A Drª Júlia Caré apresentou, na sede do Sindicato de Professores da Madeira, o livro da minha autoria "A Escola é uma seca". Deixo aqui o seu texto, ao longo do qual deixou muitas interrogações aos presentes.
- Da primeira apresentação do livro do André Escórcio, em 21 de janeiro, retive duas expressões que me pareceram relevantes:
- do colega Valentim Remédios a expressão: “fazer flores”, pretendendo referir-se aos/às alunos/as que se adaptam à cultura tradicional de escola, que têm suporte familiar e ajuda para se prepararem para os rituais exigidos pela tradição e rotina escolar secular – a cultura das aulas, da memorização da “matéria”, dos testes, dos exames, da nota para o quadro de honra e para aceder ao Ensino Superior e com quem é mais fácil os professores trabalharem; mas e cada vez mais, a imensa maioria de crianças e jovens que não se identifica com a organização fragmentada da escola em anos, ciclos, turmas mais ou menos numerosas, disciplinas, aulas, práticas docentes de explanação dos programas instituídos e de avaliação, estudo para o teste que se esquece logo a seguir… uma escola a transbordar de conteúdos memorizáveis e pouca construção de sentido e conhecimento para a vida.
- do Padre Martins, a questão: “como agarrar as margens?” eles/elas serão os/as que ficam de fora, que não se identificam com a cultura monocultural, monocurricular, etnocêntrica da escola, pensada neste país conservador, tradicionalista, para alunos/as maioritariamente de classe média urbana: Os/as outros/as da imensa e complexa diversidade cultural deste país profundamente desigual, pós-colonial, desenraizado da ruralidade interior e fixado nas indistintas, populosas e degradadas periferias habitacionais urbanas das grandes metrópoles, com índices de baixa escolaridade familiar, pobreza estrutural transgeracional, a quem a democracia falhou na realização da esperança. Que “elevador social” para “as margens”, que escapam à meritocracia do apelido familiar, do berço e do bairro elitista e consequente estatuto socioeconómico, da pertença cultural, ou da cor adequada do cartão partidário no poder?
IDEIAS QUE CONSIDERO CENTRAIS NO LIVRO
APROPRIAÇÃO DOS CONTEÚDOS PELOS/AS ALUNOS/AS HOJE – nunca será ao mesmo tempo, nem da mesma maneira; o facto de a matéria ser dada, não quererá dizer que ficou sabida – (wishful thinking da escola) - porque a construção do conhecimento é sempre única, pessoal, condicionada pelos contextos pessoais, pelas experiências de aprendizagem anteriores, pelo grau de interesse sobre o assunto, pela motivação para aprender, pela utilidade ou sentido que o assunto lhe merece, em termos de presente ou futuro, etc…
A ESCOLA HOJE E A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES PARA APRENDER – cooperação ou competição na vida de todos os dias? (alguém diz tratar-se de uma cultura de guerra). De que modo se opera a preocupação com a diferença, a diversidade na escola? Integração e inclusão em Unidades Especializadas, devidamente cuidada, ou apenas de corpo presente? Que equilíbrio nesta tensão entre o que deveria ser – a utopia de que fala o André Escórcio no seu livro – e o que é possível, necessário, conveniente, desejável para determinados grupos sociais?
A CONSTRUÇÃO DA EMANCIPAÇÃO - da verdadeira igualdade de oportunidades, ou a consolidação /reprodução das desigualdades? Como estimular as capacidades que o ser humano tem para aprender sozinho, atingir o momento síntese, “Eureka!” Um processo individual de descoberta – o saber que passa pelo coração, no dizer de Rubem Alves, desperta curiosidade, sensibilidade, fica para a vida e quer sempre mais, numa eterna insatisfação e incompletude? (José Paulo Serralheiro, os 5%(?) que se aprendeu, à saída do Secundário…) Já esquecemos o objetivo europeu da Educação permanente, o lifelong learning?
A ESCOLA POR ALUNO/A - a verdadeira escola à medida de cada um/a – respeitadora da individualidade de cada criança / jovem. Uma utopia?
- como enfrentam as escolas as diferentes realidades sociais, familiares, por detrás de cada criança / jovem? Ou isso é suposto não ter importância?
QUE MARGENS DE AUTONOMIA TEM A ESCOLA? - E que autonomia quer ter?
