domingo, 13 de abril de 2025

A Justiça e a Cidade Ideal

 Por 

Liliana Rodrigues
Professora Universitária (UMa)

Na obra “A República”, de Platão, encontramos a descrição da Cidade Ideal que, goste-se ou não, está ordenada de forma harmoniosa. Pelo menos, segundo os critérios de Platão. Esta construção social, na lógica do filósofo da Grécia Antiga, tem por base a Razão, enquanto faculdade superior do humano.




A cidade está organizada em três classes sociais, cada uma correspondente a uma parte da alma humana: 1. Governantes, dominados pela Razão – são os filósofos-reis, sábios e racionais; 2. Guardas, cobertos pela Coragem – defendem a cidade e mantêm a ordem. Precisam de coragem e disciplina, sendo educados para a obediência aos governantes e os 3. Produtores, influenciados pelo Desejo – agricultores, artesãos e comerciantes. São os produtores que devem garantir o sustento da cidade, guiados pelo desejo moderado de riqueza.

Não quero discutir as questões de reprodução social, cada vez mais marcantes na sociedade contemporânea. Em todas as sociedades a Justiça tem um papel fundamental. Na Cidade Ideal, a Justiça acontece quando cada classe faz aquilo que lhe compete, sem comprometer as funções das outras classes. Isto é, cada um faz o que lhe é devido para garantir a harmonia social e ninguém está acima ou abaixo de nenhum outro cidadão. Além disso, Platão defende a educação para a Justiça com o objetivo de construir uma comunidade que evita interesses pessoais e que promove o bem comum. Podemos, então, repensar sobre que papel teria a educação naquela altura e que lugar ela ocupa hoje. Que tarefas mais teremos de dar aos professores e se serão apenas eles a suportar o peso de educar para a Justiça. Acrescentaria: até onde estamos disponíveis para educar líderes justos.

Já aqui ocorre a dificuldade: é que o papel da educação nas sociedades contemporâneas depende das lideranças que temos e do que querem elas construir a médio e a longo prazo. Nunca tivemos tantas instituições de ensino disponíveis. Por outro lado, nunca tivemos tanto desinteresse por elas como agora. Terá esta crise alguma relação com a desvalorização da dignidade humana e da Justiça?

Eu estou a demorar nesta reflexão sobre o mundo, que estamos a construir para vivermos e deixarmos a outros, porque queria tentar perceber o que levou três jovens a violarem uma rapariga de 16 anos. A filmarem. A colocarem nas redes sociais. Milhares de cúmplices viram e reviram, e não fizeram queixa a ninguém. Ficaram a ver, como se não fossem imagens de um mundo real. Com homens reais. Com uma mulher violentada sistematicamente durante dias. Semanas. A violação não acabou na garagem. Começou lá e estendeu-se nas plataformas de “convívio social”. O mundo das partilhas é de uma crueldade atroz. Garante a memória eterna. Que Justiça é esta desta “Cidade”?


Este é “mais um caso”. Mais um em tantos outros, em que as cidades deste mundo não conseguem ter mão. Em Itália, duas jovens foram mortas à luz do dia. Esfaqueadas. Chamam-lhes de stalkers. Pessoas que perseguem outras pessoas de forma obsessiva. Insistente. Gente que, por alguma razão, foi recusada. E há tanta maneira de perseguir. Os tiques de malvadez são aprumados e requintados com adulações de quase cientificidade, ou de baixeza evidente. A Lei da Cidade parece não nos proteger.

Talvez seja o tempo da Justiça. Do debate sobre ela. Da certeza de que os governantes da Cidade Ideal de Platão irão proteger todos os cidadãos e os seus guardas irão chegar a todos, inclusive os que foram cúmplices em ver e nada fazer.

