segunda-feira, 15 de junho de 2020

A vocação do sector desportivo federado é a qualidade. Não a quantidade!


Nota prévia

Uma vez mais, depois de tantas posições assumidas ao longo dos anos sobre esta matéria, clarifico que não está em causa o dedicado esforço de muitos profissionais, mas tão-só questões de racional opção de política desportiva. E se aqui me debruço sobre os dados publicados é apenas porque, teimosamente, entendo que o desporto deve estar ao serviço do desenvolvimento humano e não ao serviço da política ou de interesses pessoais.

Com muita atenção li as duas páginas do dnotícias de ontem sobre a "demografia federada". Ali foram escalpelizados os dados que dão conta da existência de 20.122 desportistas inscritos no sector federado. Olhando, minuciosamente, para a estatística, eu diria que não existe nada de novo, para além de um natural acréscimo do número de praticantes filiados. Se consultarmos os anos anteriores conclui-se que o essencial do formato é igual. Desde há muitos anos. Ou, melhor dizendo, desde sempre. Não é a primeira vez que sublinho, quando o sector federado apresenta números daquela grandeza, que correspondem a cerca de 8% da população, o processo encontra-se errado na raiz. Simplesmente porque o sector federado visa a qualidade e não a quantidade. À excepção de uma ou outra modalidade, mormente pelas suas características e meios de prática, aos clubes não lhes deve competir a formação de base. É o sector educativo escolar que deve assumir essa responsabilidade. Clubes e associações com muitos praticantes, apenas significa que alguma coisa está errada no pensamento que estrutura a articulação entre sectores.


Neste quadro genérico, sabendo-se que o sector desportivo escolar mobiliza, grosso modo, cerca de 15.000 alunos ao longo do ano em todas as suas actividades (naturalmente com muitas repetições de modalidade para modalidade, o que pode pressupor, também, a inexistência de uma regularidade de prática), face ao sector federado onde a contagem atinge os 20.000, logo fica clara uma inversão da pirâmide dos praticantes. Juntando ambos os sectores (35.000), quase 57% do total dos praticantes pertencem ao sector federado. Isto é, onde deveriam existir muitos na formação de base de característica regular, o número apresenta-se inferior; onde seria desejável a existência de poucos, visando sobretudo a qualidade, existem, anormalmente, muitos. Com todos os encargos daí decorrentes (€ 10.346.823,24 - sector federado). Neste aspecto, o desporto escolar continua, obviamente, um parente pobre da política desportiva regional autónoma.
Por outro lado, em uma Região com 54 freguesias, apesar do associativismo ser constitucionalmente legítimo, a existência de 141 entidades desportivas (clubes, associações e sociedades anónimas desportivas) que enquadram 56 modalidades, parece-me completamente desajustada. Talvez se justifique porque a escola não esteja preparada para um formato mais adequado.

Depois, ainda, olhando apenas para o sector federado, há uns dados que, historicamente, continuam a merecer uma fina análise e justificação. Por exemplo, dos 20.122 praticantes, 70% são masculinos e só 30% femininos. Um claro desequilíbrio. Um outro dado curioso: o somatório, em ambos os sexos, entre os de 17 e 40 ou mais anos de idade é de 6.390 praticantes, quando entre 11 e 16 anos é de 5.661. Há mais seniores do que inscritos nas etapas da  formação de pendor mais específico. 

Está, portanto, em causa, a velha discussão organizacional e de complementaridade (interface) entre os sectores educativo escolar e o federado. Concomitantemente, a disciplina curricular designada por Educação Física. 
Desde há muitos anos que é meu entendimento que esta disciplina deixou de fazer sentido. Melhor seria que se designasse por Educação Desportiva, subordinada a um outro formato organizacional, programático e pedagógico. Trata-se de uma disciplina que não é igual às restantes do currículo. É diferente. E é na diferença que deve assumir o seu importantíssimo espaço de intervenção educativa. Ademais, o desporto na escola, sobretudo a partir do 2º ciclo, deveria assumir uma característica opcional em função do leque de modalidades que um dado estabelecimento de aprendizagem oferece. 

É na escola que se possibilita a formação de base; é na escola que se aprendem, também, as grandes virtudes da competição; e é entre escolas, com regularidade, que o desporto educativo escolar deve atingir os seus objectivos de interface com o sector federado. Portanto, é na escola que está a base de uma prática física e/ou desportiva para a vida e para a qualidade.  

Por outro lado, as grandes limitações espaciais e orçamentais da Madeira deveriam implicar, por tudo isto, um outro tipo de orientação. Centrar a política desportiva na conquista de títulos através da representação regional aos níveis nacional e internacional, com um largo contributo de praticantes nascidos fora da Região, esquecendo-se dos pressupostos de base, pode permitir um certo gozo pelos resultados imediatos, mas deixa, com toda a certeza, um amargo a outros níveis, sobretudo quando damos conta que, passados 45 anos de Autonomia, cerca de 70% dos habitantes não têm o hábito cultural de uma prática física ou desportiva regular.
Mas isto, para que não subsistam dúvidas, sublinho, não deslustra o meritório trabalho dos professores, treinadores e até dirigentes. Antes pelo contrário, pois existe muito e dedicado esforço. Apenas conduz-nos para o campo da reflexão sobre os caminhos que devem ser seguidos. Para mim é óbvio que para chegar ao "alto rendimento", como parece ser o desejo dos responsáveis políticos, todo o processo a montante terá de ser repensado. E para além de tudo, ninguém se pode esquecer das gravíssimas assimetrias sociais. Lembrem-se que o desporto é, apenas, "a primeira das segundas necessidades".
Ilustração: Google Imagens.

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