Publicado
no semanário SOL
José Cabrita Saraiva
jose.c.saraiva@sol.pt
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Hoje - apesar do seu passado de indisciplina - José María del Corral dirige a fundação Scholas Ocurrentes, que abarca escolas de todo o tipo em 70 países e que pretende ouvir os jovens para os ajudar a resolver os seus problemas. O pedagogo e amigo do Papa foi um dos oradores das Estoril Conferences.
Nascido em Buenos Aires em 1959, José María del Corral tem um longo historial de indisciplina. Com apenas cinco anos foi expulso da creche -uma situação tanto mais vergonhosa quanto o seu pai era um prestigiado médico e veterinário, professor na Universidade de Buenos Aires, e o seu irmão um aluno brilhante. Ele, o filho mais novo, foi sempre «a ovelha negra da família». Até que, aos 20 anos, uma experiência a cuidar de doentes num hospital da capital argentina o levou a trocar a faculdade de Ciências Económicas, onde estudava, pelo seminário. Fez-se teólogo, mas não padre, pois recusou assumir o celibato. Findos os oito anos de formação, começou a dedicar-se à pedagogia, lidando com jovens problemáticos, e construiu uma reputação nessa área. No final da década de 90, em plena crise argentina, o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, convidou-o para ser o responsável pelo setor da educação do arcebispado. Tornaram-se amigos. Em 2013, quando Bergoglio foi eleito Papa, José María disse à mulher para fazer as malas porque iam apanhar um avião para Roma para assistirem à entronização do amigo. A falta de dinheiro não foi obstáculo - pediram um empréstimo e pagaram a viagem às prestações. Hoje - apesar do seu passado de indisciplina - José María del Corral dirige a fundação Scholas Ocurrentes, que abarca escolas de todo o tipo em 70 países e que pretende ouvir os jovens para os ajudar a resolver os seus problemas. O pedagogo e amigo do Papa foi um dos oradores das Estoril Conferences.
Ouço dizer muitas vezes que a educação é a solução para todos os nossos problemas. Mas fala-se como se educar fosse muito fácil, quando na verdade qualquer pessoa que tenha filhos sabe que é dificílimo...
Há um tipo de educação que é difícil, se não impossível, que é tentar mudar o outro para que ele se torne diferente do que é, como às vezes pretende o sistema educativo. Ou aplicar uma receita que compramos já feita lá fora. Quando o nosso projeto nasceu há vinte anos, com Jorge Bergoglio, no meio da crise do nosso país, ele dizia: ‘Nunca vamos resolver os problemas económicos e políticos se não começarmos pela educação’. A questão é que para cada pessoa temos de ter uma proposta diferente. O que é adequado para uma criança de dez anos não serve para uma de cinco. Por isso, para nós, a educação é uma arte - a arte de educar. Só um artista pode educar. A segunda coisa é que a nossa proposta educativa não diz às crianças o que devem aprender.
Então como fazem?
A educação começa por escutar. O principal programa educativo é este: o ouvido. Somente aquele que tem ouvido pode educar. Temos dois ouvidos, e no entanto o sistema educativo não os usa, só usa a boca para falar. Isto [aponta para a boca] não é educação. Essa é a segunda diferença entre o sistema educativo do Papa Francisco e a educação do sistema atual. Por isso estes sete dias em que consiste a primeira experiência do Scholas Ocurrentes, que se chama escolas da cidadania e que está presente aqui em Cascais, arrancou com jovens de escolas muito diversas - colégios privados, escolas públicas, escolas profissionais, confessionais, laicas, de diferentes estratos económicos. Durante uma semana, em vez de cada um ir para a sua sala de aulas, vão todos juntos para o mesmo lugar, para uma aula sem paredes. E a experiência começa escutando-se os problemas. Como participam 300 jovens, são 300 problemas. Dos 300 problemas, os próprios jovens escolhem dois. Eles são tão generosos - ao contrário de nós - que são capazes de renunciar ao seu problema a favor do problema do outro.