Itália tomou uma decisão: propõe a prisão perpétua para o femicídio. Ou seja, temos de legislar para dizer o seguinte: não matem as mulheres pelo facto de serem mulheres. Conhecem o grau zero da doutrina em Direito e do valor da Justiça? Aqui têm. Se a Lei não serve como instrumento de dissuasão para onde vamos? Vale a pena ler “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria. O debate que nos obriga a fazer representa um diálogo para a compreensão da justiça. Ao colocar a razão, a humanidade e a função social da Lei no centro do debate, Beccaria lança as bases para um sistema mais justo, proporcional e voltado para a prevenção. Foi daqui que, na contemporaneidade, nasceu a base fundamental da Educação para a Justiça. Uma Cidade Ideal é uma Cidade Justa. Não há Justiça quando metade da população deste mundo não está em segurança: as mulheres.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Por uma Escola (re)inventora da sociedade

 

A Educação preocupa-me. Os constantes relatos que nos chegam, as séries de televisão caracterizadoras de uma significativa parte da juventude sem rumo, a intolerante violência que cresce potenciada pelas redes sociais e por uma ausência de princípios e valores estruturantes do ser humano, as múltiplas dependências, das tecnológicas a todas as outras, o desejo de viver intensamente como se não existisse amanhã, a limitada presença dos pais por desestruturação do mundo laboral, a pobreza, alguma "bem disfarçada", o sistema organizacional das escolas, mais preocupado com um falso conhecimento programático do que com a formação global, onde se enquadra o desrespeito pelos talentos e sonhos que cada um transporta, o esfumar do rigor, da disciplina conquistada pela compreensão das pessoas, enfim, tudo isto e tanto que facilmente se descobre nesta ferrugenta engrenagem social, só pode constituir motivo de preocupação. 



No entanto, teimo em seguir uma perspectiva optimista, com o sentimento que, mais cedo que tarde, talvez possamos assistir ao recentrar dos inúmeros desconfortos e prognósticos de falência. Alguma coisa terá de ser feita e leva muitos anos. Talvez tantos quantos nos trouxeram até aqui.

É óbvio que se a sociedade não está bem, a escola não pode estar melhor. Apesar dos sucessivos alertas, fomos assistindo, impávidos, a uma suave derrapagem que conduziu, salvo muitas excepções, a uma geração que, genericamente, espelha o que os políticos ofereceram a pais e avós nos últimos cinquenta anos. "Ninguém pode dar aquilo que não tem" e isso explica o círculo vicioso onde mergulhámos. Vivem-se tempos pantanosos que muitas famílias não contornam e, talvez, não saibam como combater, tampouco a escola tem sido incapaz de contrapor. Em linguagem informática, este perfeito "cocktail" só podia dar "erro". Só por aqui, a título de exemplo, são cerca de seis mil os jovens que não trabalham nem estudam (10,5% - população entre os 16 e 34 anos). Dramático!

O problema é que, face a um quadro angustiante, não são observáveis políticas, gerais e específicas que, a prazo, resultem numa sociedade mais culta, mais trabalhadora e profissionalmente mais competente, mais equilibrada, mais criativa e inovadora, menos dependente seja do que for, enfim, mais feliz. 

A mudança, essa, como todos sabemos, só pode começar por uma eficaz sementeira na escola e em políticas muito profundas a montante da escola. Como? No sector da Educação, desde logo, dizendo não a este tipo de aprendizagem enciclopédica, igual para todos quando todos somos diferentes, mas valorizando, na substância, o pensamento. Como disse o Professor Miguel Tamen: "ensinem-lhes a pensar, ensinem-lhes coisas diferentes e não fiquem ansiosos com o mundo real", porque desse mundo real, dizem os empregadores, "tratamos nós". É um absurdo partir do pressuposto, quase radical, que à escola deve competir a solução ou satisfação "das necessidades práticas ou contingentes", como sublinhou o Professor António Feijó. Neste tempo, onde tudo é volúvel e inconstante, a aprendizagem deve então situar-se no espaço do que é intelectualmente interessante e motivador. O resto flui, naturalmente, quando existe uma ideia de escola não conservadora? Ora bem, a questão que se coloca é, pois, entre um sistema focado em olhar para dentro e numa imbecil aposta em profissões que, tendencialmente, vão deixar de existir, e um outro que olha para o mundo e cria mundo aos jovens. 

