sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Muito para além da Covid


"(...) As crianças estão a crescer num tempo diferente (...) brincar diferente por obrigação, não por imaginação. A criatividade está limitada e assim fica muito mais difícil aprender a escola e aprender a vida. (...) Os adolescentes andam tristes, amarrados, inibidos no seu potencial de conquista e sedução. (...) Viver em contranatura só é suportável porque o mundo digital existe e, apesar de todas as questões que até agora se levantavam, hoje é a sobrevivência. (...)"



Estes são excertos de uma excelente opinião hoje publicada pela Psicóloga Manuela Parente. O artigo tem uma larga abrangência interpretativa que eu diria estar muito para além da Covid. Presumo que a autora, que habituou os leitores a considerarem o mundo para além das palavras, expressa convicções e preocupações que não se confinam (que mal esta palavra me soa!) ao estado pandémico que sobre nós se abateu. O "brincar", a "imaginação", a "criatividade", o "aprender a escola e a vida", a "tristeza", a "conquista", a "sedução", a "sobrevivência", isto é, em um parágrafo escreveu dez palavras de profundo significado, que trazem no seu bojo uma história que vem de longa data, muito antes desta vida de acentuados "medos" que muitas vezes impedem "suportar os desequilíbrios instalados".

Ora bem, contextualizando tudo isto na formação básica desejável, sinto que tais preocupações têm vindo a passar ao lado dos responsáveis políticos. Muito mais que decorar "definições" e conceitos disto e daquilo, que morrem no dia seguinte após o teste de avaliação, muito mais do que enfiar cabeça abaixo tanta tralha sem ter em conta as incertezas da vida real, melhor seria preparar para "aprender a escola e a vida".

É, por isso, que cada vez mais vejo a escola pelo ângulo da cultura no sentido lato da palavra e não pela "cultura enciclopédica". É por essa via que estruturamos e atenuamos os desequilíbrios de que fala a Drª Manuela Parente; é por essa via que relegamos o supérfluo e nos concentramos no essencial, no conhecimento portador de futuro; é por essa via que despertamos a curiosidade, as vocações e os interesses; é por essa via que é criamos o escudo tendencialmente protector perante tantos agentes de tensão.

Obviamente que tudo isto está muito para além da Covid. Nem souberam aproveitar este período de angústia para começar a desenhar uma escola com vida e de aprendizagem da VIDA, onde tudo cabe, todo o conhecimento é possível, quando subordinada a um formato organizacional, curricular, programático e pedagógico distintivo. Lamentavelmente, continuam a oferecer mais do mesmo!

A Psicóloga sabe do que fala... mas escutá-la é muito difícil. Dá trabalho. Vivemos tempos de ensurdecimento.

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