domingo, 4 de maio de 2025

Colecção Vidas (des)conhecidas - Padre José Martins Júnior


Numa edição da CADMUS (uma marca da Associação Académica da Universidade da Madeira) foi ontem apresentado o livro que espelha, naquilo que é essencial, a vida e obra do Padre José Martins Júnior. Um texto de Cristina Carvalho e ilustrações de Rafaela Rodrigues (ambas no canto superior direito da foto). Os testemunhos que ali escutei, confesso, emocionaram-me, pelas narrativas genuínas de quem foi tocado pelo Homem de cultura transversal. "(...) Serão sempre poucos os livros e documentos publicados sobre o Padre Martins. Porque a sua presença foi daquelas que não cabem bem em páginas, mas sim nas memórias, nos gestos, nas sementes que deixou em cada um de nós. Fará sempre sentido que se fale sobre ele, sobre a sua marca nas pessoas e nesta Terra que tanto amou". - Cláudia Carvalho.




Três figuras apresentaram a Obra. 
Cláudia Carvalho, Fisioterapeuta, enalteceu a sua participação na Tuna criada pelo Padre Martins Júnior: (...) É sabido por todos a importância que esta tuna teve e tem ainda hoje na nossa comunidade, por tantas razões, mas, essencialmente, pelo conhecimento musical que foi possível passar a crianças e jovens que não teriam outra forma de recebê-lo. Aprendi a tocar bandolim na tuna e sendo eu esquerdina — como mais três colegas na altura — fomos apanhados naquela encruzilhada clássica: tocamos também com o braço do instrumento para o mesmo lado, como é típico noutras tunas ou orquestras se pensarmos noutros instrumentos, ou mudamos a nosso favor? Com o Padre Martins a resposta foi simples. Em vez de nos obrigar a tocar como os restantes, ele deu-nos liberdade. Literalmente, a liberdade de inverter o bandolim e tocar à nossa maneira. E nós, quatro jovens músicos esquerdinos, lá estávamos, a tocar com a mão esquerda como se fosse a coisa mais natural do mundo — e com ele a achar imensa graça àquilo também porque já nos confidenciou: que adorava ser também esquerdino ou talvez porque, sendo um homem de convicções fortes — e, digamos, tendencialmente à esquerda —, via em nós uma espécie de revolução musical. Mas no fundo, deu-nos uma lição de pedagogia, ele via as pessoas como eram e não como "deviam" ser. O ensino musical que nos ofereceu foi isso mesmo — uma lição de inclusão, criatividade e identidade. (...) Mas não foi só na música que o Padre Martins marcou a diferença e já que hoje é sobre um livro que nos juntamos aqui, não posso deixar de lembrar um verão, tínhamos talvez entre 9 e 12 anos, e juntávamo-nos no salão paroquial com o pe. Martins, não para ensaiar nem preparar apresentações, mas simplesmente para ler, escrever e conversar sobre isso. Criámos uma espécie de clube de leitura e oficina de composições, onde escolhíamos um tema e partilhávamos ideias, como gente grande. E ele, no meio de mil responsabilidades, recebia-nos com gosto, sem pressas, só porque acreditava que merecíamos aquele espaço. (...) Hoje, percebo como esses encontros plantaram sementes. Porque ler, escrever, pensar em conjunto — tudo isso também nos foi ensinado por ele, mesmo quando não havia palco, nem microfone, nem aplausos no final. Só a presença. (...) Lembro-me, ainda de um evento muito especial: o nosso Parlamento Jovem. O Padre Martins lançou a ideia — cada um de nós, como um pequeno deputado, apresentava e defendia uma proposta. Escrevemos os nossos textos e levámos a sério o papel na defesa dos direitos da criança. Ele estava a ensinar-nos a pensar, a falar com propósito, a escutar os outros. No fundo, deu-nos ferramentas e, mais do que isso, deu-nos voz — e a certeza de que valia a pena usá-la. Ele criou um espaço onde o diálogo, a escuta e o pensamento crítico eram levados a sério, mesmo entre crianças. E isso, para muitos de nós — especialmente os que em casa não tinham tanto espaço para conversar, questionar ou discordar — foi uma verdadeira escola de cidadania. (...) 

A Professora Madalena Franco referiu-se assim:

"Com o Padre Martins despertei para a atividade cultural, para a música, para o teatro, para o exterior… para o mundo! Nas décadas de 80/90, nas atividades dos domingos culturais no palco aberto da Ribeira Seca, com teatro de improviso, simulação de programas de televisão, encenação de cenas do quotidiano, desporto, jogos de animação… muita atividade! Por essa altura houve concertos …Trovante, Júlio Pereira, Amélia Muge … era o mundo que vinha ter connosco!! Por essa altura foi formada a Tuna de Câmara de Machico e foi o despertar para os clássicos da música … para a beleza da música! Mozart, Strauss, Beethoven… Música que nos levou a atuar no hotel Atlantis e no Natal dos hospitais! Depois lançou-nos novo desafio: o teatro, teatro mais sério…Tchekhov! E encenou O pedido de casamento. Representamos em S. Roque e no Funchal. Nós, uns jovens da Ribeira Seca, a representar Tchekhov! Uma semente que mais tarde daria início ao Grupo de teatro A Lanterna! Já como presidente da Câmara de Machico, financiou uma formação em teatro com o António Plácido e foi aqui, que muitas vezes ensaiávamos, representamos e declamamos na escadaria e no átrio da escadaria da Câmara!
Relembro com carinho, que em dada altura o Senhor padre dava aulas de Português no liceu e entre ensaios da Tuna, ouvíamos excertos dos Maias, dos heterónimos de Fernando Pessoa…aí percebi que era um privilégio aprender daquela forma!...que pedagogia, que sensibilidade dava aos textos do Eça, aos poemas de Cesário Verde! A sagacidade de pensamento, a crítica e o humor, sempre presentes naquelas tardes e noites em que éramos jovens com vontade de viver, e que entre músicas, leituras e conversas, perspetivávamos o nosso mundo, pelas mãos deste senhor, o padre Martins!
Para além desta atividade cultural em que me vi envolvida, fui também contagiada pela clarividência, pelo humanismo, pela LIBERDADE de pensamento e ação que fui colhendo nestas atividades da igreja – atrevo-me a dizer que, tudo aquilo que foi novidade para a maioria das pessoas com o Papa Francisco, eu ouvi desde sempre: pensamento ecuménico dos valores da Igreja, da validade das outras religiões no contexto mundial, o valor e o sentido do perdão, esse perdão que deve ser pedido ao próximo, àquele que ofendemos, e acolher TODOS, todos, todos! Que devemos ser responsáveis pelas nossas ações… Que Cristo é amor e perdão e não um deus de medo e punição. Que Cristo também é liberdade e amor e que o reconhecemos no nosso próximo.
Mais tarde, já bem mais adulta, os ciclos temáticos das Missas do Parto eram verdadeiros seminários! Com temas atuais, desde o Ambiente, Educação, o Mundo Atual…uma pedagogia para todos! Durante as suas homílias, falou muitas vezes de educação e apelou a que os pais estivessem atentos à educação dos seus filhos e que ouvissem e respeitassem os professores.
Que este livro seja também uma inspiração para os mais novos…que sigam os vossos sonhos, que sejam criativos e que se envolvam em atividades com a comunidade!"

Finalmente, Cheila Martins, Psicóloga, disse:

"Com um olhar atento, com uma palavra firme e uma alma feita de entrega, cultivou a consciência de um povo, despertou-lhes coragem, distribuiu o saber onde existia ignorância e semeou a esperança, onde tantas vezes reinava a resignação. Foi nos passos do Pe. Martins que encontrei chão, foi pela sua voz (pela sua verdade) que aprendi a questionar aquilo que tantas vezes o tempo tenta calar. Aprendi que a verdadeira autoridade está precisamente na coerência entre o que se diz e o que se vive. Ele mostrou-me o que é educar pela arte, com um carinho incondicional, mas com a firmeza de quem luta sem perder a esperança de quem “luta sempre, sempre de pé!” Conhecer a vida do Pe. Martins é descobrir que a grandeza não está nas palavras ocas, mas na ação consequente. É perceber que as pessoas grandiosas são aquelas que, tal como ele, servem sem esperar aplausos, lutam sem esperar recompensas. As suas palavras ainda nos desafiam, os dias ímpares são ainda mais ricos, as suas canções ainda nos elevam. A sua presença continua a viver em cada gesto de cidadania ativa, em cada aula onde se ensina com paixão, em cada grupo que canta e dança não apenas por gosto mas por justiça porque “lutaremos cantando a vida inteira, à conquista do nosso lugar!"




Três intervenções que me encheram de alegria e de emoção, porque ali está o retrato, não apenas do Padre e lutador pela felicidade de todos, mas o Professor e o verdadeiro Pedagogo que deixa sementes para a VIDA.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

O drama de uma morte e as razões escondidas a montante

 

Uma criança de 12 anos, alegadamente, colocou termo à vida. A investigação determinará as causas desta trágica morte. Dizia-se vítima de "bullying" na escola que frequentava. Um desastre seja qual for o prisma de análise. Neste momento, mais do que qualquer outro comentário, importa, pois, abraçar, solidariamente, a família.



