domingo, 4 de outubro de 2020

O pintor e o 5 de Outubro


Sexta-feira passada tive uma interessante conversa com um jovem pintor, julgo não ter mais de trinta anos. Estava a aplicar massa fina em uma parede quando o abordei. Meu caro, aí está uma coisa que eu gostaria de saber fazer. Ripostou, com um suave sorriso: "está sempre a tempo de aprender. É começar a fazer até dar certo". Respondi: Já experimentei, e em linguagem de pintor, porque vos oiço dizer: "embexigou"! Não tive outro remédio senão chamar um pintor. Repetisse, disse-me. Fiz umas fotos e, já próximo das seis da tarde, olhou-me e disparou: "Segunda é feriado". Pois é, respondi. E o senhor sabe a razão por que é feriado? Resposta rápida: "só sei que o calendário diz que é feriado e mai nada". Aproveitei e, sumariamente, expliquei-lhe o fundamental: certamente que sabe (!) que vivíamos em uma monarquia. Em 1910, no dia 05 de Outubro, uma vitoriosa Revolução tornou possível a passagem da Monarquia para a República. O senhor ouviu isso na escola, não é verdade? Ah senhor, eram tantas coisas que eu já esqueci quase tudo, atirou. E continuou: olhe, nem você sabe dar massa nem eu sabia a razão do feriado. Sei é que vou descansar!



Diálogo interessante, até com alguma pitada de humor, mas que me deixou a pensar em tantos aspectos da política educativa. No fundo, o que ele me quis dizer é que cada um tem um certo grau de iliteracia ou de incompetências. Neste caso, eu na aplicação de massas e ele em cultura geral. O meu interlocutor não disse, abertamente, é verdade, mas ficou claro um "estamos quites"!

Mas isto leva-me a um outro pensamento: que diacho, para quê tantos manuais, tantas disciplinas, tanta memorização, tantos testes de avaliação, tantas folhas de excel com tantas percentagens de "avaliação subjectiva", para isto e para aquilo, tantos relatórios e tantas reuniões, se, no final, muito é destinado ao esquecimento e quase nula é a relação com a vida real? E a vida real constrói-se, a partir das primeiras idades, em uma base cultural e com experiências práticas que possibilitem, de forma transversal a aquisição de competências mínimas mas sólidas. Não tem nada a ver com o pintor, mas, por analogia, eu diria que os alunos têm de "meter a mão na massa". Porque a vida é isso e a aprendizagem básica deve servir a cognição, o despertar da curiosidade, a cultura, mas também, o saber fazer que pode despertar interesses e vocações. Em todos os campos. 

Disse o Professor Miguel Santos Guerra, Catedrático na Universidade de Málaga, em uma entrevista à revista A Página da Educação, referindo-se à pobreza, em sentido lato e restrito: "(...) Há aqui um problema - a Escola está separada da vida, está distante dos problemas da realidade. Eu vejo aí um problema: os livros, os conhecimentos inertes que, por vezes, não têm que ver com a realidade. A Escola não pode permanecer separada dos problemas da vida, porque a Escola é para a vida. Há um artigo que conta a história de uma professora de Biologia que pergunta a uma adolescente quantas patas tem um artrópode. E a adolescente, suspirando, diz-lhe: ai senhorita, quem me dera ter os problemas que a senhora tem (...) Para mim, para a minha vida, isso das patas dos artrópodes, o que significa? A Escola tem de ser uma escola de vida e para a vida". Digo eu, é por estas e por outras, que muitos, de facto, todos os dias entram na escola, a escola é que não entra neles! E assim se dá o afastamento e o insucesso.


Ora, a escola básica vista pela ângulo da cultura não trata os alunos como objectos, mas como sujeitos. Infelizmente, grosso modo, o sistema trata-os como objectos, como inertes, como "coisas" submetidas a uma certa tirania curricular, programática e "pedagógica", porque não lê os sinais da vida real, tampouco se deixa fecundar pelo conhecimento trazido por pensadores de vários sectores e áreas. Tenho presente o Filósofo francês Merleau-Ponty (1908/1961): "o meu corpo é o centro do mundo; tomo consciência deste através dele". Ora, sistema que não se cruze com todos os outros, porque se fecha na sua torre de marfim, melhor, na cerca do espaço escolar, que não interage, obviamente que não permite a interiorização de uma cultura geral essencial, duradoura e consistente, como não permite as experiências com importantes efeitos na descoberta da vida real. Levado ao extremo, nem o pintor, lamentavelmente, conhece o fundamento histórico do 5 de Outubro, nem eu sou capaz de pegar em uma espátula e aplicar massa. 

O sistema preocupa-se, quase exclusivamente, com a memorização, com o teste, com o resultado e com uma saloia meritocracia, quando o saber é muito mais do que isso. Ler e repetir para logo esquecer está nos antípodas do que deve ser uma aprendizagem com alicerce poderoso, onde se encaixam os pilares de novos conhecimentos, pela força interior e pela responsabilidade de ser curioso. 

O dia 5 de Outubro é Dia do Professor, mas também Dia das Aves. Professores do meu País, deixem os vossos alunos voar, não os prendam na gaiola!

Ilustração: Google Imagens.

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