Não me apercebi das qualificações académicas da convidada, mas o tema não me passou despercebido. Falavam, na televisão, de ansiedade nos mais jovens. Claro, a ansiedade nos momentos de avaliação e, uma vez mais, nos exames que estão aí à porta. Ansiedade que também toma conta dos pais. Olhando lá para trás, tenho a memória fresca de dois momentos: a de estudante, um quadro que não difere, substancialmente, da situação de hoje; a de docente, com grelhas e mais gelhas com uma série de itens, ao jeito de um "raioX 3D" ao aluno, mas a preto e branco. A única coisa que difere nos dois momentos da minha vida é que, agora, multiplicaram-se o número de fichas e de grelhas com múltiplas observações, algumas sem qualquer nexo.
Se ontem o processo estava errado, hoje está pior. Pior porque a investigação avançou e, paradoxalmente, manteve-se a mesma mentalidade. A preocupação continua a não centrar-se no aluno, na aprendizagem, no conhecimento, mas na subjectividade de uma exaustiva e marginal leitura sobre o aluno, tendo, por orientação primeira, a acefalia do superiormente definido. A avaliação, se antes raramente teve uma função reguladora da aprendizagem, hoje, arrasta-se no quadro das ditas competências adquiridas, de forma fria e muitas vezes cruel. E tanto assim é que se fala, amiudadas vezes, do "Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória", mas poucos estão preocupados com o "Perfil dos alunos à entrada da escolaridade obrigatória".
Por outro lado, se o aluno é, neste sistema, uma parte frágil do processo, o professor também o é. Ele olha para a frente e vê a sua avaliação de desempenho em causa, vê os relatórios, vê os olhos enviesados de alguns colegas, vê a possibilidade de devassarem os seus dossiês, vê as aulas eventualmente assistidas e, entre outras, vê a possibilidade de uma qualquer inspecção o possa colocar em causa. E uma subida de escalão é tão importante! O professor sente, na prática, que não tem autonomia, o sistema é pesado no plano hierárquico e, portanto, mais vale seguir o caminho "by the book". Aliás, quem se atreve a inovar, por pouco que seja, não é bem visto, havendo sempre quem, na linha hierárquica, coloque o professor ou a escola nos carris. Os exemplos são muitos e vão desde os conselhos de turma, ao pedagógico e às direcções dos estabelecimentos. A burocracia tornou-se avassaladora e constrangedora.
Tomou conta da escola, espezinhando alunos e professores.
Tomou conta da escola, espezinhando alunos e professores.
Já tem uns anos uma empenhada discussão que tive com uma colega. Disse-me mais ou menos isto: ao aluno x, que até é muito bom nos testes, vou penalizá-lo porque não concordou comigo relativamente a um determinado critério que utilizei na avaliação. Complementou: na parte das "atitudes e valores" vou pô-lo na ordem. Confesso que ia perdendo a cabeça. Mas, oh colega, desembainhei a espada das palavras, está a partir do princípio do come e cala-te? Afinal, a nossa função aqui é ou não a de educar para a liberdade de pensar, é ou não para o desenvolvimento da capacidade de saber argumentar e discordar, ou a nossa função é a de conduzir para o medo, subserviência e injustiça? A colega está a demonstrar com a sua posição que não tem atitudes nem defende valores, acabei por ser frontal. E disse-lhe mais: dentro deste sistema o que mais a preocupa: o conhecimento ou um debate civilizado sobre os processos de avaliação em que o aluno é a peça mais importante? Ficámos por aí. Felizmente. Se fosse hoje, ainda acrescentaria, "e se fosse consigo?".
Pois é, o aluno continua uma peça, numérica, da monumental engrenagem de uma burocracia sem sentido, sujeito de um processo normalmente sem voto na matéria, por vezes, com uma ou outra autoavaliação que não co-responsabiliza. E se há uns que engolem, outros, questionam os professores, mas são "julgados" como pessoas de "atitudes e valores", dizem, menos adequados. Porque eu, professor, sentimento que genericamente existe (há excepções, claro), tenho na mão a espada do saber absoluto e da "justiça"!
Ora, pelo menos para mim, das experiências vividas, dos professores que escutei e dos livros que li, desde logo, na formação básica, muito antes da palavra avaliação, estão duas outras absolutamente centrais no processo de aprendizagem: curiosidade e conhecimento. Palavras que não estão assumidas enquanto vectores essenciais da aprendizagem. É o sistema enciclopédico e a tradição que se impõem. A prová-lo está a preocupação que se situa na calendarização de testes muito antes do trabalho de aprendizagem. E isto subverte tudo.