Quando li a notícia, fechei os olhos e um turbilhão de pensamentos invadiu-me. Onde residirão as causas? Na família, na escola, na sociedade, neste mundo absolutamente disparatado e assimétrico que estamos a viver? Talvez estejamos face a uma responsabilidade dividida. Todos somos cúmplices de situações desta natureza. Portanto, repito, a hora é de investigação séria e não de opiniões ou especulações sem fundamento. 

Entretanto, li a posição de um partido político que reivindica a colocação de mais psicólogos nas escolas, porque "(...) não basta lamentar depois da tragédia. Enquanto as nossas escolas continuarem sem os meios necessários para garantir apoio psicológico eficaz, continuaremos a falhar às nossas crianças. Ter psicólogos escolares em número suficiente não é um luxo, é uma urgência (...)".

Ora bem, entendo que o problema, sendo tão grave, não se resolve ou atenua com, permitam-me a expressão, "um penso político rápido" que não esbate, sequer, a profundidade da ferida que, aliás, há muito sangra. Numa aproximação ao provérbio chinês, quando se aponta para a lua temos de ver para além da ponta do dedo. Logo, no caso em apreço, é dever de todos olharmos para montante da tragédia. Só por aí podemos encontrar as respostas consistentes que, tendencialmente, evitem dramas como este. Dizia e bem, ainda hoje, o Vereador da Câmara Municipal do Funchal, Engº Miguel Silva Gouveia, "(...) quando uma criança parte desta forma tão dolorosa, é toda a cidade que sofre". Exacto. E a cidade (a sociedade) são as famílias, os estabelecimentos de aprendizagem, a sua organização, os princípios e os valores que as orientam, as suas debilidades a todos os níveis e as políticas que visam combater as injustiças sociais e a respectiva saúde mental de todos.

Neste quadro de pensamento sobre as adequadas respostas, obviamente múltiplas e complexas, permito-me, por momentos, situar-me no espaço escolar, porque o conheço, pois foi nele que exerci a minha profissão durante algumas décadas, testemunhando situações, desabafos e acontecimentos, alguns comoventes. Ora, em síntese, enquanto a escola, do ponto de vista organizacional continuar a ser aquilo que é, enciclopédica, burocrática, programática e desligada da vida real, continuaremos a assistir a dramas, uns que nos esmagam completamente, outros, menos graves, é certo, mas que são de um enorme sofrimento. 

É, por isso, que olho para este sistema educativo, que se diz inclusivo, e nele vejo um claro factor de exclusão social.

Ora, num contexto muito complicado, a presença de psicólogos, só por si, desligados de todas as outras variáveis, concretamente, as políticas de família, de habitação, de saúde, de mentalidade cultural, as relacionadas com o mundo laboral, onde se inserem as políticas salariais, tais especialistas, por maior que seja a sua vontade, rigorosamente nada resolverão. Está em causa a construção inteligente e articulada de toda a sociedade. Não actuar a montante significará atenuar consciências, jamais os dramas que, de quando em vez, continuarão a massacrar-nos.

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 13 de abril de 2025

A Justiça e a Cidade Ideal

 Por 

Liliana Rodrigues
Professora Universitária (UMa)

Na obra “A República”, de Platão, encontramos a descrição da Cidade Ideal que, goste-se ou não, está ordenada de forma harmoniosa. Pelo menos, segundo os critérios de Platão. Esta construção social, na lógica do filósofo da Grécia Antiga, tem por base a Razão, enquanto faculdade superior do humano.




A cidade está organizada em três classes sociais, cada uma correspondente a uma parte da alma humana: 1. Governantes, dominados pela Razão – são os filósofos-reis, sábios e racionais; 2. Guardas, cobertos pela Coragem – defendem a cidade e mantêm a ordem. Precisam de coragem e disciplina, sendo educados para a obediência aos governantes e os 3. Produtores, influenciados pelo Desejo – agricultores, artesãos e comerciantes. São os produtores que devem garantir o sustento da cidade, guiados pelo desejo moderado de riqueza.

Não quero discutir as questões de reprodução social, cada vez mais marcantes na sociedade contemporânea. Em todas as sociedades a Justiça tem um papel fundamental. Na Cidade Ideal, a Justiça acontece quando cada classe faz aquilo que lhe compete, sem comprometer as funções das outras classes. Isto é, cada um faz o que lhe é devido para garantir a harmonia social e ninguém está acima ou abaixo de nenhum outro cidadão. Além disso, Platão defende a educação para a Justiça com o objetivo de construir uma comunidade que evita interesses pessoais e que promove o bem comum. Podemos, então, repensar sobre que papel teria a educação naquela altura e que lugar ela ocupa hoje. Que tarefas mais teremos de dar aos professores e se serão apenas eles a suportar o peso de educar para a Justiça. Acrescentaria: até onde estamos disponíveis para educar líderes justos.

Já aqui ocorre a dificuldade: é que o papel da educação nas sociedades contemporâneas depende das lideranças que temos e do que querem elas construir a médio e a longo prazo. Nunca tivemos tantas instituições de ensino disponíveis. Por outro lado, nunca tivemos tanto desinteresse por elas como agora. Terá esta crise alguma relação com a desvalorização da dignidade humana e da Justiça?

Eu estou a demorar nesta reflexão sobre o mundo, que estamos a construir para vivermos e deixarmos a outros, porque queria tentar perceber o que levou três jovens a violarem uma rapariga de 16 anos. A filmarem. A colocarem nas redes sociais. Milhares de cúmplices viram e reviram, e não fizeram queixa a ninguém. Ficaram a ver, como se não fossem imagens de um mundo real. Com homens reais. Com uma mulher violentada sistematicamente durante dias. Semanas. A violação não acabou na garagem. Começou lá e estendeu-se nas plataformas de “convívio social”. O mundo das partilhas é de uma crueldade atroz. Garante a memória eterna. Que Justiça é esta desta “Cidade”?


Este é “mais um caso”. Mais um em tantos outros, em que as cidades deste mundo não conseguem ter mão. Em Itália, duas jovens foram mortas à luz do dia. Esfaqueadas. Chamam-lhes de stalkers. Pessoas que perseguem outras pessoas de forma obsessiva. Insistente. Gente que, por alguma razão, foi recusada. E há tanta maneira de perseguir. Os tiques de malvadez são aprumados e requintados com adulações de quase cientificidade, ou de baixeza evidente. A Lei da Cidade parece não nos proteger.

Talvez seja o tempo da Justiça. Do debate sobre ela. Da certeza de que os governantes da Cidade Ideal de Platão irão proteger todos os cidadãos e os seus guardas irão chegar a todos, inclusive os que foram cúmplices em ver e nada fazer.

Itália tomou uma decisão: propõe a prisão perpétua para o femicídio. Ou seja, temos de legislar para dizer o seguinte: não matem as mulheres pelo facto de serem mulheres. Conhecem o grau zero da doutrina em Direito e do valor da Justiça? Aqui têm. Se a Lei não serve como instrumento de dissuasão para onde vamos? Vale a pena ler “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria. O debate que nos obriga a fazer representa um diálogo para a compreensão da justiça. Ao colocar a razão, a humanidade e a função social da Lei no centro do debate, Beccaria lança as bases para um sistema mais justo, proporcional e voltado para a prevenção. Foi daqui que, na contemporaneidade, nasceu a base fundamental da Educação para a Justiça. Uma Cidade Ideal é uma Cidade Justa. Não há Justiça quando metade da população deste mundo não está em segurança: as mulheres.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Por uma Escola (re)inventora da sociedade

 

A Educação preocupa-me. Os constantes relatos que nos chegam, as séries de televisão caracterizadoras de uma significativa parte da juventude sem rumo, a intolerante violência que cresce potenciada pelas redes sociais e por uma ausência de princípios e valores estruturantes do ser humano, as múltiplas dependências, das tecnológicas a todas as outras, o desejo de viver intensamente como se não existisse amanhã, a limitada presença dos pais por desestruturação do mundo laboral, a pobreza, alguma "bem disfarçada", o sistema organizacional das escolas, mais preocupado com um falso conhecimento programático do que com a formação global, onde se enquadra o desrespeito pelos talentos e sonhos que cada um transporta, o esfumar do rigor, da disciplina conquistada pela compreensão das pessoas, enfim, tudo isto e tanto que facilmente se descobre nesta ferrugenta engrenagem social, só pode constituir motivo de preocupação. 



No entanto, teimo em seguir uma perspectiva optimista, com o sentimento que, mais cedo que tarde, talvez possamos assistir ao recentrar dos inúmeros desconfortos e prognósticos de falência. Alguma coisa terá de ser feita e leva muitos anos. Talvez tantos quantos nos trouxeram até aqui.

