sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ensinar e aprender Filosofia

  

1. A cada ano que passa, a perigosa – e muito séria – situação é várias vezes noticiada nos meses de setembro e outubro, comentada pelo poder político e diversos “especialistas”, mas depois de absorvida a agenda mediática e o (parco) tempo consagrado ao debate, não emerge qualquer decisão política relevante que inverta ou resolva o problema da falta de professores nas escolas e, como é expectável (e habitual), este agrava-se. Seja em território continental ou na Região Autónoma da Madeira, continua-se a “assobiar para o lado” sem se investir robusta e eficazmente na Educação e, malfadadamente, assim prossegue a “gritante” falta de meios tecnológicos nas salas de aula, mas agora também dos indispensáveis recursos humanos com a devida habilitação profissional!



O Dia do Professor foi a 5 de outubro, simultâneo com o da implantação da República e da assinatura do Tratado de Zamora, em 1143, entre D. Afonso Henriques e Afonso VII de Leão e Castela. Significante data, é um facto, mas pouco exaltada e contidamente festejada pelas dezenas de milhar de profissionais da Educação que ainda exercem, aposentados ou aqueles que por um ou outro motivo viraram as costas à docência. Hoje, muitos destes últimos fazem falta ao sistema – conheço pessoalmente uma boa soma –, mas já não estão dispostos a abraçar a carreira (ou a ela retornar), pois esta não é economicamente atrativa nem valorizada (e respeitada) pelo poder político, assim como por parte significativa da sociedade. O velho ‘prestígio’ do professor cessou.

Paralelamente a isto, o discurso propagandeado nos órgãos de comunicação social está maculado. Considera-se, erroneamente, que o facto de 60% dos professores portugueses sofrerem de exaustão emocional (“burnout”), que o excesso da burocracia existente nas escolas, o crescente desgaste da profissão (a que se associa uma avultada porção de baixas médicas), a não aceitação de colocações em escolas que ficam, em alguns casos, a mais de 300 km de casa (e consequente afastamento da família) ou de horários incompletos, temporários e precários, para além dos múltiplos pedidos de aposentação antecipada – não descurando que o número dos que agora estudam para serem professores caiu cerca de 70% desde o início deste século –, enfim, tudo o que de negativo está a suceder na Educação (e que até já obriga à contratação de licenciados sem habilitação profissional) é direta ou indiretamente culpa dos professores. 


Pior, como em Portugal não se planeia e os nossos atores e decisores políticos vivem (e convivem) mal com a culpa ou responsabilidade, então, quando há problemas na Educação eles têm infalivelmente de cair sobre “o elo mais fraco”, os professores. Contudo, aqueles que abraçaram a missão (e vocação) de educar são, de facto, seres extraordinários! Mais uma vez comprovaram-no nesta recente “luta” contra um adversário desconhecido, inesperado, invisível, extraordinariamente perigoso e letal – e que a todos ainda coloca em risco –, num contexto deveras desafiante, mas onde a mobilização e todo o seu profissionalismo veio ao de cima e não descuidaram e prosseguiram com as aprendizagens (e avaliação) dos seus alunos. Apesar de impedidos de se deslocarem para as salas de aula, isolados da rotina e da azáfama das escolas, inobstante confinados, a arte e o dever/compromisso de ensinar e fazer aprender não pereceu e desenrolou-se satisfatoriamente no último ano e meio com um novo e improvisado modelo de Ensino à Distância.

Nas palavras de um dos grandes intelectuais do século XX, George Steiner, mesmo numa conjuntura adversa e desprovido de grande (ou exíguo) apoio institucional, o professor tem sempre “consciência da magnitude e, se quisermos, do mistério da sua profissão”, tem o discernimento de que lida com o que existe de mais vital num ser humano, neste caso, numa criança ou jovem, em suma, tem a noção de que alimenta a “chama nascente na alma dos seus alunos”. Dito por outras palavras, tem a lucidez de que é uma referência (ou bússola) para os seus alunos, pois cabe-lhe a difícil e crucial tarefa (e esforço) de despertar nas mentes dos seus aprendizes as novas e originais ideias que povoarão o amanhã e de por esta via ajudar (e participar) na construção de um futuro.

Entretanto, retornados agora ao seu “habitat natural” – a sala de aula –, local de experiência(s) e onde por excelência é transmitida uma herança às mais jovens gerações nas quais se deposita uma esperança e se procura a excelência (quase a perfeição), aqui, professores e alunos aprendem, herdam e partilham conhecimentos e estórias, pensam, testam modelos, divergem no entendimento ou na interpretação sobre a realidade e até chocam nas orientações/rumos para o futuro. Sem margem para dúvidas que se trata de um exercício difícil, todos os dias desafiante e por vezes até extenuante, sobretudo agora com o livre e ininterrupto acesso à internet e às redes sociais nos telemóveis, mas o equilíbrio é possível e desde há séculos que anões continuam a subir aos ombros de gigantes e começam a ver mais longe do que eles, “não pela penetração do próprio olhar ou pela estatura do corpo, mas porque foram erguidos ao alto e alçados pela grandeza de gigantes” (Bernardo de Chartres). Despertar nos outros sonhos e poderes além dos nossos, induzir um amor por aquilo que amamos, começar a erigir hoje as mudanças que precisamos para um porvir melhor – sem ignorar ou menosprezar o passado –, eis uma aventura inigualável e só realizável por aqueles que têm uma paixão e vocação por ensinar, os autênticos professores.

2. No dia em que escrevo estas linhas, e a poucos dias de se celebrar mais um Dia Mundial da Filosofia, estabelecido pela UNESCO, em 2002, para destacar a importância desta disciplina e saber/conhecimento com mais de 2500 anos, sobretudo para os jovens, recebo a informação de que o governo espanhol vai acabar com a lecionação da Filosofia no ensino secundário. Em 2017 a ideia já tinha irrompido, mas foi depois abandonada. Todavia, assiste-se a um novo e forte ataque, que a surtir efeito terá graves consequências para as próximas gerações e é mais uma “baixa” nas Humanidades. Para quem guarda alguma memória, em 2002 também tivemos, em Portugal, uma “investida” sobre a Filosofia, quando o ministro David Justino, mediante um equívoco ou não, retirou a disciplina dos currículos do 12º ano. A medida gerou forte contestação na opinião pública – e junto das associações de professores da especialidade –, e o ministro lá recuou dizendo que na origem de toda a contenda estava um “puro lapso”, acrescentando que não estava “satisfeito com os conteúdos dos programas”, os quais tinham de ser “repensados”. E foram… sendo que as alterações introduzidas deixaram-na pior, numa espécie de introdução à Filosofia ou “montra” das suas diferentes áreas de estudo, silenciando importantes autores e problemas/questões filosóficas e chegamos hoje ao ponto de já nem sequer existir um Programa para disciplina (revogado pelo despacho 6605-A/2021, de 6 de julho), mas somente as famosas “Aprendizagens Essenciais”.

Relevante, útil, difícil, inquietante, dispensável, incómoda, aborrecida, abstrata, são alguns dos muitos adjetivos usados pelos (meus) alunos para a descrevem. Ainda assim, para além do (crucial) momento de ceticismo sempre presente, no final do ano letivo lá confessam que esta não é um assunto exclusivo para especialistas e que os/as ajudou a ampliar sua compreensão do mundo, expandiu horizontes e fomentou a liberdade de um pensamento que se tornou bem mais prudente e crítico. Afinal de contas, mesmo com mais de dois milénios e meio de existência, a sua aprendizagem continua a ter valor e “alguma” utilidade.

Miguel Alexandre Palma Costa

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