sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR


Leio, estupefacto, o anúncio de um Encontro Regional de Apresentação Pública das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Segundo o DN-Madeira, tal encontro "visa fomentar o debate, com especial ênfase nas orientações curriculares para a educação pré-escolar, que constituem referenciais comuns para a acção pedagógica dos educadores de infância em creche e jardim de infância, e valorizam a prática destes profissionais". Será que li bem: "orientações curriculares?" Começam cedo!


Há qualquer coisa que não bate certo, refiro-me ao conhecimento que chega através da investigação e aquilo que os políticos vão determinando. Para o político a palavra de ordem é "curricularizar tudo", uniformizar, quanto mais cedo melhor, depois controlar tudo e proceder à avaliação; para os que pensam a EDUCAÇÃO, o conhecimento está muito para além do currículo, dos programas debitados, cumpridos e avaliados. Para mais quando se trata de crianças de tenra idade. Escrevo estas linhas trazendo em memória activa o Juiz Laborinho Lúcio que, há poucas semanas, deixou esta mensagem na Região: "qualquer dia as crianças dizem que têm um adulto dentro de si". 
Não vou aqui enunciar, ponto por ponto, o que penso sobre o citado Encontro. Porque transcrevi, em um outro blogue, uma série de posições de ilustres figuras que pensam a criança e a Educação, aqui as deixo, pela enésima vez, enquanto contraponto a esta inexplicável voragem pelo "conhecimento à pressão", queimando etapas importantes da infância. É o que faz a "Escola a Tempo Inteiro" e, paulatinamente, os currículos que escolarizam, fora de tempo, aquilo que deveria ser do domínio do jogo.
"(...) O Professor Doutor Santana Castilho, da Escola Superior de Educação de Santarém, investigador, sublinhou, recentemente, que as Escolas a Tempo Inteiro são uma “aberração pedagógica e social que nacionalizou crianças e legitimou a escravização dos pais”. Por seu turno, o Dr. Eduardo Sá, Psicólogo Clínico, salientou em uma entrevista publicada na Revista Focus: "As crianças estão em vias de extinção (...) cada vez mais as crianças estão a passar por um conjunto de situações que não são muito razoáveis (...) Cada vez mais as crianças não são crianças. As crianças têm hoje uma relação com o brincar que é cada vez mais uma relação de fim-de-semana e brincar é uma actividade muito séria para que seja feita apenas ao fim de semana. Passam cada vez mais horas na escola, o que não é adequado... aquilo que me preocupa é que mais escola, sobretudo como ela está a ser vivida, signifique menos infância e quanto menos infância, mais nos arriscamos a construir pessoas magoadas com a vida. Quanto mais longa e mais rica for a infância mais saudável será a adultez (...) os pais estão muito enganados ao pensarem que mais escola significa mais educação (...) neste momento a infância começa a ser perigosamente a escola e, de repente, há toda uma vertente tecnocrática como se o que estivesse em primeiro lugar fosse toda a formação e depois viver a vida. Isto é um absurdo".
O Dr. Daniel Sampaio, psiquiatra e estudioso das questões educativas, sublinhou em um dos artigos: “(…) não estaremos a remediar à pressa um mal-estar civilizacional, pedindo aos professores (mais uma vez) que substituam a família? Se os pais têm maus horários, não deveriam reivindicar melhores condições de trabalho, que passassem, por exemplo, pelo encurtamento da hora de almoço, de modo a poderem chegar mais cedo, a tempo de estar com os filhos? Não deveria ser esse um projecto de luta das associações de pais? (…) Gostaria, pois, que os pais se unissem para reivindicar mais tempo junto dos filhos depois do seu nascimento, que fizessem pressão nas autarquias para a organização de uma rede eficiente de transportes escolares, ou que sensibilizassem o mundo empresarial para horários com a necessária rentabilidade, mas mais compatíveis com a educação dos filhos e com a vida em família".
O Doutor Paulo Guinote, clarifica: "(...) Por isso, a Escola a Tempo Inteiro é apenas algo que se destina a apaziguar as “famílias” que, cada vez mais, são obrigadas a trabalhar em condições mais precárias e vulneráveis. Que não podem faltar, sob pena de perda do posto de trabalho no final do contrato. Que são obrigadas a cumprir horários incompatíveis com uma vida familiar harmoniosa. Numa altura em que, cada vez mais, as famílias são menos do que nucleares. A Escola a Tempo Inteiro é um óptimo contributo para todos os empresários e empregadores que defendem a desregulação - pelo abuso - do horário de trabalho dos seus empregados. Se é isso que vai desenvolver o país? Abrindo mais umas dezenas de centros comerciais para as “famílias” tentarem desaguar as frustrações ao fim-de-semana? Quem defende as “famílias” deveria defender, em coerência com os seus princípios, que o Estado protegesse a vida das ditas “famílias” a partir da melhoria das suas condições de vida. A defesa da Escola a Tempo Inteiro é a admissão de um fracasso, de uma derrota e não o seu contrário (...)".
Finalmente, o Frei Fernando Ventura, numa entrevista à SIC, sobre a sociedade hoje, assumiu: “(…) estamos a pagar facturas altíssimas (…) estamos a criar gerações de “monstros”. Estamos a criar gerações de jovens sem memória. Estamos a criar gerações de pessoas sem história. E quando a memória e a história não se encontram, nós temos os cataclismos sociais. As nossas crianças desde os três meses estão nos berçários, nos infantários, porque têm de estar porque os pais precisam, desesperadamente, de ter dois e três empregos para sobreviverem (…) a história dos novos e dos velhos não se encontra, as crianças não têm voz, as crianças não têm sequer pais, porque têm de trabalhar “25 horas por dia” se for preciso. (…) É esta estrutura por dentro que precisa de mudar (…)”.
Ora bem, deixem as crianças em paz. Reorganizem a sociedade e os tempos de trabalho, aspectos bem mais importantes do que propor mais escola. Finalmente, deixem aos estabelecimentos de educação a capacidade de poderem aplicar aquilo que, certamente, aprenderam no plano pedagógico correspondente às idades.
Ilustração: Google Imagens.
André Escórcio

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