É óbvio que se a sociedade não está bem, a escola não pode estar melhor. Apesar dos sucessivos alertas, fomos assistindo, impávidos, a uma suave derrapagem que conduziu, salvo muitas excepções, a uma geração que, genericamente, espelha o que os políticos ofereceram a pais e avós nos últimos cinquenta anos. "Ninguém pode dar aquilo que não tem" e isso explica o círculo vicioso onde mergulhámos. Vivem-se tempos pantanosos que muitas famílias não contornam e, talvez, não saibam como combater, tampouco a escola tem sido incapaz de contrapor. Em linguagem informática, este perfeito "cocktail" só podia dar "erro". Só por aqui, a título de exemplo, são cerca de seis mil os jovens que não trabalham nem estudam (10,5% - população entre os 16 e 34 anos). Dramático!

O problema é que, face a um quadro angustiante, não são observáveis políticas, gerais e específicas que, a prazo, resultem numa sociedade mais culta, mais trabalhadora e profissionalmente mais competente, mais equilibrada, mais criativa e inovadora, menos dependente seja do que for, enfim, mais feliz. 

A mudança, essa, como todos sabemos, só pode começar por uma eficaz sementeira na escola e em políticas muito profundas a montante da escola. Como? No sector da Educação, desde logo, dizendo não a este tipo de aprendizagem enciclopédica, igual para todos quando todos somos diferentes, mas valorizando, na substância, o pensamento. Como disse o Professor Miguel Tamen: "ensinem-lhes a pensar, ensinem-lhes coisas diferentes e não fiquem ansiosos com o mundo real", porque desse mundo real, dizem os empregadores, "tratamos nós". É um absurdo partir do pressuposto, quase radical, que à escola deve competir a solução ou satisfação "das necessidades práticas ou contingentes", como sublinhou o Professor António Feijó. Neste tempo, onde tudo é volúvel e inconstante, a aprendizagem deve então situar-se no espaço do que é intelectualmente interessante e motivador. O resto flui, naturalmente, quando existe uma ideia de escola não conservadora? Ora bem, a questão que se coloca é, pois, entre um sistema focado em olhar para dentro e numa imbecil aposta em profissões que, tendencialmente, vão deixar de existir, e um outro que olha para o mundo e cria mundo aos jovens. 

A escola tem de ser fermento de e para a vida. E não tem sido. Não é. Aliás, não se trata de um tema novo, consequência daquele conjunto de preocupantes factos com os quais somos, diariamente, confrontados. Não é necessário ir ao encontro de Sócrates ou de Platão (400 aC - "segundo Sócrates, ele nada ensinava, apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas opiniões próprias e limpas de falsos valores, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro, de acordo com a consciência", não é necessário ter presente Erasmo ou Montaigne (Século XV - para M. Montaigne "uma cabeça bem feita vale mais que uma cabeça cheia", mas ler, por exemplo, Johann Pestalozzi (Século XVIII) que tanto falou de "criatividade e autonomia"; de Vygostsky, que salientou que aprendizagem é um processo interactivo; ter presente o pensamento pragmático de John Dewey; Célestin Freinet, um crítico da escola tradicional, das suas regras rígidas da organização da aprendizagem; mais recentemente Alain, Maria Montessori que uniu o mundo externo e interno à criança e ao jovem, Piaget, Carl Rogers, Paulo Freire, as profundas reflexões de José Pacheco, Sampaio da Nóvoa, Sérgio Niza ou de Carlos Neto, este que é, indiscutivelmente, uma referência mundial em estudos sobre a formação dos jovens. A listagem é infindável.

Junte-se a tão extensa bibliografia, que a formação inicial de professores dispõe, as reflexões de muitos filósofos. Não esqueço o notável Edgar Morin, hoje com 103 anos, que sobre a Educação continua a dizer que "temos de educar os educadores", para este novo tempo, ou, então, ter presente a Obra daquele que foi meu Amigo, Filósofo, pensador à escala mundial, Manuel Sérgio, falecido o mês passado, que um dia, na minha casa, em redor de um petisco, foi claro: "os professores têm de deixar-se fecundar pelas ciências humanas" e não, apenas, pela especificidade da disciplina que leccionam. E fazendo suas as palavras de Abel Salazar, Patrono do Instituto de Ciências Biomédicas, referiu-me que "um Professor que só sabe da sua disciplina nem da sua disciplina sabe!"

Ora, pergunto, os políticos com responsabilidades no processo educativo não dominam estas questões básicas? Entre muitos outros, não viram ou perceberam o filme dirigido por Peter Weir, em 1989, intitulado no original "Dead Poets Society"? Continua disponível, basta querer espreitá-lo. Ou, mais recentemente, não seguiram a notável série televisiva Merli, onde o protagonista refere que "há qualquer coisa de podre na educação"? De facto, há uma clara ausência de uma prática alicerçada numa teoria que vem de longe. Dir-se-á que os pensadores, investigadores e autores foram atirados para a prateleira. Servem para algumas citações, porque fica bem, mas logo regressam à estante que embeleza mas não transforma.

E assim chegámos a um tempo, de algum caos, onde, tantas vozes o dizem, estamos a matar a infância, o crescimento sustentado e a comprometer o futuro. Começa logo nas primeiras idades. O psicólogo Eduardo Sá, na antiga revista Focus, foi muito claro: "As crianças estão em vias de extinção (…) cada vez mais as crianças não são crianças (…) e o que me preocupa é que mais escola, como ela está a ser vivida, signifique menos infância e quanto menos infância, mais nos arriscamos a construir pessoas magoadas com a vida”. No fundo, ele fez eco do que outros já tinham enaltecido: "quanto mais longa e mais rica for a infância, mais saudável será a adultez". Só isto implicaria pôr tudo em causa. Que raio andamos a fazer? 

O problema é a latente ignorância altifalante que conduz a uma chocante surdez política. O Juiz Conselheiro Laborinho Lúcio disse e bem que, hoje, as crianças, desde as primeiras idades "transportam um adulto dentro de si". Estão a deixar de ser crianças e jovens, porque nós adultos temos uma tendência para tudo exigir, controlar e de impor o que nos parece importante. Começa logo nas primeiras idades e prolonga-se pelas mais velhas, no pressuposto político que tem de ser a Economia a impor a estrutura e o ritmo das aprendizagens, embora de forma contrária à ciência, quando se fala do acto de aprender.

Segue-se, agora, mais uma legislatura que, estou convencido, corresponderá à continuidade da política vigente. Uma política sem rasgo, sem pensamento prospectivo, que funciona administrativa e rotineiramente. Por dois motivos: porque "para quem só tem um martelo por instrumento, todos os problemas parecem pregos" - Mark Twain; depois, porque quem se habituou a repetir, dificilmente podemos esperar, no futuro, resultados diferentes dos de hoje. Na esteira de Peter Drucker não os vejo "preparados para abandonar tudo ou, então, desertar do barco". 

E, entretanto, promovem-se tantas formações destinadas a professores. Ocupam-se dias a escutar especialistas, batem-se efusivas palmas e, no final, tudo continua no tal pântano, onde uma minoria sobrevive e escapa! Nem reflectem que uma formação só tem sentido se ela transportar a preocupação da mudança. 

A escola tem de ser reinventora da sociedade, porque passámos da sociedade da manufactura para a sociedade da mentefactura, na feliz síntese de Luís Cardoso. Por isso, seguindo a palavra do Filósofo Henry Bergson (1859/1941), o sistema educativo precisa de alguém que saiba "agir como Homem de pensamento e pensar como Homem de acção". E, para isso, das leituras cruzadas e da História deste processo, nós não dispomos, neste quadro de governação, quem o faça. O erro, portanto, penso que reside aí, na incapacidade de ser humilde para reflectir o sistema, abrindo-o ao debate, para que possam ser geradas políticas que produzam resultados de acordo com o mundo que nos coube viver. Não estamos preparados para os desafios das próximas décadas. Apesar disso, repito, há que manter a esperança que a lucidez chegue.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

EDUCAÇÃO: AS COISAS, AS COISAS TODAS, E O PENSAMENTO DAS COISAS


Por
Nuno Morna
Dnotícias 
07.04.2025

Nota
Sigo, com muita regularidade o que escreve o meu Amigo Nuno Morna. A sua crónica de hoje é espantosa e, sobretudo, entusiasmante para quem a lê. Está dividida em dois pontos: primeiro, as considerações em redor da Autonomia; depois, o tema Educação. E neste, confesso, as palavras e o sentido conceptual, escorreram-me garganta abaixo como mel. Por aqui, há muito que não lia um texto com a profundidade entre "as coisas" e o "pensamento das coisas". Muitas vezes apetece-me desistir de escrever, pelo sentimento que transporto que o sector da Educação constitui uma batalha perdida. E quando alguém, com a inteligência abrangente do Nuno, escreve de forma tão assertiva, retomo a vontade que, afinal, vale a pena. Obrigado Amigo Nuno por ter tocado nesta ferida profunda que alguns tentam curá-la com pensos rápidos. Este texto, mais do que muitas leituras programaticamente obrigatórias, pelas variáveis que ela engloba, devia ser "obrigatória" para governantes sem dimensão e professores subjugados aos ditames do sistema. Obrigado Nuno Morna.