O que significa que a lógica da avaliação assenta naquilo que não deveria ser. Há quem vá à procura do que os alunos não sabem, ao contrário da percepção do que sabem; e há quem apresente uma tendência para, nos testes, incorporar as designadas "rasteiras"! Mas há mais. Como pode um professor avaliar, em percentagem, por exemplo, o "desenvolvimento pessoal e a autonomia" (sentido de participação) ou "relacionamento interpessoal com os colegas e o próprio professor" (sendo subjectivo, para um docente pode valer x e y para outro), quando todo o sistema, desde o pré-escolar, não assenta em uma educação favorecedora de desempenhos adequados, autónomos, de criação, de liberdade, de rigor, respeito e responsabilidade? Muitas vezes com origem nas próprias famílias?
Tudo isto merece uma reflexão muito séria. Há professores que só quando são, em simultâneo, pais e professores é que se apercebem disso. E muitas vezes são, exactamente estes, que vão à escola discordar dos próprios colegas. O que me leva a deduzir que o sistema impõe alunos que gravitem à volta da escola e não que a escola ande à volta do aluno.
A avaliação, de natureza multi-factorial, que constitui uma peça chave do conhecimento, não pode, por isso, cingir-se a uma extensa grelha com testes e percentagens onde são enormes, repito, os graus de subjectividade. Não pode resumir-se ao sabe ou não sabe a resposta às perguntas insertas no manual. A este propósito, entre outros exemplos, tenho presente a página 50 do livro “A avaliação da aprendizagem na Escola da Ponte”, da autoria de José Pacheco e Maria de Fátima Pacheco, Editora Wak, 2012, p. 50: "(...) Na Ponte [Escola da Ponte] é bem diferente esse conceito de avaliação. Não existe repetência. A avaliação não tem o objetivo de aprovar ou reprovar. Não existem séries para a criança “passar de ano”. Ela avança conforme a sua autonomia e o seu ritmo. Em um mesmo espaço convivem crianças que estão estudando objetivos diferentes, que não percorrem o mesmo caminho. É claro que existem aquelas que avançam mais rapidamente, a exemplo de um aluno que, na escola “comum”, estaria no quarto ano e que, na Ponte, já estava alcançando objetivos do sexto ou sétimo ano. Outras já precisam de um tempo maior, mas isso é visto de maneira natural. Os ritmos são respeitados. O que ela não atingiu nesse ano, pode atingir no próximo, sem precisar “repetir” muitas coisas que já foram vistas. Ela segue com aquilo que aprendeu e que ainda precisa ser alcançado (...)". Pois é, parece uma mensagem vinda de Marte!
A avaliação, de natureza multi-factorial, que constitui uma peça chave do conhecimento, não pode, por isso, cingir-se a uma extensa grelha com testes e percentagens onde são enormes, repito, os graus de subjectividade. Não pode resumir-se ao sabe ou não sabe a resposta às perguntas insertas no manual. A este propósito, entre outros exemplos, tenho presente a página 50 do livro “A avaliação da aprendizagem na Escola da Ponte”, da autoria de José Pacheco e Maria de Fátima Pacheco, Editora Wak, 2012, p. 50: "(...) Na Ponte [Escola da Ponte] é bem diferente esse conceito de avaliação. Não existe repetência. A avaliação não tem o objetivo de aprovar ou reprovar. Não existem séries para a criança “passar de ano”. Ela avança conforme a sua autonomia e o seu ritmo. Em um mesmo espaço convivem crianças que estão estudando objetivos diferentes, que não percorrem o mesmo caminho. É claro que existem aquelas que avançam mais rapidamente, a exemplo de um aluno que, na escola “comum”, estaria no quarto ano e que, na Ponte, já estava alcançando objetivos do sexto ou sétimo ano. Outras já precisam de um tempo maior, mas isso é visto de maneira natural. Os ritmos são respeitados. O que ela não atingiu nesse ano, pode atingir no próximo, sem precisar “repetir” muitas coisas que já foram vistas. Ela segue com aquilo que aprendeu e que ainda precisa ser alcançado (...)". Pois é, parece uma mensagem vinda de Marte!
Avaliar não é classificar, é, sobretudo, perceber de forma contínua o desenvolvimento de um processo que, por seu turno, possibilita a alteração das estratégias. Destina-se, em primeiro lugar, ao professor, depois ao aluno. A avaliação não pode quedar-se no âmbito do medo e, por extensão, no quadro do crescimento da ansiedade. Não pode ser a espada que promove os bons e negligencia os maus. Não pode ser um processo que retém ou promove. Porque mais do que um nível ou uma nota está um projecto de vida. Terá o sistema esta preocupação? Obviamente que não. Li, algures, e registei: "(...) a avaliação, como processo regulador das aprendizagens, orienta construtivamente o percurso escolar de cada aluno, permitindo-lhe em cada momento tomar consciência, pela positiva, do que já sabe e do que já é capaz (...)". Ora, estes princípios orientadores desconstroem, do meu ponto de vista, o tipo de avaliação mais comum que inferniza os alunos e os professores e, na esteira disso, faz desenvolver em muitos pais uma outra ansiedade que se repercute sob a forma de pressão sobre os filhos. Oh escola, por que não mudas?
Ilustração: Google Imagens.
NOTA
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