As editoras não brincam em serviço. Nem aquelas empresas que vendem "salas de aula do futuro". Descoberta a falta de visão e a fragilidade conceptual, o quadro é logo aproveitado para o negócio. Sempre foi assim em qualquer sector de actividade. Procurar alternativas, discuti-las, contextualizá-las para definir um paradigma para o sistema educativo, sério, consistente, duradouro, que vá para além de uma legislatura, dá muito trabalho. Por isso, há sempre quem venda sonhos e quem esteja disponível para comprar, por vezes, gato por lebre. Os que saltam para o palco, falam, enfeitam com cores mil os seus produtos e vendem, cumprem os desígnios empresariais; os que compram, sentem-se bem com isso, porque, no plano mediático, dão a entender que laboram imenso por uma causa. Para o quase nada, digo eu!
Porém, se perguntarmos aos que compram quais são os princípios orientadores da sua acção, para onde pretendem conduzir um determinado processo, qual é a sua visão a oito, doze ou dezasseis anos, talvez não saibam explicá-los. Convicto estou que, de tanto se falar e de apontar a mudança como absolutamente necessária, porque há muitos anos reclamada, eu diria que pegam de empurrão e lá aparecem, embora com alguma desconfiança, a percorrer um caminho, neste caso, o da tecnologia ao serviço da aprendizagem.
Todavia, o problema é muito mais complexo e não pode ser analisado, apenas, através de uma variável, a dos "manuais digitais". Se me questionarem: mas não será melhor? Responderei: obviamente que as dinâmicas de aprendizagem podem ser diferentes. Só que isso afigura-se-me muito redutor quando a finalidade, no essencial, pela cultura existente, por mais que exprimam o contrário, é a de replicar, travestir e enfeitar o manual de papel. Entendo, por isso, que a estratégia para o conhecimento necessita de uma abordagem muito mais profunda e, porque é complexa, deve ser analisada de uma forma global e transversalmente integrada. Mexer, apenas, em uma das variáveis conduzirá a que o sistema nunca obtenha resultados proporcionais ao investimento.
Aliás, o busílis da questão está aí. Interessante e importante seria que o secretário regional da Educação apresentasse, publicamente, o desenho do que pretende, os pressupostos, a conjugação das várias etapas do processo, a interligação entre sistemas e as fases específicas dentro do próprio sistema, os posicionamentos estruturais relativamente a tudo, de onde se percebessem as respectivas dinâmicas, de curto, médio e de longo prazo. Não assisto, e esta não é uma questão de somenos importância, a qualquer preocupação em discutir as limitações da Autonomia ou como contorná-las, em avançar com a preparação de uma futura revisão Constitucional no quadro ambicioso de um País e três sistemas educativos, tampouco preocupações em, paulatinamente, desmantelar e reerguer o Ensino Básico sob os desígnios de uma nova mentalidade, onde o CONHECIMENTO, por via da CURIOSIDADE, rompa com as penosas rotinas "pedagógicas", com os conceitos de aula e de turma, currículos desarticulados, programas minuciosos sem tradução na vida real, rompa com estruturas organizacionais caducas, infindáveis burocracias, sistemas de avaliação abstrusos, balofa meritocracia, obsessão pelos exames, subserviências sem fim, professores que ao invés de moderadores da aprendizagem, são impelidos a falar, falar muito, roubando ou matando o acto fecundante da descoberta.
Quando tudo isto e muito mais não acontece, consolida-se a ideia que tudo não passa de disparos pontuais no quadro de uma "moda" e não como questões centrais e vitais. Parece-me óbvio que não basta falar de "nativos digitais", expressão muitas vezes metida a martelo no discurso político, porque, relembro Tony Bates (ex-vice-presidente executivo da Microsoft: "(...) o bom ensino supera uma escolha tecnológica pobre, mas a tecnologia nunca salvará o mau ensino". Por isso, como já aqui salientei em uma outra reflexão, não basta multiplicar as salas de informática ou substituir o quadro preto e o giz por quadros interactivos e multicolores. De nada valerá, qual metáfora, utilizar a tecnologia de hoje como substituição dos antigos acetatos copiados do manual.
A propósito, regresso a Carl Rogers (1902/1987) que sintetizou tudo isto em uma frase que transporto em memória: "ensinar é mais que transmitir conhecimento – é despertar a curiosidade, é instigar o desejo de ir além do conhecido. É desafiar a pessoa a confiar em si mesma e dar um novo passo em busca de mais. É educar para a vida e para novos relacionamentos". Educar implica, pois, desde logo, criar um alicerce, que não se compagina com memorizações para esquecer, testes à procura do que não sabem, antes implica saber esperar pelo momento do despertar e das opções pessoais.
Ora bem, embora louváveis todas as iniciativas, sob a forma de conferências, jornadas ou seminários, se o olhar ficar pelas margens e não no âmago dos assuntos, onde se entrecruza uma complexa teia de factores, tarde ou cedo, faltará sempre qualquer coisa ou muita coisa, o que significará que o sistema, tendencial e repetidamente, não passará da fase de arranque. Quando não existe uma ideia para o sistema ou as ideias surgem de forma avulsa, fica claro que tudo se resume a uma corrida conforme as pressões externas e/ou a necessidade de, politicamente, aparecer. A inexistência de um um fio condutor que integre todas as variáveis, só promove picos de entusiasmo e páginas da comunicação social.
Portanto, falta ao sistema educativo, mais do que "manuais digitais", a capacidade de ver longe, falta ESTUDO, falta utopia e uma estruturada paciência e capacidade de integração das partes no todo. Falta ir ver como resultaram as experiências de sucesso; falta saber ouvir e ler; falta pensamento para uma firme actuação a montante da escola; falta acreditar que a centralização e a padronização constituem barreiras bloqueadoras do conhecimento; falta abrir o sistema à liberdade das escolas se organizarem de forma distintiva; falta acreditar que é fácil preparar para provas de exame e muito mais difícil preparar para a vida e que esta segunda dimensão deve prevalecer. Falta acreditar que a Matemática ou o Português não são mais importantes que a educação artística ou outras áreas de expressão; falta ter como bandeira que a escola deve transmitir aquilo que seja útil para a vida real e que cada aluno deve "pegar naquilo que lhe convém" (...) porque "não podemos dizer que tudo convém a todos" - Filósofo Gilles Deleuze (complicado, não é?). Falta transformar a Educação em uma grande mesa de diálogo. Falta CULTURA e uma outra cultura obsessiva pelo aluno, incutindo-lhe confiança e interesse. Falta uma mentalidade que individualize, com rigor, geradora de "uma escola por aluno", enfim, falta CORAGEM e seriedade. E isso, os "manuais digitais" não resolvem!
Ilustração: Google Imagens.
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