2. "(...) O miúdo sentava-se no fundo da sala, o segundo da fila encostado à janela, que era a única coisa que lhe dava sol naquele edifício que cheirava a vomitado velho e giz, a professora com hálito de pastilha de mentol a repetir as mesmas frases de sempre, os olhos dela semicerrados como se estivesse permanentemente a tentar ver através de uma cortina de fumo, a aula de Ciências, ou talvez História, ou Filosofia, mas isso não interessa porque o que se ensina é sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo, como se os professores fossem robôs de carne com manuais no lugar do cérebro e as palavras entrassem na cabeça dos alunos com a delicadeza de um tijolo arremessado por uma janela.

Ensinar, diziam. Ensinar o quê? As coisas. Sempre as coisas. A Revolução Francesa em três pontos, as camadas da Terra, o número atómico do cloro, a ordem dos reis de Portugal como se Portugal tivesse alguma vez sido um país com rei que importasse mais do que o cheiro do mar em Setembro.
E o miúdo a olhar para fora, a ver a chuva a bater nos vidros como se os vidros chorassem por ele, ou por nós, ou pelo país inteiro, que ainda acha que educar é alinhar miúdos como sardinhas numa fábrica de conservas, cada um com o seu rótulo, cada um com o seu conteúdo certificado, preparado para ser exportado para a Holanda ou para o Canadá, com boas maneiras e inglês técnico, mas sem uma ideia própria na cabeça.

As coisas. Sempre as coisas.

E a cabeça cheia delas, tão cheia, tão atulhada, que já nem se ouve a si própria. O pensamento, esse, ficou lá atrás, algures entre a infância e o primeiro teste intermédio, desapareceu num corredor da escola, talvez num armário onde se guardam mapas antigos e a vergonha dos professores que ainda se lembram do que era ensinar antes do ensinar coisas e dos cronogramas de competências.

A professora de Português, que já foi boa, dizem, que já foi alguém, entra na sala com a cara cansada de quem passou a noite inteira a corrigir redacções onde ninguém pensa nada, onde todos escrevem como papagaios domesticados com medo de errar, com medo de dizer uma frase que não esteja na rubrica de avaliação, e ela própria, coitada, já não se lembra bem porque é que começou a ensinar, talvez porque amava os livros, ou as palavras, ou a possibilidade de fazer um aluno pensar, mas isso agora é proibido (o pensar) é subversivo, é desestabilizador, dá origem a perguntas difíceis e, acima de tudo, não melhora os resultados nos “rankings” das escolas.

E ensinar a pensar?

Isso é outro campeonato. Isso não dá jeito. Isso não encaixa nos horários. Isso atrasa o programa.
Ensinar a pensar é pôr os miúdos a desconfiar, e a escola não foi feita para isso, a escola foi feita para os formatar, para os domesticar, para os moldar em série, com a mesma fórmula com que se fazem croquetes, com os mesmos ingredientes, os mesmos tempos de fritura, a mesma crosta por fora, e por dentro, carne picada que já não se sabe bem de onde veio.

Pensar, diz ela (a professora, que ainda sonha às vezes, às vezes só), pensar é perigoso. Pensar leva a revoltas, a insónias, a recusar aquilo que nos é dado como certo. E os governos gostam de certezas, e os pais gostam de notas boas, e os senhores da Secretaria gostam de ver planos de aula com todos os objectivos específicos alinhadinhos como soldados em parada.

O pensamento é o inimigo da ordem.

E, no entanto, é só no pensamento que há liberdade.

Não nos manuais, não nos exames, não nas fichas de avaliação contínua.

E o miúdo - o mesmo miúdo - que desenhava nos cantos do caderno rostos que talvez fossem dele, talvez fossem dos outros, ou talvez fossem apenas rostos, começa a perceber que tudo aquilo, o mapa da Europa no quadro, a definição de sistema digestivo, as guerras liberais, tudo aquilo serve apenas para o ensinar a repetir.

E repetir não é saber. Repetir não é compreender. Repetir não é existir.
Existir é pensar. Pensar é existir.
Mas isso não se ensina. Isso tem de se roubar.
Roubar no silêncio, nas margens do manual, nas entrelinhas de um poema que o professor leu depressa demais. Roubar o pensamento como quem rouba pão. Como quem tem fome e precisa de se alimentar de ideias antes que o sistema o esmague, antes que o futuro o transforme num técnico de alguma coisa sem nome, útil, produtivo, eficaz, e profundamente inútil para si próprio.

E talvez um dia, talvez, alguém se lembre que educar não é alinhar factos como quem empilha caixas.
Que educar é acordar a inquietação. Que educar é ensinar a não aceitar. Que educar é dizer: ouve, pensa, sente, e depois decide se isto faz sentido.

Mas para isso é preciso coragem.
E a coragem, como o pensamento, não consta dos programas.

Ilustração: Google Imagens/Dnotícias

sábado, 5 de abril de 2025

"Ranking's" das escolas: um concurso de beleza da pedagogia


Uma vez mais, aí estão os "ranking's" das escolas. Diabolizo-os. Mas há, infelizmente, professores, direcções de escola (quando convém) e governantes que espumam com alguns resultados. 



Ora bem, "lendo estudos e reflectindo sobre todas as variáveis, entendo que constitui uma infantilidade conceptual defendê-los. A escola deve ser avaliada por aquilo que faz, pela estrutura organizacional que implementa, pela cultura pedagógica que persegue, pelas preocupações inclusivas e pelo esforço no sentido de que ninguém fica para trás, pela sua luta que atenua as diferenças económicas, sociais e culturais e pelo trajecto dos seus alunos após a passagem por um determinado estabelecimento. Diabolizo-os, não apenas pelo facto em si, mas porque é um erro grave conjugar no mesmo patamar os sectores de intervenção público e privado. Não faz qualquer sentido, nem justificação existe, seja qual for o ângulo de análise, tolerar sequer a existência de ranking's de exames e de escolas! Há outras formas de acompanhamento e de avaliação dos processos de aprendizagem. Ademais, tolerar os "ranking's" significa tolerar o actual sistema educativo que mantém e acelera a desigualdade. - Do livro "A Escola é uma seca", pág. 175.

Numa aproximação a Pablo Gentili, Doutor em Educação pela Universidade de Buenos Aires, que se referiu aos famigerados testes PISA, eu diria que os "ranking's" (…) son el concurso de belleza de la pedagogia". Portanto, esqueçam-nos, porque se trata de um mecanismo artificial que "nadie lo cuestiona, y luego compara". Ignoram que existem diversas realidades históricas, económicas, sociais e culturais, que não permitem, com rigor, comparar o que é incomparável.


Do citado livro, da minha autoria, deixo aqui uma passagem de um texto do Padre José Martins Júnior, página 179: "(...) Nunca foi cronologicamente tão inoportuna, objectivamente tão desadequada e qualitativamente tão deprimente uma fasquia como esta que, todos os anos, empresas parceiras dos mesmos interesses expõem no estendal das folhas diárias para gáudio de uns (os privilegiados) e escárnio de outros (a maioria). (...) É a Educação vendida a metro. É a função do lucro marginal em pleno campo da economia do mercado escolar. Nem me demoro na dissecação crítica que docentes e sociólogos já fizeram e que se sintetiza na veleidade (direi mesmo, desonestidade) de comparar o incomparável, como seja a dicotomia privado-público, com a mais que escandalosa geometria variada que lhe está subjacente. Apenas limito-me a transcrever a análise de um director de escola, relativamente bem posicionada: "Nesta escola, primeiro debruçamo-nos sobre os condicionamentos económicos do aluno, depois pesamos os factores sociais que o determinam e, só depois disso, enfrentamos o seu processamento académico". Melhor ninguém diria! Focalizada sob a tríplice objectiva deste campo laboratorial, a Educação nunca será suficientemente revelada, nem sequer valorativamente apreciada, se tais parâmetros forem obliterados ou, pior, deliberadamente escamoteados. (...)"

Do mesmo livro, página 177: "Daqui concluo, "ranking's" não, obrigado; autonomia, sim, para as escolas, rapidamente, sem abusivas interferências. Porém, todos os anos regressa a história do "ranking's" das escolas. Com os estabelecimentos privados à frente. E todos os anos há quem valorize o que não deve ser valorizado. Ninguém se lembra de dizer que há estudos que provam que os alunos oriundos do sector privado, nos primeiros três anos de curso superior universitário, chumbam mais que os alunos vindos do sector público. Interessante, não é? Um facto nunca assumido. Uma coisa é o domínio da acessibilidade a um curso superior; outra, o desempenho dos alunos depois de lá entrarem. No privado, porque estão em causa pesadas mensalidades, qualquer instituição tende a forçar a aprendizagem no que “interessa” em detrimento de uma formação mais globalizante. Isto para além do recurso aos explicadores. No sector público, apesar de tudo, são sensíveis outras preocupações. E a verdade é que, ao longo do superior, os alunos do sector público conseguem uma melhor adaptabilidade e sucesso, consequência de algumas capacidades trabalhadas. (...)"

(...) "E em tudo isto existe uma grave hipocrisia do ministério. Ao mesmo tempo que assume que os "ranking's são “redutores", a verdade é que são publicados. Quem os disponibiliza? Para o ministério, se eles são “redutores”, os níveis ou notas de exame, deviam assumir uma característica reservada (não publicável) visando um sério estudo (global) sobre o sistema. Nunca para colocar escolas e professores sob suspeita. Os bons e os maus. É disso que se trata. E se assim não é, pergunta-se, de que valeu a publicação de todos os "ranking's" anteriores? O sistema melhorou? Não. Aliás, o ministério ao possibilitar a publicação dos resultados sob a forma de “ranking's”, desprestigia-se e dá um sinal (errado) à população que, mesmo neste contexto, o privado é melhor que o público. Não é. (...)"