A escola tem de ser fermento de e para a vida. E não tem sido. Não é. Aliás, não se trata de um tema novo, consequência daquele conjunto de preocupantes factos com os quais somos, diariamente, confrontados. Não é necessário ir ao encontro de Sócrates ou de Platão (400 aC - "segundo Sócrates, ele nada ensinava, apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas opiniões próprias e limpas de falsos valores, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro, de acordo com a consciência", não é necessário ter presente Erasmo ou Montaigne (Século XV - para M. Montaigne "uma cabeça bem feita vale mais que uma cabeça cheia", mas ler, por exemplo, Johann Pestalozzi (Século XVIII) que tanto falou de "criatividade e autonomia"; de Vygostsky, que salientou que aprendizagem é um processo interactivo; ter presente o pensamento pragmático de John Dewey; Célestin Freinet, um crítico da escola tradicional, das suas regras rígidas da organização da aprendizagem; mais recentemente Alain, Maria Montessori que uniu o mundo externo e interno à criança e ao jovem, Piaget, Carl Rogers, Paulo Freire, as profundas reflexões de José Pacheco, Sampaio da Nóvoa, Sérgio Niza ou de Carlos Neto, este que é, indiscutivelmente, uma referência mundial em estudos sobre a formação dos jovens. A listagem é infindável.

Junte-se a tão extensa bibliografia, que a formação inicial de professores dispõe, as reflexões de muitos filósofos. Não esqueço o notável Edgar Morin, hoje com 103 anos, que sobre a Educação continua a dizer que "temos de educar os educadores", para este novo tempo, ou, então, ter presente a Obra daquele que foi meu Amigo, Filósofo, pensador à escala mundial, Manuel Sérgio, falecido o mês passado, que um dia, na minha casa, em redor de um petisco, foi claro: "os professores têm de deixar-se fecundar pelas ciências humanas" e não, apenas, pela especificidade da disciplina que leccionam. E fazendo suas as palavras de Abel Salazar, Patrono do Instituto de Ciências Biomédicas, referiu-me que "um Professor que só sabe da sua disciplina nem da sua disciplina sabe!"

Ora, pergunto, os políticos com responsabilidades no processo educativo não dominam estas questões básicas? Entre muitos outros, não viram ou perceberam o filme dirigido por Peter Weir, em 1989, intitulado no original "Dead Poets Society"? Continua disponível, basta querer espreitá-lo. Ou, mais recentemente, não seguiram a notável série televisiva Merli, onde o protagonista refere que "há qualquer coisa de podre na educação"? De facto, há uma clara ausência de uma prática alicerçada numa teoria que vem de longe. Dir-se-á que os pensadores, investigadores e autores foram atirados para a prateleira. Servem para algumas citações, porque fica bem, mas logo regressam à estante que embeleza mas não transforma.

E assim chegámos a um tempo, de algum caos, onde, tantas vozes o dizem, estamos a matar a infância, o crescimento sustentado e a comprometer o futuro. Começa logo nas primeiras idades. O psicólogo Eduardo Sá, na antiga revista Focus, foi muito claro: "As crianças estão em vias de extinção (…) cada vez mais as crianças não são crianças (…) e o que me preocupa é que mais escola, como ela está a ser vivida, signifique menos infância e quanto menos infância, mais nos arriscamos a construir pessoas magoadas com a vida”. No fundo, ele fez eco do que outros já tinham enaltecido: "quanto mais longa e mais rica for a infância, mais saudável será a adultez". Só isto implicaria pôr tudo em causa. Que raio andamos a fazer? 

O problema é a latente ignorância altifalante que conduz a uma chocante surdez política. O Juiz Conselheiro Laborinho Lúcio disse e bem que, hoje, as crianças, desde as primeiras idades "transportam um adulto dentro de si". Estão a deixar de ser crianças e jovens, porque nós adultos temos uma tendência para tudo exigir, controlar e de impor o que nos parece importante. Começa logo nas primeiras idades e prolonga-se pelas mais velhas, no pressuposto político que tem de ser a Economia a impor a estrutura e o ritmo das aprendizagens, embora de forma contrária à ciência, quando se fala do acto de aprender.

