sexta-feira, 13 de setembro de 2024

"Vá meninos, peguem nos telemóveis porque eu quero começar..."


Em Portugal há um Movimento por "menos ecrãs, mais vida", formado por quatro mães professoras, inclusive, uma petição no sentido de proibir ou limitar, nas escolas, o uso de telemóveis e os manuais digitais. Uma proposta que foi levada ao Ministério e, pelo que já foi divulgado, não sei se na sequência dessa reunião, o governo decidiu propor aos estabelecimentos de educação a adopção de medidas, para já, no quadro da utilização dos telemóveis.



Compreendo a preocupação, embora o foco esteja desajustado. A iniciativa apresenta-se no quadro da libertação de uma pressuposta obsessão pelo telemóvel e tudo o que a ele está associado. Compreendo, também, o interesse por, ao longo de toda a infância, tornar a escola em um espaço de vida, convivência e de desenvolvimento de toda a educação motora que os jogos, tradicionais e outros, transportam. Todavia, há múltiplos aspectos que me fazem não acompanhar aquele tipo de abordagem e até posicionar-me no lado oposto.

Para as autoras daquela iniciativa, a utilização do telemóvel constitui uma situação preocupante, contudo, a realidade, apresenta outros contornos que devem ser observados. Até porque vivemos num espantoso tempo tecnológico que nos faz estar rodeado de tantos e importantes estímulos. E saber geri-los deve constituir preocupação primeira. Se, nos últimos trinta anos, a investigação provocou uma evolução que "esmagou" todo o conhecimento acumulado ao longo da História da Humanidade, imagine-se o que acontecerá nos próximos trinta. 

Tenhamos presente a sinopse da notável série da RTP 1, "10 segundos para o futuro": "(...) As próximas décadas vão sofrer a maior e mais veloz transformação de sempre. Na tecnologia, na ciência, no ambiente, nas relações interpessoais. Vivemos numa espécie de grande acelerador de ciência, em que o ritmo das descobertas não para de surpreender. Nas últimas décadas acumulou-se mais conhecimento científico do que em toda a história da Humanidade. Em 2077 esse conhecimento científico terá duplicado várias vezes (...)". Pois, perante isto, de que vale proibir ou, docemente, limitar? Porque os franceses, entre outros, assim determinaram? Ou será que, por lá e por aqui, andam a reboque de percepções e achismos despidos de um qualquer fundamento?

Ora bem, não é o telemóvel, entre outros equipamentos, que deve ser colocado em causa, mas o sentido organizacional da escola que deve ser profundamente questionado, a cultura e a sua cultura interna, a mentalidade, os actos pedagógicos no quadro de crianças nascidas no Século XXI, os currículos, os programas, os mofentos conceitos de sala de aula, de turma, o número de alunos por estabelecimento, as avaliações, as metas curriculares, a burocracia, as reuniões que são mais do mesmo, a falaciosa autonomia dos estabelecimentos, o medo e subserviência à hierarquia, enfim, tudo o que encontramos da porta da escola para dentro e que não abona em favor de uma aprendizagem onde o aluno seja protagonista. Nesta escola os alunos não são sujeitos, são objectos. Ainda ontem, na TVI/CNN, o ministro foi claro ao assumir que "o sistema educativo não está centrado no aluno".


Portanto, proibir não me parece ser a solução para a tal propalada obsessão, dependência e isolamento dos alunos. Os próprios professores, por uma razão ou outra, nos intervalos, nos seus espaços de descanso entre uma e outra aula, não dispensarão o telemóvel. Então, o caminho terá de ser outro, o de tirar proveito para que jovens aprendam melhor e muito para além do manual. Agora, se à semelhança dos últimos duzentos anos, queremos alunos espartilhados na claustrofobia de uma sala, com professores obrigados a debitar matéria, exigindo que os passageiros do autocarro da sua viagem se mantenham sentados, serenos, calados e perfilhados pelo pescoço do da frente, então sim, o telemóvel poderá constituir um empecilho para o cumprimento do programa. 

O que existe é uma grave discrepância entre as características rotineiras do sistema educativo, a mentalidade, a sociedade que os políticos criaram (que a escola ajudou) e o uso dos equipamentos que a tecnologia colocou ao nosso dispor. Se a cultura organizacional da escola for outra, se a escola for muito mais que aulas focadas na transmissão do manual, se a tecnologia entrar na escola com o seu notável poder no processo de aprendizagem, então será ridículo proibi-la porque isso significará estar contra o tempo e a ciência. De resto, de uma forma simplista eu diria que se não podes proibir, associa-te e aproveita o momento no sentido de uma aprendizagem consistente e duradoura.

Li no blogue do Professor Alexandre Henriques: "Vá meninos peguem no telemóvel porque quero começar". E mais adiante: "(...) É apenas uma questão de tempo, mas acredito que esta expressão será um dia realidade na maioria das escolas (...) qualquer escola, qualquer professor que mantenha a aposta no modelo tradicional vai simplesmente ficar para trás. Existe uma nova religião, a religião tecnológica e esta tem muitos, muitos crentes, dependentes e até fanáticos. A escola apesar de laica, terá de aprender a conviver com ela, aceitá-la e, acima de tudo, orientá-la. Mas temos um problema! Os adultos que habitam nas escolas... a incapacidade que temos de acompanhar estes novos ritmos e os seus benefícios, fruto da nossa natural ignorância, é limitadora da sua implementação. Não é fácil entrar numa sala de aula em que o aluno se torna professor e o professor se torna aluno". Ora aí está!

Por outro lado, a talho de foice, já tem uns anos, perguntei a um jovem o porquê dos da sua geração estarem sempre "agarrados" ao telemóvel. Respondeu-me de forma subtil, mas profunda: "para não estarem sós; para se sentirem acompanhados". Pergunto, quanto isolamento existe nesta escola face ao qual ninguém faz um esforço de compreensão buscando as causas? Não devo generalizar, mas há muito isolamento e sinais de muitas depressões e frustrações escondidas. Porventura, o telemóvel assume-se como refúgio. Alguém está preocupado com isso? De todo, não. Lembrem-se que as camas de pedopsiquiatria estão quase sempre ocupadas. 

Finalmente, duas conclusões: 1. o telemóvel não é apenas jogos, fotografias e mensagens. É um factor de conhecimento que está muito para além dos manuais; 2. ele é muito mais poderoso que essa coisa dos manuais digitais. Ademais, é pessoal e não depende de investimentos públicos. Basta que o estabelecimento tenha um sinal de net.

Ilustração: Google Imagens.

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