E esse programa de sete dias é o suficiente para mudar alguma coisa?
Os sete dias são apenas o batismo. Depois eles têm a vida toda pela frente.
Que problemas emergiram em Cascais?
Em Cascais designaram como principal problema a autoagressão até ao suicídio, um tema de que não se falava. E o segundo problema levantado foi que a educação que lhes davam não tinha que ver com as suas vidas. A vida deles estava de um lado e a educação do outro. Isso foram dois problemas que os jovens de cá diagnosticaram - não os académicos, não os professores, mas os jovens de 15, 16 anos. A terceira etapa do Scholas, depois de escutar os problemas, é ensinar a estes jovens que não têm de ficar desanimados por não se conseguir mudar nada. Se eles são suficientemente crescidos para sair à noite e voltar para casa muito tarde, também são crescidos para propor soluções. Por isso o terceiro momento das Scholas é que, depois de terem identificado os problemas, eles mesmos encontrem as soluções. E damos como exemplo uma povoação na província de Salta [uma região montanhosa no noroeste da Argentina] que tinha uma altíssima taxa de suicídio adolescente. Hoje essa taxa é zero. Inventaram uma sala de cinema onde falavam sobre o que os preocupava e, com arte, pintaram uma ponte de morte [de onde saltavam muitos dos suicidas] e transformaram-na em vida. A educação na escola começa pelo ouvido, por escutarmos os problemas. É como um médico, que sabe ouvir e diagnosticar a origem da dor do paciente e a partir daí faz-se um tratamento personalizado. Não tem nada a ver com a educação em massa, de exames, de notas, de médias, de avaliações. Não. É como recuperar o lado artesanal da educação. E apercebemo-nos de que estas soluções pontuais e locais têm um impacto global. Dou outro exemplo. Quando fomos a Jerusalém, recebemos um convite do Instituto de Tecnologia da Universidade Hebraica, uma universidade com grande prestígio. Quando chegou a Scholas, e propôs lidar com os problemas através de pinturas, etc., a diretora disse: ‘Isto é um fracasso. Está bom para África, para a América Latina. Mas aqui, com o nível intelectual e de debate que temos não funciona’. A nossa abordagem pareceu-lhe muito ingénua. Mas no final do programa escreveu uma carta que termina dizendo: ‘Desculpe, Papa Francisco, subestimámos a sua proposta. Através das artes conseguiram o que nós não conseguimos com todos os nossos debates’.
Além das artes, que outras atividades desenvolvem?
Temos três vertentes: o desporto, as artes e a tecnologia. Cada um escolhe o seu caminho. Porque o Scholas não pretende que um miúdo deixe a sua personalidade à porta do colégio. É o contrário: leva o colégio à rua, ao encontro dos miúdos. Como disse o Papa, através do desporto o miúdo descobre que o êxito não passa só pela individualidade, como Messi na Argentina - o êxito depende de toda a equipa. Só uma equipa unida consegue ganhar, por isso o desporto é uma escola de vida. E temos um programa de surf, um programa de futebol, um programa de boxe, e através de cada um destes desportos definimos uma estratégia educativa. A segunda área é a arte, porque pela arte a criança pode conectar-se com o que sente. O Papa disse que um jovem que pode exprimir o que sente através da arte, da música, da poesia, deixa de ser adicto - porque [etimologicamente] adicto é ‘aquele a quem falta a palavra’ ou a maneira de se exprimir. E terceiro, a tecnologia. Como disse também o Papa na [encíclica] ‘Laudato Sí’: ‘As coisas são para as pessoas, não são as pessoas que vivem para as coisas’. O telemóvel não é um deus ao qual eu presto culto, é algo que está ao meu serviço. Eu manipulo as redes [sociais], não deixo que as redes me manipulem a mim. Por isso é que vamos inaugurar agora o primeiro observatório mundial de ciberbullying.
Então não recusam a tecnologia, o progresso...
Não só não a recusamos como a promovemos. Encorajamos o uso do telemóvel nas aulas. Dizemos aos alunos: ‘Usem o telemóvel’.