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 23 de março de 2025

" A Escola manda brincar"




Este foi o título de um ""Encontro e Temático e Formativo", promovido pelo Sindicato de Professores da Madeira e destinado a todos quantos trabalham no Pré-Escolar, 1º Ciclo e Educação Especial. Estiveram presentes cerca de 130 interessados.

Participei com um trabalho subordinado ao título: "Ser criança é fixe; a Escola não é fixe". Os outros palestrantes: Daniela Forchetti (artista e investigadora em inclusão através da arte; Inês Ferraz, investigadora do Centro de Investigação em Estudos da Criança, da Universidade do Minho; Rita Cordovil, Professora da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa e Uirá Kuhlmann, pedadogo em Educação Musical activa para educadores.

Ao longo da minha intervenção, que aliou a contradição entre o desenvolvimento da criança com a Economia, cujos efeitos têm conduzido à hiperescolarização, ao stress crónico com nefastas consequências na saúde e à desumanização do processo educativo, socorri-me do pensamento de Lucina Leiderfab publicado no Expresso: "Bem-vindos à nova era, a das crianças que não têm tempo para brincar. E a dos adultos obcecados por ocupar-lhes os dias. Que mundo é este onde a brincadeira se tornou indesejável?"

Pela importante iniciativa, parabéns ao Sindicato de Professores da Madeira.

terça-feira, 18 de março de 2025

Chegou a vez das universidades americanas



Os temas da actualidade global, 
pelo olhar de Teresa de Sousa - Público



Caro leitor, cara leitora

Há já longos anos, durante uma entrevista ao sociólogo catalão Manuel Castells a propósito da sua obra seminal sobre a sociedade da informação, perguntei-lhe onde residia a força dos Estados Unidos. Na sua economia? No seu poderio militar? Castells interrompeu-me para dizer sem hesitar: "Nas suas universidades". Explicou-me detalhadamente porquê e como eram financiadas por grandes somas vindas directamente do Pentágono.

Veio-me esta entrevista à memória ao ler as notícias cada vez mais frequentes sobre os ataques da actual Administração às universidades americanas, sobretudo, as da Ivy League – de Harvard, a mais antiga e a mais famosa, a Yale, passando pela Columbia ou pela Brown, nomes que nos são familiares. Esses ataques passam pelo corte de verbas, sobretudo à investigação científica, e até pela expulsão de académicos de outros países cujos green cards são inesperada e ilegalmente cancelados.

Na sua última coluna do Washington Post, Fareed Zakaria chamava a atenção para as consequências do que se estava a passar, num texto intitulado Trump is launching America’s version of the Cultural Revolution​. "Não há área em que o domínio global dos Estados Unidos seja mais absoluto do que no ensino universitário", diz o colunista, lembrando que, com 4% da população e 25% do PIB mundial, a América tem 72% das 25 melhores universidades do mundo, segundo um dos rankings mais considerados, e 64% noutro.

É esse tesouro que está a ser subvertido pela Administração Trump. Sem surpresas, diz Zakaria. Basta-lhe citar um discurso de J.D. Vance durante a Conferência Nacional Conservadora de 2021. "Temos de atacar as universidades honesta e agressivamente. Os seus professores são nossos inimigos". A Administração de que é vice-presidente está a pôr "agressivamente" este objectivo em prática. O assalto mais radical está a ser financeiro, prossegue Zakaria, traduzindo-se pelo congelamento ou pela redução drástica das subvenções e dos empréstimos do Governo federal. O impacto cumulativo pode atingir milhares de milhões de dólares de cortes em programas e projectos de investigação.


Quando um líder político quer transformar uma democracia numa forma de governo autoritário, procura minar as fontes independentes de informação e de responsabilização, explica o colunista. Dos tribunais à imprensa, passando pelas agências governamentais autónomas. Putin fá-lo há 25 anos. Em menor grau, é este o caminho que está a ser seguido por Viktor Orbán, na Hungria, ou Narendra Modi, na Índia. "O enfraquecimento da educação superior é uma parte importante desta estratégia".

Só a suspensão do funcionamento da USAID, para além da fome, da doença e da morte que já está a provocar, cortou 800 milhões de dólares de subvenções à John Hopkins. A Columbia sofreu um corte de 400 milhões porque foi acusada de antissemitismo. Com o fim anunciado do Departamento da Educação, que já viu o seu staff reduzido a metade, acaba também grande parte do apoio directo aos estudantes. Há, evidentemente, processos judiciais para tentar impedir estas medidas, mas se Donald Trump tenciona cumprir o que os tribunais decidirem é hoje uma enorme interrogação. Na semana passada, num discurso no Departamento de Justiça, insultou juízes e tribunais, para além dos órgãos de comunicação social, com particular destaque para a CNN e a NBC, que considerou "ilegais". Razão? Passam mais de 90% do tempo a "criticar-me".

O ambiente gerado junto da opinião pública pelas universidades, acusadas de wokismo e vistas como redutos privilegiados das elites intelectuais, alimentando o ressentimento, favorece estas medidas. Zakaria reconhece isso mesmo. "Demasiados professores e administradores das universidades agiram nos anos recentes como ideólogos liberais (no sentido americano do termo), mais do que procurarem a verdade empírica. Académicos tentaram silenciar o debate em torno de questões legítimas, incluindo sobre o confinamento durante a pandemia, os tratamentos transgénicos ou as questões de diversidade, igualdade e inclusão." Criaram, por vezes, um ambiente opressor. Houve, no ano passado, gigantescos protestos contra Israel na Universidade de Columbia e noutras universidades, por causa da guerra em Gaza. Houve excessos. Os estudantes judeus sentiram-se ameaçados. Se recuarmos aos anos 1960, o mesmo aconteceu contra a guerra no Vietname. Faz parte do comportamento dos jovens e das suas causas. Não se resolve com cortes à investigação científica.

Voltando a Castells: é porque a produção científica das universidades e centros de investigação está na base do poder tecnológico, económico e militar da América que estes ataques deliberados são mais uma forma de a Administração Trump enfraquecer o poder americano no mundo. Está a fazê-lo em todos os domínios, da economia às alianças, do soft power à cultura.

Perseguições
Nas universidades, não são só os financiamentos que estão em causa. Uma das razões pelas quais a América é o país com mais Prémios Nobel está também na capacidade das suas universidades para atraírem professores e investigadores do mundo inteiro. Alguns vão doutorar-se, muitos ficam. Começam agora a ser alvo de perseguição.

O New York Times relatava há dois dias um caso exemplar. A médica Rasha Alawieh, especialista em transplantes de rim e professora da Universidade Brown, detentora de um visto válido, foi expulsa do país, apesar da decisão do tribunal de Massachusetts de suspender temporariamente a ordem de deportação. No mês passado, Alawieh foi visitar a família ao Líbano, onde nasceu e estudou. Foi presa no aeroporto quando regressava e colocada num voo para Paris pelos Serviços de Fronteiras.

O Líbano nem sequer está na longa lista de países cujos nacionais vão ser proibidos de entrar nos Estados Unidos. O advogado que representa a professora e a universidade esclareceu que, enquanto ela estava no Líbano, o consulado americano em Beirute lhe emitiu um visto H-1B, que permite aos cidadãos estrangeiros altamente especializados viver e trabalhar na América. O seu visto foi patrocinado pela Brown. A médica, de 34 anos, formou-se na Universidade Americana de Beirute em 2015. Foi para os Estados Unidos, três anos depois, completar os estudos na Universidade Estadual do Ohio, para em seguida ensinar em Yale e em Brown.

Os pormenores desta história ajudam a compreender o que sentirão nesta altura os milhares de professores e investigadores em situação semelhante à de Rasha Alawieh. Os Estados Unidos começam a ser um destino perigoso. Até para quem dispõe de green cards ou de vistos especiais, sobretudo se não tiver a pele branca.

Caro leitor, cara leitora, este é um dos lados menos conhecidos da natureza autoritária e racista da nova Administração e, ao mesmo tempo, do seu crescente desrespeito pelos tribunais, a última barreira ao arbítrio e à ilegalidade de muitas das decisões que foram orquestradas pelo Presidente americano nestes 50 dias.

A Europa abre os braços
Entretanto, deste lado do Atlântico, as universidades europeias já começaram a aliciar os cientistas americanos, convencendo-os a vir para cá trabalhar.

O Financial Times noticiava ontem que a Universidade de Cambridge, com uma forte capacidade de atracção dada a sua alta qualificação nos rankings mundiais, é uma delas, mas não é a única. O mesmo está a acontecer em França, na Suécia, mas também na China.