- quem define/decide tudo o que se passa na escola? E que liderança seria desejável? Pode a escola aprender a ser diferente?
- o que conta para a escola? As metas? Os 20 da pauta do quadro de honra e da efémera massagem ao ego? E os que parecem escorregar para o desinteresse, o insucesso, a desistência, com todos os custos individuais e sociais?
- até quando esta organização fragmentada da escola em currículos transbordantes, períodos, disciplinas, aulas, tempos e espaços, iguais para todos?
- e porque não à volta de temas aglutinadores envolvendo a generalidade dos saberes disciplinares? A inter / trans / disciplinaridade não será mais apropriada à diversidade e complexidade social e cultural na escola, mais justa para quem ensina e aprende, e para o desenvolvimento de competências para continuar a aprender pela vida fora?
O PAPEL DOS EXAMES / OS RANKINGS – ou a perversão da avaliação
- os exames servem para seriar, selecionar, excluir e esquecer o que se memorizou. E os rankings pretendem comparar o incomparável, fazendo-se dos resultados dos exames, bitolas de qualidade educativa, sucesso e insucesso, responsabilizando escolas, promovendo outras, havendo defensores e comentadores em profusão, todos os anos na ladainha habitual… Que interesses defendem?
- como entender que se continue a fazer testes e exames iguais para todos? Por que se convencionou e ninguém tem coragem de fazer diferente? A Escola é uma convenção e todas estas práticas, meros rituais iniciáticos e de passagem?
OS CHUMBOS E AS RETENÇÕES – fracasso dos apoios em dose cavalar em catadupa, que apenas sobrecarregam os horários das crianças com mais do mesmo, mais horas na escola… Quando se poderia intervir na própria aula, coadjuvando o colega titular… Mas para isso era preciso que a porta da sala de aula – a caixa negra da relação pedagógica, no dizer de Maria Teresa Estrela – fosse franqueada sem receio nem desconfiança…. Para isso, precisávamos de outras culturas profissionais, de mais cooperação e partilha, parceria pedagógica, “team teaching” e afins… E quanto a repetências, só a escola se repete em mais do mesmo, redundante no ano seguinte, porque a criança será uma pessoa diferente. Na escola por aluno/a, não haveria chumbos nem retenções (ler pg 184, Avaliação na Escola da Ponte)
O PAPEL DOS MANUAIS – serão eles indispensáveis a uma educação de qualidade? Ou uma questão de sobrevivência económica das editoras e que juntamente com a indústria dos explicadores eterniza práticas escolares seculares continuadoras da desigualdade, desenquadradas do século que vivemos… e da era digital…
OS PROFESSORES – o peso da tradição, do “status quo”, do conservadorismo, da burocracia esmagadora e sem sentido, a solidão docente, a resistência à mudança, a insegurança, a ausência de lideranças inspiradoras nas escolas… A urgência do tempo para pensar, - meia hora por dia (Santos Guerra) - dialogar, trabalhar em equipa, colaborar, desmistificar as manobras pseudo avaliativas de desempenho docente, que apenas servem para dividir e criar animosidade… Talvez repensar a formação inicial? Que papel para as universidades, da nossa UMa, no desenvolvimento de projetos de investigação-ação em parceria com as escolas, de modo a ajudar o desenvolvimento docente?... As mexidas no Estatuto, na carreira com a finalidade única de pagar menos salário e evitar que a esmagadora maioria chegue ao topo e tenha uma aposentação condigna…
A RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA – A ESCOLA A TEMPO INTEIRO – armazém de crianças, ou estratégia ao serviço da desregulação laboral, ataque aos direitos dos trabalhadores? Excesso de tempo na escola para as crianças, mais do que o horário de trabalho dos pais, curricularização do tempo livre, eliminação do tempo para brincar – amputação da infância…
A IMPORTÂNCIA DA CULTURA na escola – como condição indispensável à sensibilização para a riqueza que a diversidade cultural representa em democracia, enquanto aprendizagem e humanização freireana com o outro, à promoção da tolerância e respeito pelos Direitos Humanos, ao combate ao estereótipo e preconceito, e central à construção do pensamento crítico (pg 103 – “É a globalidade que está em causa…”)
O QUE A AUTONOMIA DA MADEIRA poderia ter feito, para além do discurso laudatório e narcisista de efémeros pioneirismos, indo mais além da retórica em matéria educativa…
Júlia Caré
SPM, 7 de fevereiro de 2022
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