Por
Educador e escritor
Publicado em 06/05/2024
Não há apenas "dificuldades de aprendizagem"; há, sobretudo, inconfessáveis "dificuldades de ensinagem"
Nos idos de 20, proliferavam ‘inovações’ na internet. Psicólogos protagonizavam ‘lives’ de autoajuda. Médicos davam formação sobre ‘neuroeducação em sala de aula’. Economistas introduziam o ‘e-learning em sala de aula’. Filósofos discorriam sobre ‘computação ubíqua em sala de aula’. Universitários, que jamais haviam produzido algo inovador, eram pagos para proferir palestras sobre… ‘inovação’. E colaboravam com empresas oportunistas no ‘negócio da China’ dos grandes congressos e cursos online.
Uma crise ética se instalara. E um sindicato atento à voracidade de “grupos abutres de educação a distância” (sic) lançava avisos:
“Em tempos de crise, podem aparecer alguns, tentando se aproveitar do desespero das escolas, para vender. Este é um alerta que nós temos a obrigação de fazer pois essas pessoas usam informações e pesquisas para tentar convencer os mantenedores a comprar seus serviços”.
A educação continuava ainda a ser justificada mais como meio de controlo social do que como instrumento de aperfeiçoamento pessoal. Com efeito, a teoria e a prática educacional tinham transferido a base filosófica da educação do político para o técnico, cuja primazia era entregue à eficácia e ao controlo.
A organização do trabalho escolar continuava centrada em tarefas que tinham uma base de informação igual para todos, o mesmo tipo de meios e técnicas para todos, provas individuais de adaptação ao padrão exigido para o ‘aluno médio’ (padrão de capacidade ao qual se compara cada aluno individualmente).
Um dos maiores óbices à mudança residia no permanente julgamento e classificação do aprendiz, que invalidava qualquer esforço no sentido da autorresponsabilização.
O conceito de ‘classes’ (ou da eufemística designação de ‘ano de escolaridade’) estava associado a uma suposta homogeneidade organizada em sucessivas etapas. Infelizmente, a psicologia, que se alheara de dimensões que estiveram na sua génese como ciência, sancionava ‘cientificamente’ situações em que o aprendiz que, num tempo pré-estabelecido pelo ensinante, não absorvera a parte do programa correspondente, repetisse, desde o início, um mesmo ciclo de estudos.
A insistência na constituição de classes ‘homogêneas tomava por referência o argumento de que seria possível agrupar indivíduos com um nível intelectual comum. Mas, o processo de autoconstrução do conhecimento era inconciliável com a ideia de classe ‘homogênea’.
Muito menos se poderia admitir a manutenção paralela às classes ‘normais’, de grupos ditos ‘especiais’. A inadaptação não era exclusiva do aluno. Ela era, sobretudo, uma inadaptação da escola. Não havia apenas ‘dificuldades de aprendizagem’; havia, sobretudo, inconfessáveis ‘dificuldades de ensinagem’.
Como estava escrito no início do texto do projeto da Ponte, em 1976:
“Nós, professores, deveremos ter mais dúvidas do que certezas”.
Entre os ensinantes ainda existia uma forte tendência para considerar os aprendentes como entidades fechadas sobre as quais se pode agir exteriormente e não como ‘sistemas auto-organizados’ que promovem o seu ‘fecho’, num ‘fenômeno de auto-eco-organização extraordinariamente complexo que produz autonomia’.
Era, mais uma vez, o mestre Morin a questionar a eficácia e eficiência dos adeptos da ‘programação’ refletida na produção dos ‘bons alunos’ desprovidos de iniciativa. Impedia-se o jogo dos opostos, em que se temperavam dependências e autonomias não-programáveis. Afinal, o que conferia dignidade ao ato educativo?
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