Escreve o diário britânico que a Administração americana está a preparar-se para cortar milhares de milhões de fundos às agências federais, como os institutos nacionais de saúde. "O ambiente político na América é desencorajador para a investigação independente", diz ao jornal Maria Leptin, presidente do Conselho Europeu de Investigação. "O que podemos fazer é dizer com toda a clareza aos nossos colegas que a comunidade de investigadores europeus e os seus financiadores dão as boas-vindas à Europa àqueles que, independentemente da nacionalidade, consideram as suas opções para o trabalho científico ameaçadas." O reputado instituto sueco Karolinska, de investigação biomédica, está a oferecer sabáticas aos colegas americanos.

A China, naturalmente, também não perde a oportunidade. O Global Times, jornal do Partido Comunista, escreveu na semana passada que, "sob o pretexto da segurança nacional, Washington está a desestabilizar o campo da investigação científica." Diz o jornal: "Confrontados com uma pressão crescente, muitos cientistas sino-americanos estão a reavaliar a suas carreiras e a voltar a sua atenção para a China, um país mais aberto, inclusivo e cheio de oportunidades".

A América de Trump a dar mais um monumental tiro no pé.

Tenha uma boa semana

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Manuel Sérgio - Um Pensador de Excelência

 

Conheci-o em 1969 na biblioteca do INEF. Era muito mais do que o seu responsável, mas a figura que ajudava, conversava sobre tudo e tornava-se amigo. Porque por lá andava vasculhando tudo o que me interessava, tornámo-nos próximos ao ponto de me ter oferecido o único volume do Tratado de Educação Física, onde, ao longo de 870 páginas, o Doutorado Professor Celestino Marques Pereira discorreu sobre o problema pedagógico e histórico desta área do conhecimento. Desde então, mantivemos uma relação de profunda estima e consideração.



A meu convite, numa sua vinda ao Funchal para uma conferência, ele e um meu outro grande amigo, o Professor Gustavo Pires, jantámos na minha casa, numa noite memorável de histórias marcadas pelo humor até aos temas mais profundos e preocupantes da nossa sociedade. Recordo esse momento com uma marcante saudade.

Os anos foram-se passando com os naturais telefonemas, mais que não fosse para selarem a nossa amizade. Na época de Natal fiz sempre questão de lhe enviar um bolo de mel caseiro. E lá vinha o longo telefonema amigo e, depois, um cartão como expressão da nossa Amizade. Antes do último Natal telefonou-me e deixou-me com a lágrima ao canto dos olhos. 

É este Homem culto, este Filósofo, pensador de excelência, com uma vasta obra publicada, que, recentemente, nos deixou. Tinha 91 anos. Curvo-me perante a sua morte, mas mantenho ali, na vitrina, a sua presença através dos vários livros e mensagens que me remeteu. Aprendi muito com ele, com a sua vastíssima cultura, própria de uma pessoa de uma indiscutível qualidade científica reconhecida mundo fora. 

Para Manuel Sérgio, a Ciência da Motricidade Humana, desde há muito, constitui uma nova ciência social e humana. A ele se deve a consolidação desta nova visão que veio a colocar em causa, epistemológica e ontologicamente, a educação física. Sempre defendeu que a Educação Física não existe, porque não existe uma educação unicamente de físicos. Ela é um "híbrido cultural", misto de ciência, tecnologia, arte, filosofia e senso comum. 

Ademais, Manuel Sérgio foi mais que um Professor, pela figura humilde, profundamente preocupado com o rumo da sociedade, magistral na transmissão do conhecimento sábio, mas com a serenidade e a modéstia do verdadeiro Homem Culto. Sinto, por isso, a dor pela perda de um Amigo de estima mútua. 

Até sempre Amigo Professor. 

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

A MINHA PARTICIPAÇÃO NO TEDxFunchal - A Escola não é um SPA


Por convite, recentemente, participei na edição do TEDX Funchal.
Deixo aqui a minha intervenção, no pressuposto que o debate aconteça junto da comunidade madeirense autónoma.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Educação num estado deplorável


O problema do país e das regiões em particular é muito grave no que concerne à literacia, numeracia e resolução adaptativa de problemas. Segundo um estudo da OCDE, à pergunta "Têm os adultos as competências necessárias para prosperar num mundo em mudança?", concluiu que Portugal tem uma "necessidade urgente de os sistemas de educação e formação intensificarem os seus esforços". Portugal está muito distante da média europeia. No topo, a Finlândia, Japão, Suécia e Noruega. De acordo com os resultados apurados, Andreia Sanches (Público) de forma assertiva, colocou em título: "O triste retrato do nosso atraso".



Ora bem, para mim que acompanho, há muitos anos, esta situação e sobre a qual tenho publicado, não constitui qualquer novidade. Nunca se tratou de uma percepção, mas de uma factualidade em função do cruzamento de muitos dados. Quem persiste no passado, não pode esperar, no futuro, outros resultados que não os desse passado.  O drama é que ninguém com responsabilidade política quer enfrentar a situação. Por razões diversas, genericamente, nem os que se encontram no topo da hierarquia política, tampouco os dirigentes sindicais e até mesmo os professores. De resto, a sociedade não tem uma leitura sobre a gravidade da situação e daí ser reivindicativa. A Educação passa-lhe ao lado.

Tenhamos presente: cerca de metade dos docentes reporta ter-se sentido nervoso (50,4%), triste (48,4%), irritado ou de mau humor (49,2%), com frequência semanal ou superior; um quarto dos alunos continua a sentir sintomas de depressão e ansiedade. E há um estudo recente, de Raquel Varela, que nos diz que 70% dos professores se encontram em exaustão emocional (Burnout), um em cada cinco toma medicação a mais e 84% deseja aposentar-se fartos que estão desta escola. No que concerne aos alunos, apenas 14% das raparigas e 11% dos rapazes dizem gostar da escola. São números convergentes e aterradores que demonstram sinais evidentes que esta escola não interessa nem aos professores, muito menos aos alunos. A obrigação de lá estar suplanta o gosto pelo conhecimento e a felicidade de lá ir. E assim, "em cada dez portugueses com idades compreendidas entre os 16 e os 65 anos, quatro só são capazes de fazer leituras simples de textos curtos ou de realizar operações matemáticas básicas". Este, entre outros, constitui o espelho do desastre! E, perante isto, pergunto, os responsáveis continuam a assobiar para o lado?

Espantoso é que, perante este quadro, o governo proponha "mais formação inicial aos professores, com conteúdos sobre literacia emocional, diversidade e inclusão". Isto é, não tenta procurar a causa e nela actuar, mas tão-só aplicar um ilusório paliativo quando é de morte anunciada do sistema que estamos a falar. Margarida Gaspar de Matos, no Público, fez eco da posição dos professores: "Eles próprios dizem que têm muita informação e que têm muitas acções de formação, mas depois não conseguem transformar esse conhecimento. Ficam atolados pelas circunstâncias, sem conseguirem angariar forças para serem transformadores e fica tudo como estava. Depois ficam abatidos, desmotivados, frustrados. E isto já tem 30 anos". Trinta? pergunto eu. Há mais de cinquenta que vivencio, leio investigadores, analistas e autores que assumem a necessidade de uma mudança de paradigma. Porém, têm sido, sucessivamente, ignorados e até mesmo silenciados. Se ontem tivessem sido dados os primeiros passos no sentido de uma escola de aprendizagem significativa e consistente, hoje, certamente, teríamos uma escola feliz e, na dianteira, a "puxar" pela sociedade.

Andam pelas margens, entretidos se os alunos têm ou não professores em todas as disciplinas curriculares; entretidos com as exaustivas matérias constantes nos extensos programas curriculares; entretidos com as rotinas do débito de matéria e na "classificação", não com uma avaliação de interesse bilateral (primeiro para os alunos, depois para os professores); entretidos com o perfil dos alunos à saída da escolaridade, mas não com o perfil à entrada; entretidos com a segmentação das disciplinas, sobretudo no Básico, ignorando que "as redes neuronais funcionam por associação de ideias, não com temas estanques"; entretidos com os velhos conceitos de turma e de aula, quando esses constructos já não fazem sentido; entretidos com efémeros projectos disto e daquilo; entretidos com exames e provas de aferição, sempre na lógica da "classificação"; entretidos com a burocracia, em alguns casos, até, visando o controlo das direcções de escola que se eternizam; entretidos com uma meritocracia balofa e de propaganda, através de sucessivos espectáculos de atribuição de prémios de mérito e, pasme-se, perante isto, passam ao lado do que é mais importante: a escola, o aluno e o professor no Século XXI. Esquecem-se, propositadamente, de uma clara definição do que deve ser uma escola com futuro respeitadora da autonomia organizacional e pedagógica. 


Ora, é óbvio que esta escola repetitiva, hierárquica, que não se preocupa com o conhecimento consistente e portador de futuro, é a escola que cinquenta anos depois, dizem os estudos, conduziu à triste situação de, apenas, 4% dos adultos revelarem todas as capacidades de ler e interpretar textos longos e densos. Portugal está na cauda dos 31 países analisados.

Um quadro deplorável quanto este, de consequências negativas na economia e no bem-estar das famílias, a continuar assim, face às dinâmicas que o mundo nos confronta, facilmente se imagina o que acontecerá nos próximos dez, vinte anos face à contínua aceleração do conhecimento. 

