terça-feira, 31 de maio de 2022

Os tablet e os 30% do secretário


"A indisciplina na sala de aula diminuiu em mais de 30% com a implementação de manuais digitais. (...) em algumas disciplinas o aproveitamento é muito mais significativo" - enalteceu o secretário da Educação da Madeira, numa conferência realizada sob a égide da Porto Editora.



Claro, outra declaração não seria de esperar. O político senta-se numa cadeira, fala e aplaude uma dada iniciativa; tempos depois senta-se na segunda cadeira e aplaude a execução e, agora, sentou-se na terceira e aplaudiu o que foi ou está a ser feito. Há políticos assim! O habitual. Dou de barato porque conheço o processo. O problema, no entanto, não é, definitivamente, esse. É outro e muito mais profundo. Enquanto o "brinquedo" for novidade, ainda assim, alegadamente 70%, dentro deste sistema, continua a "perturbar". O que pode significar que o problema persiste. Porque o que está em causa, no caso da tal "indisciplina" é percebermos onde estão as causas. E é nessas que o secretário devia actuar. E não actua, isoladamente ou no conjunto do governo.

Basta ler o texto, que aplaudo e sugiro a leitura atenta, do Dr. Sandro Nóbrega, na sua página de facebook: (20+) Sandro Nóbrega | Facebook. Começa assim sobre os tais 30%: "Perguntas: onde estão estes dados? De que forma foram obtidos? Qual a amostra? Que tratamento de informação foi feita? A que tipologia de problema disciplinar - em aparente diminuição - nos referimos aqui? Quem tratou e fez o cruzamento de dados e fez uma análise entre causa e efeito, ou seja, como afirmar, com justiça, que a suposta diminuição da indisciplina tem ligação direta com a introdução dos tablets na sala de aula? Já agora, uma palavra aos tablets na aula, uma verdadeira oportunidade que se está a perder. (...)"

Repito aqui aquilo que assumiu Tony Bates, da Microsoft: "Uma boa aprendizagem supera uma escolha tecnológica pobre, mas a tecnologia nunca salvará o mau ensino”. O texto do Professor Sandro Nóbrega vai nesse sentido. Portanto, seria bom que o secretário da Educação tomasse consciência da realidade, isto é, que não é o tablet que esbaterá a indisciplina nem salvará a má aprendizagem, o abandono e o insucesso. O problema está, continuo a dizê-lo, nos currículos, desarticulados ao longo dos anos, nos extensos programas cheios de tralha, está na actual concepção de escola e na verdadeira autonomia que seja distintiva entre estabelecimentos de aprendizagem, está na rejeição da centralização dos processos, na infernal burocracia que não serve o aluno, na obsessão por uma avaliação de sentido único que se aproxima mais da classificação do que da aprendizagem, está no número de alunos por estabelecimento, na ruptura relativamente aos conceitos de aula e de turma, na estúpida avaliação de desempenho dos professores, está nos bloqueios da carreira docente, eu sei lá (!) o que está em causa. Tudo.

O secretário deveria ter em atenção não o tablet mas o sistema. O problema, o erro, reside aí. Eu ando, sofregamente, a ler Edgar Morin. Há tempos dei com uma entrevista que me tocou. São dele estas palavras: "(...) Os saberes não devem assassinar a curiosidade. (...)". Digo eu, a escola mata a curiosidade, porque o que interessa é a resposta, não é a pergunta. O tablet, por si só, em concordância com os programas, mata o talento e o sonho de cada aluno. Ele dá o exemplo da literatura e das artes: "(...) Pegue-se em Guerra e Paz, de Tolstói, por exemplo. O professor de Literatura pode pedir a seu colega de História para ajudá-lo a situar a obra na história da Rússia. Pode solicitar a um psicólogo, da escola ou não, que converse com a classe sobre as características psicológicas dos personagens e as relações entre eles; a um sociólogo que ajude na compreensão da organização social da época. Toda a grande obra de literatura tem a sua dimensão histórica, psicológica, social, filosófica e cada um desses aspectos traz esclarecimentos e informações importantes para o estudante. (...) O professor deve buscar sempre o trabalho interdisciplinar: "(...) Ele deve ter consciência da importância de sua disciplina, mas precisa perceber também que, com a iluminação de outros olhares, vai ficar muito mais interessante. O professor pode procurar ter essa cultura menos especializada, enquanto não existir uma mudança na formação e na organização dos saberes. O professor de Literatura precisa conhecer um pouco de história e de psicologia, assim como o de Matemática e o de Física necessitam de uma formação literária. Hoje existe um abismo entre as humanidades e as ciências, o que é grave para as duas. Somente uma comunicação entre elas vai propiciar o nascimento de uma nova cultura, e essa, sim, deverá perpassar a formação de todos os profissionais."

Não é o tablet, mas o sistema, todo o sistema que está em causa. Depois é que vem o tablet. Não são as disciplinas, cada uma de per si, como se o conhecimento pudesse ser decomposto (tudo está ligado a tudo) que conduzirão à redução da tal indisciplina, mas numa outra forma de olhar e ver a Escola. Já tem uns anos li, no Le Monde Diplomatique, um artigo com o título: "A violência NA Escola e a violência DA escola. Não é, tampouco, uma "carta da convivialidade" que resolve o problema da indisciplina, mas a estrutura da escola, o pensamento e a mentalidade que a constituem. Já é tempo de pensar nisso. Uma viagem por várias escolas talvez fosse importante.

Parabéns Professor Sandro Nóbrega pela sua oportuníssima posição.

Ilustração: Google Imagens

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