terça-feira, 23 de novembro de 2021

Ponto de Ordem


A verdadeira formação só tem sentido quando não existe hipocrisia, isto é, quando os comportamentos contraditórios não colocam em causa a nobreza das promessas.



Centenas de formações para professores são produzidas todos os anos sobre temas diversos e com painéis de ilustres convidados, muitos perante os quais me curvo. Sem qualquer menosprezo, dei até conta de uma sobre a “colocação da voz” quando, hoje, o professor deve ser mais um mediador da aprendizagem do que um pregador do manual. Mas apesar dos apelativos títulos e objectivos das iniciativas, a maioria delas não serve para transformar seja o que for, apenas para juntar um determinado número de horas necessárias à “tentativa” de subida na penosa carreira profissional. Durante um, dois, três dias, escutam-se pensamentos diversos, que entusiasmam, que fazem, por momentos, acreditar que é possível uma escola de vida e para a vida, mas logo a rotina regressa, a lei pisoteia e, subtilmente, o despacho esmaga numa espécie de tecla de computador: “delete”. O entusiasmo gerado pela audição de quem conduz a pensar e reflectir sobre a escola que temos e a escola que deveríamos dispor, tem sempre vida curta. A formação, muitas de incalculável interesse, mor das vezes, morre na casca. O político comparece, dá as boas-vindas, enaltece a iniciativa, faz o número mediático que lhe interessa, a plateia aplaude e na Segunda-feira seguinte, sua excelência a rotina manda prosseguir o vaivém inconsequente que mata a curiosidade e de caminho esmaga professores e alunos. Porquê?

Ininteligível. São tantas as razões, uma delas, digo eu, com alguma perversidade, aceito que assim interpretem, talvez seja o interesse por um certo grau de ignorância, ao mesmo tempo que propagandeiam que temos a “geração mais bem preparada de sempre”. A própria Lei, por vezes vem enfeitada de excelentes propósitos, parece aberta ao mundo, à liberdade das escolas, à protecção da sua autonomia, à defesa dos grandes princípios orientadores que devem enformar a aprendizagem de qualidade para este tempo de incerteza, de paradoxo e até de irracionalidade, um tempo que sobejamente diz não ao enciclopedismo e que exige ousadia que coloque em prática o direito individual ao sonho. As linhas da Lei parecem, apenas parecem. A Lei é, de facto, tramada! Na prática, volto a sublinhar as excepções, a hierarquia continua a dormir, ressonando intensamente na almofada dos princípios orientadores da Sociedade Industrial que Alvin Tofller tão bem sintetizou: a maximização, concentração, centralização, padronização, sincronização e especialização.

E isso conduz, inevitavelmente, a uma sequência de procedimentos que coarctam a percepção da oferta de um sistema educativo inclusivo e de superior qualidade, mata qualquer obsessão para o conseguir, assassina os rasgos criativos, destrói a possibilidade de uma visão estratégica e portadora de futuro, arruína a originalidade e o amor pela mudança. E surge o Burnout, a paixão pelo nobre acto de ser professor amolece e faz adoecer, surge o desencanto, o abandono e o silencioso conflito entre pares, por via de uma ridícula e competitiva avaliação de desempenho, geradora de uma atmosfera de desconfiança e hostilidade; e surgem as reuniões, sufocantes e improdutivas, que não só repetem os problemas há muito identificados como sustentam a burocracia desnecessária, a promoção de centenas de projectos disto e daquilo que ajudam a enfeitar os relatórios e a tranquilizar as consciências. Documentos que, tarde ou cedo, sabemos, destinam-se ao arquivo morto.


E a “formação” continua (deveria ser contínua e com os olhos colocados na mudança de paradigma), cega e distante do rol das novas exigências do mundo e das necessidades de cada indivíduo. A verdadeira formação só tem sentido quando não existe hipocrisia, isto é, quando os comportamentos contraditórios não colocam em causa a nobreza das promessas. Só existe formação quando ela se transforma no embrião da mudança, quando, no plano científico, se interioriza e aplica ao encontro das necessidades daqueles que são a razão da existência do professor. No centenário do eterno Paulo Freire trago em memória duas sínteses perfeitas: “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre” (…) porque “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”. O político ainda não percebeu a dimensão do pensamento de Freire.

NOTA
Artigo da minha responsabilidade a incluir na edição de Dezembro de A Página da Educação

Sem comentários:

Enviar um comentário