Só encontro uma solução: urgentemente, abrir o sistema ao debate que envolva investigadores, autores, professores, pais, alunos, empresários, associativismo em geral, agentes culturais, enfim, todos os que directa ou indirectamente façam parte da comunidade educativa. Sem tutelas, claro! Um movimento que nasça de baixo e não da cúpula cristalizada para baixo. Não caminhar nesse sentido expressa ignorância, ausência de humildade e sobretudo o medo de perder o controlo e os seus perversos interesses que advêm de uma sociedade intencionalmente nivelada por baixo.

A escola, melhor dizendo, a sociedade tem de ser passada a pente fino, - "a escola é socialmente produzida, logo socialmente transformável", sublinhou a Doutora Ana Benamente - porque as suas traves-mestras continuam próximas das lógicas da Sociedade Industrial. E como disse Drucker, "se queremos algo novo, temos de deixar de fazer algo velho". Portanto, o foco deve ser a pessoa e a vida! Parafraseando o título da obra de Claudius Ceccon, há que trazer a "escola da vida para a vida da escola". De resto, só entendo o processo educativo, a partir de nós, com rigor, exigência, sentido crítico, disciplina conquistada pela compreensão, muito estudo, cultura de participação, sentido de pertença, sentido de escuta e de aprendizagem com os alunos e muita capacidade de abertura para nos colocarmos distantes de fanatismos pedagógicos ocos. A prática pedagógica tem de ser LIBERTADORA. Não depende de tutelas anquilosadas. Leva alguns anos, pois leva, mas esse é o caminho.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 23 de novembro de 2024

A obra-prima do acaso e o medo em deixar-se fecundar pelo conhecimento

 

Os anos vão passando e a rotina por ali vai ficando. E os investigadores e autores vão clamando que se o atraso já é considerável, esperem por mais uma década e verão onde se encontram na tabela do conhecimento. Pessoalmente, que nada sou nos ambientes da investigação científica, na articulação dos saberes face aos dados disponíveis, no meu canto, despretensiosamente, vou lendo e reflectindo sobre o que dizem as referências do pensamento, e aí concluo que só dando "corda aos sapatos" da inteligência, poderá a Região Autónoma da Madeira, embora com muita dificuldade, aproximar-se dos níveis que garantam esperança. Essa luta devia acontecer, mas está acometida de uma intensa sonolência. 



A Educação, Ciência e Tecnologia (que designação tão importante e pomposa atribuíram), mantém aquele arrepiante registo de, se sempre foi assim, porque é que a história tem de mudar? Parafraseando Artur Portela Filho, in Desporto e as Letras (1975), não temos futebol mas temos-te a ti Ronaldo, "porque já se sabe, sempre surgirá, ao virar da esquina, um homem ou uma mulher providencial". Isto percorre todas as áreas. É a chamada obra-prima do acaso. Há sempre umas estrelas que despontam e que ajudam a disfarçar o preocupante cenário.

E são tantas as "formações" ao longo dos anos, tantas as intervenções de reputadas figuras da investigação em seminários, colóquios, entrevistas, livros, revistas e desabafos, porém, nada de novo acontece. Há medo em deixar-se fecundar pelo conhecimento. O secular, velho e esfarrapado tecido da educação parece ser muito mais do agrado do que o despertar para horizontes mais vastos, com novas vestes convergentes com os tempos que estamos a viver e com aqueles que os sinais demonstram estarem aí ao virar da esquina. Há um estudo da Historiadora Raquel Varela que demonstra que 70% dos professores se encontram em exaustão emocional (um estudo do Sindicato de Professores da Madeira regista 75%), que muitos tomam medicação a mais para enfrentar a profissão e que cerca de 84% deseja se aposentar. E há estudos que demonstram ser residual (cerca de 14% de raparigas e 11% dos rapazes) o número de alunos que diz gostar muito da escola. Perante um quadro destes, infelizmente, são poucos os que ousam levantar a voz, o que me leva a dizer que preferem a rotina do emprego e as ordens do "patrão", face à doença que os corrói lenta mas seguramente. Aquelas percentagens demonstram que este tipo de escola está esgotado, porque não agrada nem a uns nem a outros.

Mas que raio de gente a nossa, população, professores, pais, alunos e até empresários, que olha para mais nove anos de uma governação sem qualquer rasgo portador de futuro, sem uma ideia, uma que seja, apontada à tal educação, ciência e tecnologia? Nove anos de acertos marginais, onde o que resta é essa mal amanhada história dos manuais digitais, quando tantos países já a abandonaram, ou a tosca e enganadora iniciativa das salas de aula do futuro, "semeadas" aqui e ali, como se por aí fosse possível desenhar uma escola de conhecimento e cultura, capaz de abrir-se ao pensamento! De estrutural nada ou ninguém conhece onde os mentores desejam chegar. Muita propaganda e muito negócio, isso sim, muito "Ponto e Vírgula", exactamente como o sinal significa: pausa maior que a vírgula e menor que o ponto final. Marasmo! De resto, fecho de escolas, controlo hierárquico das direcções e perseguições atemorizadoras dos comportamentos mais abertos ao mundo. É cada vez mais difícil dar um passo distante dos olhares de uma espécie de "paizinho". Confirma-se que as ditaduras, sejam elas ferozes ou brandas, são sempre muito pouco inteligentes.

É um desencanto assistir ao desfile de personagens que teimam em contornar os pingos da chuva, vendendo gato por lebre, entretidos nos labirintos da absurda burocracia que controla e inferniza. Figuras que temem o debate aberto e profundo, que não se questionam nem participam através de um conhecimento cientificamente estruturado, daí incapazes de justificarem a sua própria política. Se a têm! É o poder pelo poder de braço dado com a menoridade científica e, quem depois vier, que se amanhe! Faz-me pena assistir à tolerância dos demais, sobretudo a dos professores que se contentaram com a contagem do tempo de serviço prestado, verdade se diga, "roubado"; ou do próprio sector privado que se cala à custa dos 40 milhões anuais de subsídios. Distribuir o dinheiro dos contribuintes é a parte mais fácil, convenhamos, até porque a região, sendo autónoma, o permite. Mais difícil e complexo é estudar o sistema, colocando todos, sem tutelas, a debatê-lo com os olhos colocados na mudança de paradigma.

Tenhamos presente o rigor dos colégios jesuítas. Na Catalunha, corajosa e inteligentemente, puseram as suas próprias normas em debate. Em dois anos surgiram cerca de 56 000 propostas de alteração. Reduziram-nas a dezessete propostas estruturantes e partiram para a sua implementação. Deitaram paredes de salas de aula tradicionais abaixo, criando amplos espaços de conhecimento; passaram ao lado da segmentação das disciplinas, dos horários, testes e trabalhos de casa (Pepe Menéndez, ex-vice-director da Rede de Escolas Jesuítas da Catalunha), mas definiram um princípio: doravante, o aluno tem de ser o protagonista da aprendizagem. Só um pormenor, ao correr do meu pensamento: de acordo com Edgar Morin (1921), sociólogo/filósofo, sobre a divisão da aprendizagem em disciplinas, sobretudo na aprendizagem básica: "(...) As disciplinas como estão estruturadas só servem para isolar os objetos do seu meio e isolar partes de um todo. Eliminam a desordem e as contradições existentes, para dar uma falsa sensação de arrumação. A educação deveria romper com isso mostrando as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas que hoje existem. Caso contrário, será sempre ineficiente e insuficiente para os cidadãos do futuro. (...)" Digo eu, tão simples para Morin com 103 anos e tão difícil de compreender para políticos de 50 e poucos anos!

Por aqui, mais nove anos de atraso, bem testemunhados numa legião de milhares de jovens que não estudam nem trabalham, associados a múltiplas iliteracias. Ora bem, será que o inquilino sabe onde está? Certamente que não. Por isso, desconhece onde quer chegar e, muito menos, os passos para lá chegar. 

Há palavras intemporais. Por exemplo, as de José Almada Negreiros (1893/1970): "A nossa querida terra está cheia de manhosos, de manhosos e de manhosos. E numa terra de manhosos, não se pode chegar senão a falsos prestígios. É o que há mais agora por aí, em Portugal - os falsos prestígios. E vai-se dizer de quem é culpa de haver manhosos e falsos prestígios: a culpa é nossa e só nossa!" -(Diário de Notícias, 3 de Novembro de 1933).

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 10 de novembro de 2024

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Se avaliassem a ortografia como fizeram com a EFACEC



Excerto de um oportuno artigo de Nuno Pacheco hoje publicado no Público. https://www.publico.pt/.../avaliassem-ortografia-fizeram...