E eles não o usam para jogar ou como distração?
Não podem estar sozinhos. Têm de ser coisas com conteúdo. Aos professores de línguas, pedi-lhes para criarem poemas usando também as palavras dos jovens, com os seus códigos, e fazer disso uma forma de encontro entre os mais velhos e os mais novos, através dos telemóveis.
Porque se dou o telemóvel a um dos meus filhos, ele fica a jogar indefinidamente...
Nesse caso, joga com ele.
Imagine que regressa aos seus tempos de estudante.
Que problema levantaria?
Acho que nasci na época errada, porque me expulsaram sete vezes da escola quando era aluno.
Porque o expulsaram?
Por me portar mal. O Papa tem hoje uma fundação dirigida por uma pessoa que foi expulsa sete vezes do colégio. Não aguentava as aulas na minha época. Quando tinha cinco anos expulsaram-me do jardim de infância. Quando tinha sete, expulsaram-me da escola primária. Quando tinha nove, expulsaram-me do colégio. Quando tinha 12, do colégio de padres. Quando tinha 15 do colégio de monjas...
Mas porquê? Batia nos seus colegas,
faltava ao respeito aos professores?
Porque nunca pensei que ser um bom aluno é estar sentado, quieto e sem falar. A minha avó dizia: ‘Um miúdo quieto é um miúdo que está doente’.O nosso sistema premeia os doentes.
É por isso que temos tantos miúdos doentes
nas escolas de todo o mundo.
Há pouco dizia-me que os jovens daqui de Cascais se queixaram de que a educação que lhes davam não tinha que ver com as suas vidas. As crianças hoje aprendem muita matemática, muita gramática.
Faz sentido?
Tenho trinta anos de experiência como docente. As crianças, quando estão a aprender, perguntam muitas vezes: ‘Para que serve isto?’. E nós, adultos, dizemos-lhes: ‘Não importa, um dia vais acabar por perceber’. E uma menina, a quem disseram isso, respondeu à professora: ‘Quando esse dia vier, logo aprendo. Agora deixe-me continuar a brincar’. Está muito bem aprender muita matemática. Mas só enquanto a matemática tiver sentido. Está muito bem aprender História. Mas só enquanto a História fizer sentido. É excelente aprender biologia ou física ou química. Mas só enquanto tiver sentido. O que os jovens de hoje procuram é um sentido. Algo que desejem no coração. E estar nas redes sociais não nos preenche. Mudar de telemóvel todos os anos não nos preenche. Consumir bens materiais não nos preenche. Hoje o que os jovens nos pedem é para regressar ao fundamental, às origens, a onde havia sentido, aos mitos, aos ritos. Hoje o mais antigo é a maior inovação.
Qual é a ligação do Scholas Ocurrentes à Igreja?
O Scholas Ocurrentes não está aberto só à Igreja Católica. Tal como o próprio Papa Francisco propõe, convida toda a gente a participar. Fazem parte da rede escolas judaicas, escolas islâmicas, ortodoxas, há escolas públicas de 70 países, incluindo Dubai, Emirados Árabes, Israel, o Scholas está aberto a todos. No primeiro ano de vida do Scholas veio um bispo católico que perguntou: ‘Por que é que o Papa gasta tanta energia no Scholas se não é só para católicos?’. E o Papa respondeu-lhe: ‘Se um jovem estivesse a morrer no mar e tu estivesses a poucos metros, na praia, não lhe perguntavas de que religião ele era para decidires se ias salvá-lo. Atiravas-te à água, mesmo que corresses perigo de vida. É isso que o Scholas faz no mundo’.
Em Portugal há violência nas escolas, tanto de alunos contra professores como de alunos contra alunos. Com a sua experiência e o seu conhecimento, que conselho daria a um professor que se confrontasse com esse problema?
Diria que a violência é uma forma de falar. Que começasse a escutar.
Só isso?