Segue-se, agora, mais uma legislatura que, estou convencido, corresponderá à continuidade da política vigente. Uma política sem rasgo, sem pensamento prospectivo, que funciona administrativa e rotineiramente. Por dois motivos: porque "para quem só tem um martelo por instrumento, todos os problemas parecem pregos" - Mark Twain; depois, porque quem se habituou a repetir, dificilmente podemos esperar, no futuro, resultados diferentes dos de hoje. Na esteira de Peter Drucker não os vejo "preparados para abandonar tudo ou, então, desertar do barco". 

E, entretanto, promovem-se tantas formações destinadas a professores. Ocupam-se dias a escutar especialistas, batem-se efusivas palmas e, no final, tudo continua no tal pântano, onde uma minoria sobrevive e escapa! Nem reflectem que uma formação só tem sentido se ela transportar a preocupação da mudança. 

A escola tem de ser reinventora da sociedade, porque passámos da sociedade da manufactura para a sociedade da mentefactura, na feliz síntese de Luís Cardoso. Por isso, seguindo a palavra do Filósofo Henry Bergson (1859/1941), o sistema educativo precisa de alguém que saiba "agir como Homem de pensamento e pensar como Homem de acção". E, para isso, das leituras cruzadas e da História deste processo, nós não dispomos, neste quadro de governação, quem o faça. O erro, portanto, penso que reside aí, na incapacidade de ser humilde para reflectir o sistema, abrindo-o ao debate, para que possam ser geradas políticas que produzam resultados de acordo com o mundo que nos coube viver. Não estamos preparados para os desafios das próximas décadas. Apesar disso, repito, há que manter a esperança que a lucidez chegue.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

EDUCAÇÃO: AS COISAS, AS COISAS TODAS, E O PENSAMENTO DAS COISAS


Por
Nuno Morna
Dnotícias 
07.04.2025

Nota
Sigo, com muita regularidade o que escreve o meu Amigo Nuno Morna. A sua crónica de hoje é espantosa e, sobretudo, entusiasmante para quem a lê. Está dividida em dois pontos: primeiro, as considerações em redor da Autonomia; depois, o tema Educação. E neste, confesso, as palavras e o sentido conceptual, escorreram-me garganta abaixo como mel. Por aqui, há muito que não lia um texto com a profundidade entre "as coisas" e o "pensamento das coisas". Muitas vezes apetece-me desistir de escrever, pelo sentimento que transporto que o sector da Educação constitui uma batalha perdida. E quando alguém, com a inteligência abrangente do Nuno, escreve de forma tão assertiva, retomo a vontade que, afinal, vale a pena. Obrigado Amigo Nuno por ter tocado nesta ferida profunda que alguns tentam curá-la com pensos rápidos. Este texto, mais do que muitas leituras programaticamente obrigatórias, pelas variáveis que ela engloba, devia ser "obrigatória" para governantes sem dimensão e professores subjugados aos ditames do sistema. Obrigado Nuno Morna.



2. "(...) O miúdo sentava-se no fundo da sala, o segundo da fila encostado à janela, que era a única coisa que lhe dava sol naquele edifício que cheirava a vomitado velho e giz, a professora com hálito de pastilha de mentol a repetir as mesmas frases de sempre, os olhos dela semicerrados como se estivesse permanentemente a tentar ver através de uma cortina de fumo, a aula de Ciências, ou talvez História, ou Filosofia, mas isso não interessa porque o que se ensina é sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo, como se os professores fossem robôs de carne com manuais no lugar do cérebro e as palavras entrassem na cabeça dos alunos com a delicadeza de um tijolo arremessado por uma janela.

Ensinar, diziam. Ensinar o quê? As coisas. Sempre as coisas. A Revolução Francesa em três pontos, as camadas da Terra, o número atómico do cloro, a ordem dos reis de Portugal como se Portugal tivesse alguma vez sido um país com rei que importasse mais do que o cheiro do mar em Setembro.
E o miúdo a olhar para fora, a ver a chuva a bater nos vidros como se os vidros chorassem por ele, ou por nós, ou pelo país inteiro, que ainda acha que educar é alinhar miúdos como sardinhas numa fábrica de conservas, cada um com o seu rótulo, cada um com o seu conteúdo certificado, preparado para ser exportado para a Holanda ou para o Canadá, com boas maneiras e inglês técnico, mas sem uma ideia própria na cabeça.

