Por
Liliana Rodrigues
Professora Universitária (UMa)
Na obra “A República”, de Platão, encontramos a descrição da Cidade Ideal que, goste-se ou não, está ordenada de forma harmoniosa. Pelo menos, segundo os critérios de Platão. Esta construção social, na lógica do filósofo da Grécia Antiga, tem por base a Razão, enquanto faculdade superior do humano.
A cidade está organizada em três classes sociais, cada uma correspondente a uma parte da alma humana: 1. Governantes, dominados pela Razão – são os filósofos-reis, sábios e racionais; 2. Guardas, cobertos pela Coragem – defendem a cidade e mantêm a ordem. Precisam de coragem e disciplina, sendo educados para a obediência aos governantes e os 3. Produtores, influenciados pelo Desejo – agricultores, artesãos e comerciantes. São os produtores que devem garantir o sustento da cidade, guiados pelo desejo moderado de riqueza.
Não quero discutir as questões de reprodução social, cada vez mais marcantes na sociedade contemporânea. Em todas as sociedades a Justiça tem um papel fundamental. Na Cidade Ideal, a Justiça acontece quando cada classe faz aquilo que lhe compete, sem comprometer as funções das outras classes. Isto é, cada um faz o que lhe é devido para garantir a harmonia social e ninguém está acima ou abaixo de nenhum outro cidadão. Além disso, Platão defende a educação para a Justiça com o objetivo de construir uma comunidade que evita interesses pessoais e que promove o bem comum. Podemos, então, repensar sobre que papel teria a educação naquela altura e que lugar ela ocupa hoje. Que tarefas mais teremos de dar aos professores e se serão apenas eles a suportar o peso de educar para a Justiça. Acrescentaria: até onde estamos disponíveis para educar líderes justos.
Já aqui ocorre a dificuldade: é que o papel da educação nas sociedades contemporâneas depende das lideranças que temos e do que querem elas construir a médio e a longo prazo. Nunca tivemos tantas instituições de ensino disponíveis. Por outro lado, nunca tivemos tanto desinteresse por elas como agora. Terá esta crise alguma relação com a desvalorização da dignidade humana e da Justiça?
Eu estou a demorar nesta reflexão sobre o mundo, que estamos a construir para vivermos e deixarmos a outros, porque queria tentar perceber o que levou três jovens a violarem uma rapariga de 16 anos. A filmarem. A colocarem nas redes sociais. Milhares de cúmplices viram e reviram, e não fizeram queixa a ninguém. Ficaram a ver, como se não fossem imagens de um mundo real. Com homens reais. Com uma mulher violentada sistematicamente durante dias. Semanas. A violação não acabou na garagem. Começou lá e estendeu-se nas plataformas de “convívio social”. O mundo das partilhas é de uma crueldade atroz. Garante a memória eterna. Que Justiça é esta desta “Cidade”?
Este é “mais um caso”. Mais um em tantos outros, em que as cidades deste mundo não conseguem ter mão. Em Itália, duas jovens foram mortas à luz do dia. Esfaqueadas. Chamam-lhes de stalkers. Pessoas que perseguem outras pessoas de forma obsessiva. Insistente. Gente que, por alguma razão, foi recusada. E há tanta maneira de perseguir. Os tiques de malvadez são aprumados e requintados com adulações de quase cientificidade, ou de baixeza evidente. A Lei da Cidade parece não nos proteger.
Talvez seja o tempo da Justiça. Do debate sobre ela. Da certeza de que os governantes da Cidade Ideal de Platão irão proteger todos os cidadãos e os seus guardas irão chegar a todos, inclusive os que foram cúmplices em ver e nada fazer.
Itália tomou uma decisão: propõe a prisão perpétua para o femicídio. Ou seja, temos de legislar para dizer o seguinte: não matem as mulheres pelo facto de serem mulheres. Conhecem o grau zero da doutrina em Direito e do valor da Justiça? Aqui têm. Se a Lei não serve como instrumento de dissuasão para onde vamos? Vale a pena ler “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria. O debate que nos obriga a fazer representa um diálogo para a compreensão da justiça. Ao colocar a razão, a humanidade e a função social da Lei no centro do debate, Beccaria lança as bases para um sistema mais justo, proporcional e voltado para a prevenção. Foi daqui que, na contemporaneidade, nasceu a base fundamental da Educação para a Justiça. Uma Cidade Ideal é uma Cidade Justa. Não há Justiça quando metade da população deste mundo não está em segurança: as mulheres.
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