Tenho dificuldade em encaixar, nos séculos que estamos a viver, um processo de aprendizagem que não parte do aluno, antes, de forma vertical, segue a lógica hierárquica que se inicia no decisor político e termina no professor. Partindo do pressuposto de uma certeza absoluta, o político, segundo as suas convicções, determina, e ao professor compete o rigoroso cumprimento das tarefas. E para que tudo decorra na tal apregoada "normalidade", sobre as suas cabeças deixa a espada da avaliação de desempenho, a tal que acaba por determinar ou não o marcar passo na carreira. Os alunos, esses, genericamente, são os que menos contam neste processo, embora o discurso político enfatize que eles estão no centro das preocupações educativas. Uma falácia!
Estou a seguir a série televisiva "Merlí". Delicio-me de episódio em episódio. Da sinopse da série destaco: "Merlí Bergeron é o novo professor de filosofia. Um professor desajeitado, irreverente e irónico, com uma personalidade forte e pouco convencional. Merlí irrompe pela escola, como um elefante numa loja de porcelanas, determinado a mudar a vida de estudantes e professores com os seus métodos revolucionários. O seu lema é: "Os adolescentes não são tolos, estão simplesmente adormecidos", e o seu objectivo é despertá-los. As suas armas são: Kant, Aristóteles, Platão... filósofos clássicos para ajudar os jovens a enfrentar os grandes desafios da actualidade. Do que podem estas crianças ser capazes se pararem de agir como parte do rebanho e começarem a pensar pelas suas próprias cabeças? Como professor, Merlí faz com que Sócrates, Hume, Nietzsche e outras figuras da história da filosofia ganhem vida para os seus alunos, de modo a ajudá-los, não sem conflitos, a resolver os problemas do quotidiano".
Merlí é apenas um exemplo de como é possível sair do convencional, de um sistema que olha, de forma cega para os rígidos currículos e programas, distantes de um olhar sobre a vida. Contextualizando-a, a atitude de Merlí permite romper com o passado e seguir uma característica transversal, permite aprendizagens significativas, duradouras e portadoras de futuro. O problema, portanto, não está, como por aí foi anunciado, na distribuição com traços políticos, repito, políticos, de mais algumas centenas de computadores, para que os jovens menos favorecidos sigam, a distância, os conteúdos programáticos superiormente definidos. O problema é mais profundo.
Deste telensino restará zero, porque, fundamentalmente, repete o erro. Transporta o manual e só o manual para casa através dos meios tecnológicos. Naturalmente que a proposta deveria ser outra, com menos encargos e melhores resultados. Até no quadro de uma "experimentação social" de que falou Yuval Noah Harari num artigo recente no Financial Times. Portanto, o actual sistema pode satisfazer o interesse político face a uma população eleitora, ela própria com graves lacunas de formação e entendimento destes processos, mas não serve os desígnios de um conhecimento interligado e transferível. Regresso a Merlí: "há qualquer coisa podre na Educação". Há, obviamente que sim!
Em um episódio da série "Outra Escola" - episódio nº 13, da responsabilidade da RTP, o ex-Ministro da Educação, Guilherme de Oliveira Martins, sintetizou de forma assertiva:
"Hoje os estudantes dizem que a escola é uma maçada. Nós temos que compreender. Para garantir que a escola não seja, temos de perceber, exactamente, que a escola é um lugar de aprendizagem e a aprendizagem tem a ver com a vida. Não há uma realidade lá fora, que é a vida, e a escola que está cá dentro, na sala de aula". Pergunto: de que vale, então, um professor papaguear o manual, seguindo conteúdos como quem "reza o Terço", se o que resta não se encontra integrado em uma dimensão maior da aprendizagem? Nesse episódio escutei um aluno: "(...) nós andamos tão à pressa para dar mais matéria que esquecemos da outra. Andamos sempre na pressa da próxima que não dá tempo para assentar a última". Outro referiu: "Eu tenho boas notas a História. Terminei com 16 no último período. Mas eu não sei nada do que se deu no período passado. Decorei aquilo para o teste (...)".