As coisas. Sempre as coisas.

E a cabeça cheia delas, tão cheia, tão atulhada, que já nem se ouve a si própria. O pensamento, esse, ficou lá atrás, algures entre a infância e o primeiro teste intermédio, desapareceu num corredor da escola, talvez num armário onde se guardam mapas antigos e a vergonha dos professores que ainda se lembram do que era ensinar antes do ensinar coisas e dos cronogramas de competências.

A professora de Português, que já foi boa, dizem, que já foi alguém, entra na sala com a cara cansada de quem passou a noite inteira a corrigir redacções onde ninguém pensa nada, onde todos escrevem como papagaios domesticados com medo de errar, com medo de dizer uma frase que não esteja na rubrica de avaliação, e ela própria, coitada, já não se lembra bem porque é que começou a ensinar, talvez porque amava os livros, ou as palavras, ou a possibilidade de fazer um aluno pensar, mas isso agora é proibido (o pensar) é subversivo, é desestabilizador, dá origem a perguntas difíceis e, acima de tudo, não melhora os resultados nos “rankings” das escolas.

E ensinar a pensar?

Isso é outro campeonato. Isso não dá jeito. Isso não encaixa nos horários. Isso atrasa o programa.
Ensinar a pensar é pôr os miúdos a desconfiar, e a escola não foi feita para isso, a escola foi feita para os formatar, para os domesticar, para os moldar em série, com a mesma fórmula com que se fazem croquetes, com os mesmos ingredientes, os mesmos tempos de fritura, a mesma crosta por fora, e por dentro, carne picada que já não se sabe bem de onde veio.

Pensar, diz ela (a professora, que ainda sonha às vezes, às vezes só), pensar é perigoso. Pensar leva a revoltas, a insónias, a recusar aquilo que nos é dado como certo. E os governos gostam de certezas, e os pais gostam de notas boas, e os senhores da Secretaria gostam de ver planos de aula com todos os objectivos específicos alinhadinhos como soldados em parada.

O pensamento é o inimigo da ordem.

E, no entanto, é só no pensamento que há liberdade.

Não nos manuais, não nos exames, não nas fichas de avaliação contínua.

E o miúdo - o mesmo miúdo - que desenhava nos cantos do caderno rostos que talvez fossem dele, talvez fossem dos outros, ou talvez fossem apenas rostos, começa a perceber que tudo aquilo, o mapa da Europa no quadro, a definição de sistema digestivo, as guerras liberais, tudo aquilo serve apenas para o ensinar a repetir.

E repetir não é saber. Repetir não é compreender. Repetir não é existir.
Existir é pensar. Pensar é existir.
Mas isso não se ensina. Isso tem de se roubar.
Roubar no silêncio, nas margens do manual, nas entrelinhas de um poema que o professor leu depressa demais. Roubar o pensamento como quem rouba pão. Como quem tem fome e precisa de se alimentar de ideias antes que o sistema o esmague, antes que o futuro o transforme num técnico de alguma coisa sem nome, útil, produtivo, eficaz, e profundamente inútil para si próprio.

E talvez um dia, talvez, alguém se lembre que educar não é alinhar factos como quem empilha caixas.
Que educar é acordar a inquietação. Que educar é ensinar a não aceitar. Que educar é dizer: ouve, pensa, sente, e depois decide se isto faz sentido.

Mas para isso é preciso coragem.
E a coragem, como o pensamento, não consta dos programas.

Ilustração: Google Imagens/Dnotícias

sábado, 5 de abril de 2025

"Ranking's" das escolas: um concurso de beleza da pedagogia


Uma vez mais, aí estão os "ranking's" das escolas. Diabolizo-os. Mas há, infelizmente, professores, direcções de escola (quando convém) e governantes que espumam com alguns resultados. 



