segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Carta em jeito de desabafo


Meu Caro Amigo Dr. José Júlio,


Li o artigo publicado na edição de hoje do Dnotícias. Assino por baixo, pela lucidez da análise no que concerne às gravíssimas limitações conceptuais sobre a questão central que dá título ao texto: "A tomada de decisão". 

Eu sei que sabes que esta escola está morta há muitos anos e que poucos deram por isso! Continua assente nas traves-mestras da Sociedade Industrial e, entretanto, estamos já a viver a 4ª Revolução, marcada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Este quadro deveria nortear, simultaneamente, a revolução de todo o sistema educativo, onde não se coloca a questão de ensinar, mas a de aprender. 

Ando há quase 50 anos preocupado com isso, comprometido com essa revolução, pelo que fui aprendendo com  os meus professores e analisando de tantos o que sobre estas matérias se debruçaram. Infelizmente os avanços têm sido nulos, para além de algumas mudanças absolutamente marginais que não mexem no âmago dos problemas. Tens razão quando sublinhas:

"Acredito que, se o nosso ensino estivesse estruturado para ensinar a aprender e criar consciência analítica e crítica, a utilização de tais ferramentas tornar-se-ia uma atitude rotineira de fácil e frequente utilização" (...) " Infelizmente, (...) continuamos a fazer mais do mesmo ou "ligeiramente diferente" no que ao sistema de ensino diz respeito. Tendo em conta que "as mesmas causas produzem os mesmos efeitos" não é difícil tirar conclusões...

Pois é, Caro José Júlio, isso compagina-se com uma outra frase de Paulo Freire que, recentemente, deixaste na tua página de facebook: "Seria uma atitude ingénua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica." As injustiças sociais e tudo o que a elas está associado, acrescento. 

Este sistema educativo é aquilo que é porque tem, por um lado, um fundamente ideológico e, por outro, também, de ignorância, por ausência de clarividência de quem tem a responsabilidade de governar. É mais fácil repetir do que ser criativo e inovador com soluções portadoras de futuro. É por isso que continuam a designar as escolas por estabelecimentos de ensino e não por estabelecimentos de aprendizagem; continuam a manter currículos e programas, desarticulados e, pior ainda, desligados da vida real; continuam a manter uma ideia de "aula", de "turma" e de "ciclos" desadequada do que exige uma aprendizagem séria que, simultaneamente, respeite interesses, necessidades e sonhos individuais; continuam a manter uma escola para todos ao invés de uma escola para cada um. Pior, ainda, José Júlio, quando, ao contrário da descentralização e de uma autonomia que desperte interesses nas diversas comunidades educativas, o sistema político coarcta, ao manifestar, em todos os processos, a sua tendência heterónoma. 

Talvez não saibas, mas a propósito disto, um Professor (Licínio Lima) escreveu, resumindo o que se passa: "sejam autónomos nas decisões que já tomámos por vós". Ora, quando assim é, torna-se impossível concretizar o teu desejo de "ensinar a aprender e criar consciência analítica e crítica (...)". Talvez porque essa consciência crítica possa tornar-se perigosa! O curioso é que, mais tarde, só muito mais tarde, depois de uma vida de castração do pensamento, pedem aos jovens para serem inovadores, criativos, prospectivos, empreendedores e que saibam analisar as forças e as fraquezas, as oportunidades e as ameaças, saibam, enfim, navegar nas ondas da incerteza. E até fazem cursos nesse sentido.

Sabes, Caro José Júlio, a escola está cheia de tralha e ninguém tem consciência disso. Ou, então, sabem, mas denunciam medo da ruptura.

Parabéns José Júlio, às vezes parece que estamos sós, mas isso não é verdade. 
Um abraço de Amizade e obrigado pelo texto.

Ilustração: Google Imagens.

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