Sim. O problema principal dos jovens no mundo é que não se sentem escutados. Não se sentem escutados nem em casa, nem na escola, nem na política. Por isso matam-se, agridem-se, põem bombas. Há grito maior do que esse? É um sintoma, tal e qual como a febre, de que têm um coração vazio de sentido. É desse sentido que eles estão à procura. Por isso uma educação que não dá um sentido, como a atual, é uma educação que gera violência. Um docente que não lhes dá sentido, que só dá aulas, vai gerar violência.
Li que é amigo íntimo de Francisco. Isso significa que conhece os defeitos dele?
E que ele também conhece os meus... [risos] Sim.
Tratam-se por tu ou por você?
Por vós [o equivalente ao ‘você’ brasileiro]. Somos ambos porteños [naturais de Buenos Aires].
Como se conheceram?
Conhecemo-nos quando ele era arcebispo de Buenos Aires e eu era teólogo e pedagogo e dedicava-me aos jovens com mais problemas de disciplina. Ele conhecia a minha história, chamou-me e pediu-me que fosse responsável da educação no arcebispado. Na Argentina somos todos amigos. Eu costumo dizer que sou empregado dele há mais de vinte anos.
Portanto continuaram amigos depois de ele ser eleito.
Claro. E até mais próximos. A Scholas é uma fundação criada diretamente por decreto do Papa. Isso mostra a importância que ele dá à educação. Muitos dizem que assim como João XIII ficou para a posteridade como o Papa da paz, Francisco vai ficar na história como o Papa que fez a revolução educativa no mundo. Muitos vaticanistas dizem isso. Não é por acaso que criou o Scholas, uma fundação pontifícia para trabalhar no terreno. As outras fundações pontifícias que existem há mais tempo são para coisas académicas, para documentos. Não para lidar com miúdos, com professores e com quem anda na rua. O Papa quis meter-se nisso para dizer que o importante é o concreto, que o importante é a educação. Nenhum país vai andar para a frente se não mudar a educação. Se querem mudar o mundo, mudem a educação. Não é fazer mais do mesmo, é fazer algo realmente diferente.
E acha que essa revolução pode começar escutando simplesmente os estudantes?
Sim. E o passo seguinte é muito fácil, é ajudá-los a realizar essa mudança. Eles têm força para isso.
Sabe quem é Frédéric Martel, o jornalista francês que escreveu o livro No Armário do Vaticano?
Sim.
Ele diz que existe uma fação conservadora na Igreja que pretende afastar o Papa. Tem acompanhado essa guerra entre o Papa e os conservadores?
Temos de ver a que é que chamamos conservador. Julgo que o Papa é muito conservador, ultraconservador. Ele costuma dar como exemplo a parábola da boa samaritana. Jesus sentou-se à beira do poço para descansar e pede água à mulher. E ela pergunta-lhe: ‘Como é que tu, um judeu, me pedes de beber a mim, uma samaritana, uma mulher da rua?’. E ele responde: ‘Se soubesses a água que eu te posso dar, tu é que me pedirias de beber, porque nunca mais precisavas de tirar água do poço’. Essa água é o que falta aos jovens, uma água que dá sentido. É isso que o Papa propõe através do Scholas: uma educação que dá sentido, e isso é do mais conservador que há.
Martel fala de gays não assumidos, no Vaticano, que montaram um cerco ao Papa...
Mas não são conservadores! Fazem isso por outros motivos. Este Papa mexeu com muitos interesses, porque reformou o Banco do Vaticano, abriu a caixa-forte, rompeu com muitos interesses económicos, varreu a corrupção e as máfias. Repito: é um Papa muito conservador.
Mas Martel comparou-o a Gorbachov, que tentou abrir a União Soviética e promoveu a transparência.
Eu compararia mais ao vicariato de Cristo na Terra.
Costumam falar sobre estas coisas?
Sim. Todos os meses estamos juntos e conversamos sobre tudo.
Ele alguma vez se queixou?
Ele não perde tempo com isso, nem cinco minutos. Essa é a diferença entre o Papa e os políticos. Os políticos vivem para os problemas internos, vivem de fantasmas. O Papa vive para as pessoas.
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