Ora bem, "lendo estudos e reflectindo sobre todas as variáveis, entendo que constitui uma infantilidade conceptual defendê-los. A escola deve ser avaliada por aquilo que faz, pela estrutura organizacional que implementa, pela cultura pedagógica que persegue, pelas preocupações inclusivas e pelo esforço no sentido de que ninguém fica para trás, pela sua luta que atenua as diferenças económicas, sociais e culturais e pelo trajecto dos seus alunos após a passagem por um determinado estabelecimento. Diabolizo-os, não apenas pelo facto em si, mas porque é um erro grave conjugar no mesmo patamar os sectores de intervenção público e privado. Não faz qualquer sentido, nem justificação existe, seja qual for o ângulo de análise, tolerar sequer a existência de ranking's de exames e de escolas! Há outras formas de acompanhamento e de avaliação dos processos de aprendizagem. Ademais, tolerar os "ranking's" significa tolerar o actual sistema educativo que mantém e acelera a desigualdade. - Do livro "A Escola é uma seca", pág. 175.

Numa aproximação a Pablo Gentili, Doutor em Educação pela Universidade de Buenos Aires, que se referiu aos famigerados testes PISA, eu diria que os "ranking's" (…) son el concurso de belleza de la pedagogia". Portanto, esqueçam-nos, porque se trata de um mecanismo artificial que "nadie lo cuestiona, y luego compara". Ignoram que existem diversas realidades históricas, económicas, sociais e culturais, que não permitem, com rigor, comparar o que é incomparável.


Do citado livro, da minha autoria, deixo aqui uma passagem de um texto do Padre José Martins Júnior, página 179: "(...) Nunca foi cronologicamente tão inoportuna, objectivamente tão desadequada e qualitativamente tão deprimente uma fasquia como esta que, todos os anos, empresas parceiras dos mesmos interesses expõem no estendal das folhas diárias para gáudio de uns (os privilegiados) e escárnio de outros (a maioria). (...) É a Educação vendida a metro. É a função do lucro marginal em pleno campo da economia do mercado escolar. Nem me demoro na dissecação crítica que docentes e sociólogos já fizeram e que se sintetiza na veleidade (direi mesmo, desonestidade) de comparar o incomparável, como seja a dicotomia privado-público, com a mais que escandalosa geometria variada que lhe está subjacente. Apenas limito-me a transcrever a análise de um director de escola, relativamente bem posicionada: "Nesta escola, primeiro debruçamo-nos sobre os condicionamentos económicos do aluno, depois pesamos os factores sociais que o determinam e, só depois disso, enfrentamos o seu processamento académico". Melhor ninguém diria! Focalizada sob a tríplice objectiva deste campo laboratorial, a Educação nunca será suficientemente revelada, nem sequer valorativamente apreciada, se tais parâmetros forem obliterados ou, pior, deliberadamente escamoteados. (...)"

Do mesmo livro, página 177: "Daqui concluo, "ranking's" não, obrigado; autonomia, sim, para as escolas, rapidamente, sem abusivas interferências. Porém, todos os anos regressa a história do "ranking's" das escolas. Com os estabelecimentos privados à frente. E todos os anos há quem valorize o que não deve ser valorizado. Ninguém se lembra de dizer que há estudos que provam que os alunos oriundos do sector privado, nos primeiros três anos de curso superior universitário, chumbam mais que os alunos vindos do sector público. Interessante, não é? Um facto nunca assumido. Uma coisa é o domínio da acessibilidade a um curso superior; outra, o desempenho dos alunos depois de lá entrarem. No privado, porque estão em causa pesadas mensalidades, qualquer instituição tende a forçar a aprendizagem no que “interessa” em detrimento de uma formação mais globalizante. Isto para além do recurso aos explicadores. No sector público, apesar de tudo, são sensíveis outras preocupações. E a verdade é que, ao longo do superior, os alunos do sector público conseguem uma melhor adaptabilidade e sucesso, consequência de algumas capacidades trabalhadas. (...)"

(...) "E em tudo isto existe uma grave hipocrisia do ministério. Ao mesmo tempo que assume que os "ranking's são “redutores", a verdade é que são publicados. Quem os disponibiliza? Para o ministério, se eles são “redutores”, os níveis ou notas de exame, deviam assumir uma característica reservada (não publicável) visando um sério estudo (global) sobre o sistema. Nunca para colocar escolas e professores sob suspeita. Os bons e os maus. É disso que se trata. E se assim não é, pergunta-se, de que valeu a publicação de todos os "ranking's" anteriores? O sistema melhorou? Não. Aliás, o ministério ao possibilitar a publicação dos resultados sob a forma de “ranking's”, desprestigia-se e dá um sinal (errado) à população que, mesmo neste contexto, o privado é melhor que o público. Não é. (...)"