"(...) 1) Nenhum dos objectivos do AO90 foi alcançado (nem a unificação da língua ou da escrita, utopia irrealizável; nem as obras de versão unificada a circularem por todo o espaço lusófono; nem a ratificação do AO90 por todos os países envolvidos, já que só quatro o fizeram e em condições legalmente suspeitas; nem a “simplificação” da língua, pois o que reina é um caos ortográfico em que já ninguém sabe pôr mão; nem o tal “prestígio internacional” que levaria o português a ser língua de trabalho na ONU – mais depressa chegou um português a secretário-geral das Nações Unidas do que o idioma a alcandorar-se a tal posto);

2) O AO90 foi realizado sem fundamentação, técnica e independente, do interesse público invocado [para o justificar] (isto foi dito e provado milhares de vezes, até antes de no-lo impingirem à força de uma miragem falsamente científica e de uma, aliás gorada, ambição política);

3) Não fez acompanhar o AO90 de uma análise de impacto nas finanças públicas e até agora custou aos cofres públicos uma soma que ninguém ainda avaliou, mas que em termos de futuro, na progressão natural do português, vai acumulando prejuízos a cada ano que passa.

Lembram-se do que disse o deputado independente Jorge Lemos na reunião plenária de 28 de Maio de 1991, quando se discutia o dito acordo? Disse que era “inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista, infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de instabilidade e inoportuno”. Justificou cada uma destas palavras e depois rasgou o documento. Infelizmente, a coragem demonstrada por Jorge Lemos tornou-se, nos muitos que passaram a lamentar que o acordo tenha sido aprovado, uma espécie de desabafo clandestino e inútil. (...)"

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

"Vá meninos, peguem nos telemóveis porque eu quero começar..."


Em Portugal há um Movimento por "menos ecrãs, mais vida", formado por quatro mães professoras, inclusive, uma petição no sentido de proibir ou limitar, nas escolas, o uso de telemóveis e os manuais digitais. Uma proposta que foi levada ao Ministério e, pelo que já foi divulgado, não sei se na sequência dessa reunião, o governo decidiu propor aos estabelecimentos de educação a adopção de medidas, para já, no quadro da utilização dos telemóveis.



Compreendo a preocupação, embora o foco esteja desajustado. A iniciativa apresenta-se no quadro da libertação de uma pressuposta obsessão pelo telemóvel e tudo o que a ele está associado. Compreendo, também, o interesse por, ao longo de toda a infância, tornar a escola em um espaço de vida, convivência e de desenvolvimento de toda a educação motora que os jogos, tradicionais e outros, transportam. Todavia, há múltiplos aspectos que me fazem não acompanhar aquele tipo de abordagem e até posicionar-me no lado oposto.

Para as autoras daquela iniciativa, a utilização do telemóvel constitui uma situação preocupante, contudo, a realidade, apresenta outros contornos que devem ser observados. Até porque vivemos num espantoso tempo tecnológico que nos faz estar rodeado de tantos e importantes estímulos. E saber geri-los deve constituir preocupação primeira. Se, nos últimos trinta anos, a investigação provocou uma evolução que "esmagou" todo o conhecimento acumulado ao longo da História da Humanidade, imagine-se o que acontecerá nos próximos trinta. 

Tenhamos presente a sinopse da notável série da RTP 1, "10 segundos para o futuro": "(...) As próximas décadas vão sofrer a maior e mais veloz transformação de sempre. Na tecnologia, na ciência, no ambiente, nas relações interpessoais. Vivemos numa espécie de grande acelerador de ciência, em que o ritmo das descobertas não para de surpreender. Nas últimas décadas acumulou-se mais conhecimento científico do que em toda a história da Humanidade. Em 2077 esse conhecimento científico terá duplicado várias vezes (...)". Pois, perante isto, de que vale proibir ou, docemente, limitar? Porque os franceses, entre outros, assim determinaram? Ou será que, por lá e por aqui, andam a reboque de percepções e achismos despidos de um qualquer fundamento?

Ora bem, não é o telemóvel, entre outros equipamentos, que deve ser colocado em causa, mas o sentido organizacional da escola que deve ser profundamente questionado, a cultura e a sua cultura interna, a mentalidade, os actos pedagógicos no quadro de crianças nascidas no Século XXI, os currículos, os programas, os mofentos conceitos de sala de aula, de turma, o número de alunos por estabelecimento, as avaliações, as metas curriculares, a burocracia, as reuniões que são mais do mesmo, a falaciosa autonomia dos estabelecimentos, o medo e subserviência à hierarquia, enfim, tudo o que encontramos da porta da escola para dentro e que não abona em favor de uma aprendizagem onde o aluno seja protagonista. Nesta escola os alunos não são sujeitos, são objectos. Ainda ontem, na TVI/CNN, o ministro foi claro ao assumir que "o sistema educativo não está centrado no aluno".


Portanto, proibir não me parece ser a solução para a tal propalada obsessão, dependência e isolamento dos alunos. Os próprios professores, por uma razão ou outra, nos intervalos, nos seus espaços de descanso entre uma e outra aula, não dispensarão o telemóvel. Então, o caminho terá de ser outro, o de tirar proveito para que jovens aprendam melhor e muito para além do manual. Agora, se à semelhança dos últimos duzentos anos, queremos alunos espartilhados na claustrofobia de uma sala, com professores obrigados a debitar matéria, exigindo que os passageiros do autocarro da sua viagem se mantenham sentados, serenos, calados e perfilhados pelo pescoço do da frente, então sim, o telemóvel poderá constituir um empecilho para o cumprimento do programa. 

O que existe é uma grave discrepância entre as características rotineiras do sistema educativo, a mentalidade, a sociedade que os políticos criaram (que a escola ajudou) e o uso dos equipamentos que a tecnologia colocou ao nosso dispor. Se a cultura organizacional da escola for outra, se a escola for muito mais que aulas focadas na transmissão do manual, se a tecnologia entrar na escola com o seu notável poder no processo de aprendizagem, então será ridículo proibi-la porque isso significará estar contra o tempo e a ciência. De resto, de uma forma simplista eu diria que se não podes proibir, associa-te e aproveita o momento no sentido de uma aprendizagem consistente e duradoura.

Li no blogue do Professor Alexandre Henriques: "Vá meninos peguem no telemóvel porque quero começar". E mais adiante: "(...) É apenas uma questão de tempo, mas acredito que esta expressão será um dia realidade na maioria das escolas (...) qualquer escola, qualquer professor que mantenha a aposta no modelo tradicional vai simplesmente ficar para trás. Existe uma nova religião, a religião tecnológica e esta tem muitos, muitos crentes, dependentes e até fanáticos. A escola apesar de laica, terá de aprender a conviver com ela, aceitá-la e, acima de tudo, orientá-la. Mas temos um problema! Os adultos que habitam nas escolas... a incapacidade que temos de acompanhar estes novos ritmos e os seus benefícios, fruto da nossa natural ignorância, é limitadora da sua implementação. Não é fácil entrar numa sala de aula em que o aluno se torna professor e o professor se torna aluno". Ora aí está!

Por outro lado, a talho de foice, já tem uns anos, perguntei a um jovem o porquê dos da sua geração estarem sempre "agarrados" ao telemóvel. Respondeu-me de forma subtil, mas profunda: "para não estarem sós; para se sentirem acompanhados". Pergunto, quanto isolamento existe nesta escola face ao qual ninguém faz um esforço de compreensão buscando as causas? Não devo generalizar, mas há muito isolamento e sinais de muitas depressões e frustrações escondidas. Porventura, o telemóvel assume-se como refúgio. Alguém está preocupado com isso? De todo, não. Lembrem-se que as camas de pedopsiquiatria estão quase sempre ocupadas. 

Finalmente, duas conclusões: 1. o telemóvel não é apenas jogos, fotografias e mensagens. É um factor de conhecimento que está muito para além dos manuais; 2. ele é muito mais poderoso que essa coisa dos manuais digitais. Ademais, é pessoal e não depende de investimentos públicos. Basta que o estabelecimento tenha um sinal de net.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Professores a menos ou a mais?

 

Mais uns dias e os alunos "regressam" à Escola. Neste momento, assiste-se ao problema de uma alegada falta de professores em função dos horários curriculares dos alunos. Sobretudo nos últimos anos, esta cantilena repete-se e acentua-se. De uma forma enervante, porque ninguém querer olhar de forma distintiva e portadora de futuro.



Mas será que temos professores a menos? Ou será que temos sistema educativo a mais? Se nos enquadrarmos nas lógicas organizacionais e pedagógicas dos últimos duzentos anos, obviamente que faltam professores. Cada disciplina um professor. E como à escola tudo vai parar, logo, o défice será sempre maior.

Só que nós estamos no século XXI, os tempos são outros, vivemos cercados de tecnologia e a extensa investigação produzida diz-nos que, organizacional e pedagogicamente, a aprendizagem já não se faz através da segmentação das disciplinas. O conhecimento é global e integrado. Entre muitos outros e em síntese, diz-nos Salman Khan que "(...) a escola tradicional não responde ao funcionamento do cérebro, porque as redes neuronais funcionam com a associação de ideias, não com temas estanques" ou autoconclusivos. Portanto, está em causa a segmentação das disciplinas.

Aos que têm responsabilidades políticas sugiro a metáfora do "homem do aspirador". Quando todos sopravam houve um que procurou fazer o movimento contrário. Descobriu o aspirador e ficou rico. Moral da história: que vejam o outro lado. Se por aí forem, porventura teremos professores a mais e descobrirão que é o Sistema Educativo que está errado. Pensem nisso!

Para além deste aspecto e não se trata de uma frase feita, "mais escola não significa melhor escola".

Ilustração: Google Imagens.