram 61 atletas a um custo de 146 mil euros por atleta que competiram em 13 desportos. Portugal ganhou 2 medalhas (0,0,2) o que significa 30,5 atletas por medalha e colocou até ao oitavo lugar 7 atletas (11,47%) que obtiveram 28 pontos (0,45 pontos por atleta); (2.º) Nos JO de Tóquio (2021) participaram 92 atletas a um custo de 201 mil euros por atleta que competiram em 17 desportos. Portugal ganhou 3 medalhas (0,1,2) o que significa (30,6 atletas por medalha e colocou até ao oitavo lugar 13 atletas (14%) que obtiveram 44 pontos (0,47 pontos por atleta) (as marcas dos atletas naturalizados na hora foram expurgadas); Depois de participar nos JO do Rio (2016) com 92 atletas em 16 desportos e nos JO de Tóquio (2021) também com 92 atletas em 17 desportos, a menos de 2 meses dos JO de Paris (2024), já com poucas oportunidades de novos apuramentos, Portugal tem garantida a participação de menos de cinquenta atletas em 12 desportos. A fim de, à última da hora, salvar esta situação que, há muito, se previa, Portugal foi aos Jogos Europeus Cracóvia (2023) com uma comitiva de mais de 300 elementos, entre os quais 206 atletas para competirem em 23 desportos de alguns dos quais (p/ex. muaythai ou teqball) a grande maioria dos portugueses desconhece até a sua existência. Apesar do número de atletas portugueses, que excedeu o da maioria dos países, Portugal não conseguiu apurar um único atleta para os JO de Paris (2024) e estavam a concurso noventa e uma presenças. Acabou por ficar em 21.º lugar atrás da Eslovénia, da Geórgia, da Irlanda, da Croácia, da Turquia e da Roménia. E, se considerarmos o rácio (n.º de atletas/medalha) Portugal, piora a sua performance uma vez que com um fraquíssimo rácio de 28 atletas por medalha passa do 21.º lugar para o 28.º ficando atrás da Sérvia, da Bulgária e do Azerbaijão, entre outros. A estratégia obriga a opções. Todavia, a participação portuguesa, dos JO Sydney (2000) aos JO de Tóquio (2021), aumentou 64% dos desportos e 50% dos atletas. Durante o período, dos 22 diferentes desportos em que os atletas portugueses competiram só sete estiveram sempre presentes (oito se considerarmos o triatlo desde 2004) em todas as edições dos JO. Esta situação revela um programa de preparação olímpica, em roda livre, a correr atrás dos acontecimentos, sem qualquer capacidade para organizar o futuro. Quer dizer, estamos perante uma oportunista e demagógica conceção estratégica de “pesca à rede” que, para além de não produzir resultados e promover injustiças sociais, provoca estragos na prática desportiva de base dos portugueses, uma vez que, inutilmente, se estão a consumir recursos que deviam ser aplicados na promoção da atividade física e desportiva. Nas últimas seis edições dos JO, Portugal esteve presente com 480 atletas sendo que só 113 (23,54%) ficaram entre os dezasseis primeiros. Isto significa que Portugal levou aos JO quatro vezes mais atletas do que aqueles que devia ter levado. Ir aos JO é para quem tem uma forte probabilidade de ficar entre os dezasseis primeiros. 

Admitindo-se algumas exceções. Por exemplo, Nelson Évora (triplo salto) nos JO de Atenas (15,72 m) não se classificou para a final. Nos JO de Pequim (17,67 m) ganhou a medalha de ouro. Atendendo a que os custos de cada uma das edições dos JO foram; Sydney (2000): 8,9 M€; Atenas (2004): 10,9 M€; Pequim (2008): 14 M €; Londres (2012): 15,1 M€; Rio (2016): 16 M€; Tóquio (2021): 18,5 M€, conclui-se que, durante o corrente século, houve um excesso de despesa no programa de preparação olímpica de 62,55 M€. Em consequência, de tais excessos, porque já não existem “árvores das patacas”, as federações desportivas acabaram subfinanciadas e modalidades coletivas de enorme potencial como o andebol e, entre outras, o rugby, acabaram prejudicadas. E não foi por falta de dinheiro. Segundo os últimos dados do Eurostat, em 2021: 

(1º) A taxa média das despesas das administrações públicas relativas aos serviços recreativos e desportivos dos países da UE foi de 0,7%; 
(2º) As taxas mais elevadas foram registadas na Hungria (1,7%), na Estónia (1,3%), na Suécia (1,2%), nos Países Baixos (1,2%); 
(3º) As taxas mais baixas verificaram-se na Bulgária (0,3%) e na Irlanda (0,4%); 
(4º) Portugal despendeu 0,8% pelo que ficou acima da média dos países da UE (0,7%); 
(5º) Portugal ficou acima da Bélgica (0,7%), da Bulgária (0,5%), da Alemanha (0,5%), da Irlanda (0,4%), da Itália (0,5%), da Letónia (0,5%), da Áustria (0,5%), da Eslovénia (0,6%) e, da Eslováquia (0,4%). Os 0,7% da despesa pública portuguesa representa € 822 milhões. 

Tendo em consideração os 1 982 613 praticantes de atividade física e desportiva de base que decorrem do cruzamento entre os dados de prática atividade física e desportiva do Eurobarometer e os dados demográficos (INE / PORDATA), Portugal aplicou uma verba de €415 per capita em serviços recreativos e desportivos. Com €415 per capita Portugal ocupa a 14ª posição entre os países da UE (24):

(1.º) Suécia: €755; (2.º) França: €737; (3.º) P. Baixos: €732; (4.º) Estónia: €700.; (5.º) Hungria: €684; (6.º) Grécia: €621; (7.º) Áustria: €588; (8.º) Finlândia: €559; (9.º) Bélgica: €552; (10.º) 10 Dinamarca: €544; (11.º) Itália: €519; (12.º) Chéquia: €472; (13.º) Espanha: €420; (14.º) Portugal: €415; (15.º) Croácia: €379; (16.º) Alemanha: €377; (17.º) Polónia: €331; (18.º) Lituânia: €287; (19.º) Roménia: €279; (20.º) Irlanda: €242; (21.º) Eslovénia: €227; (22.º) Bulgária: €222; (23.º) Letónia: €206; (24.º) Eslováquia: €198. 

De há quase trinta anos a esta parte, o desenvolvimento do desporto nacional tem estado condicionado por um inútil programa de preparação olímpica que nunca foi objeto de uma avaliação externa independente e competente. Só continua a existir porque a sua extinção causará incómodos políticos bem maiores do que aqueles que resultam de uma prática desportiva de base vergonhosa e resultados no JO medíocres abafados. Apesar disso, de acordo com a Síndrome do Concorde, o Governo que se cuide porque, de acordo com alguma comunicação social cega, surda e muda, está sob “escrutínio apertado”