Estas posições levam-me a trazer em pensamento Zygmunt Bauman (trazido à colação por Merlí no episódio de ontem) e o seu conceito de modernidade líquida. Segundo o sociólogo, conceito de acordo com uma época em que as "relações sociais, económicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos (...) o que se opõe à modernidade sólida do período anterior, caracterizada pela "rigidez e solidificação das relações humanas, das relações sociais, da ciência e do pensamento". Adequando o pensamento de Bauman à Escola, então, o problema situa-se no facto de os políticos governantes, teimosamente, continuarem a querer vender um "produto" pressupostamente de vanguarda, quando ele se encontra globalmente desadequado das necessidades e dos interesses dos "clientes". Ora, "se a modernidade líquida tem instituições líquidas, pois cada pessoa é uma instituição, logo a modernidade líquida tem de ser ágil". Infelizmente, não é, sobretudo no espaço da instituição escola.
Neste contexto, confesso, senti um arrepio ao seguir algumas sessões de telensino. Tanto esforço e tanta propaganda para nada ou quase nada. Se na aprendizagem básica havia tanto por onde caminhar, aproveitando o momento para fazer pensar e descobrir a curiosidade na produção de conhecimento, no secundário e sobretudo no ano de acesso ao ensino superior, concordo com Maria Conceição Silva (Público, 19.04.2020) que sublinhou: "Nesta lógica de experimentação social a que a pandemia nos obrigou, seria interessante o Governo ter a coragem de experimentar este ano novas formas de acesso ao ensino superior". O governo preferiu a atitude mais fácil, a do exame conjugada com as folhas de Excel que determinam a ocupação de lugares, muitas vezes desadequadas das vocações.
Socorro-me do que disseram duas figuras na série documental "Outra Escola": por um lado, o Dr. Laborinho Lúcio: "(...) o que hoje se pede às sociedades modernas é cada vez mais cooperação, cada vez mais co-responsabilização para podermos viver aquilo que é a sociedade do risco (...) perante isto, nós não podemos ter uma escola que faz exactamente o contrário (...)"; por outro, a Professora Maria de Assis, Promotora de Práticas Colaborativas - Arte, Cultura, Educação: "(...) nós só aprendemos o que queremos, porque quero ou porque sou levado por alguém que me inspire. Mas depois aprendo por mim mesmo. O conhecimento é uma construção própria. Não é algo que eu fixei e que não sei aplicar em diferentes contextos. Portanto, esta coisa que há um especialista que transmite conhecimento é uma falácia. É fantástico que exista o especialista (...) mas o conhecimento constrói-se por cada um".
Termino, regressando a Merlí: "(...) Estou fartinho de pessoas que dizem que a Filosofia não serve para nada. Parece que o sistema educativo esqueceu as perguntas: quem somos, de onde vimos e para onde vamos. O que interessa é que empresa criaremos e quanto dinheiro ganharemos. A Filosofia serve para reflectir sobre a vida e sobre o ser humano. E para questionar as coisas. A Filosofia e o poder têm uma tensão sexual não resolvida. A Filosofia é virar do avesso tudo quanto damos por sabido. (...) quero-vos acordados, com as antenas ligadas ao que se passa à vossa volta. Preparados para assumir as contradições e as dúvidas criadas pela vida e para enfrentar as adversidades e aprender com as derrotas (...) - passagem do primeiro episódio.
Até onde tudo isto nos levaria... Ai se escutassem os alunos, os professores no quadro de uma visão sistémica e de futuro! Desde logo perceberiam o tempo que andam a perder com este "telensino". O que assisto não é "estudar com autonomia", mas matar a autonomia e o interesse pelo CONHECIMENTO.
Ilustração: Google Imagens.
NOTA
Agradeço ao meu Colega e Amigo Dr. João Luís, Professor de Filosofia, o facto de me ter sugerido o acompanhamento da série Merlí. Obrigado.
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