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 23 de março de 2025

" A Escola manda brincar"




Este foi o título de um ""Encontro e Temático e Formativo", promovido pelo Sindicato de Professores da Madeira e destinado a todos quantos trabalham no Pré-Escolar, 1º Ciclo e Educação Especial. Estiveram presentes cerca de 130 interessados.

Participei com um trabalho subordinado ao título: "Ser criança é fixe; a Escola não é fixe". Os outros palestrantes: Daniela Forchetti (artista e investigadora em inclusão através da arte; Inês Ferraz, investigadora do Centro de Investigação em Estudos da Criança, da Universidade do Minho; Rita Cordovil, Professora da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa e Uirá Kuhlmann, pedadogo em Educação Musical activa para educadores.

Ao longo da minha intervenção, que aliou a contradição entre o desenvolvimento da criança com a Economia, cujos efeitos têm conduzido à hiperescolarização, ao stress crónico com nefastas consequências na saúde e à desumanização do processo educativo, socorri-me do pensamento de Lucina Leiderfab publicado no Expresso: "Bem-vindos à nova era, a das crianças que não têm tempo para brincar. E a dos adultos obcecados por ocupar-lhes os dias. Que mundo é este onde a brincadeira se tornou indesejável?"

Pela importante iniciativa, parabéns ao Sindicato de Professores da Madeira.

terça-feira, 18 de março de 2025

Chegou a vez das universidades americanas



Os temas da actualidade global, 
pelo olhar de Teresa de Sousa - Público



Caro leitor, cara leitora

Há já longos anos, durante uma entrevista ao sociólogo catalão Manuel Castells a propósito da sua obra seminal sobre a sociedade da informação, perguntei-lhe onde residia a força dos Estados Unidos. Na sua economia? No seu poderio militar? Castells interrompeu-me para dizer sem hesitar: "Nas suas universidades". Explicou-me detalhadamente porquê e como eram financiadas por grandes somas vindas directamente do Pentágono.

Veio-me esta entrevista à memória ao ler as notícias cada vez mais frequentes sobre os ataques da actual Administração às universidades americanas, sobretudo, as da Ivy League – de Harvard, a mais antiga e a mais famosa, a Yale, passando pela Columbia ou pela Brown, nomes que nos são familiares. Esses ataques passam pelo corte de verbas, sobretudo à investigação científica, e até pela expulsão de académicos de outros países cujos green cards são inesperada e ilegalmente cancelados.

Na sua última coluna do Washington Post, Fareed Zakaria chamava a atenção para as consequências do que se estava a passar, num texto intitulado Trump is launching America’s version of the Cultural Revolution​. "Não há área em que o domínio global dos Estados Unidos seja mais absoluto do que no ensino universitário", diz o colunista, lembrando que, com 4% da população e 25% do PIB mundial, a América tem 72% das 25 melhores universidades do mundo, segundo um dos rankings mais considerados, e 64% noutro.

É esse tesouro que está a ser subvertido pela Administração Trump. Sem surpresas, diz Zakaria. Basta-lhe citar um discurso de J.D. Vance durante a Conferência Nacional Conservadora de 2021. "Temos de atacar as universidades honesta e agressivamente. Os seus professores são nossos inimigos". A Administração de que é vice-presidente está a pôr "agressivamente" este objectivo em prática. O assalto mais radical está a ser financeiro, prossegue Zakaria, traduzindo-se pelo congelamento ou pela redução drástica das subvenções e dos empréstimos do Governo federal. O impacto cumulativo pode atingir milhares de milhões de dólares de cortes em programas e projectos de investigação.


Quando um líder político quer transformar uma democracia numa forma de governo autoritário, procura minar as fontes independentes de informação e de responsabilização, explica o colunista. Dos tribunais à imprensa, passando pelas agências governamentais autónomas. Putin fá-lo há 25 anos. Em menor grau, é este o caminho que está a ser seguido por Viktor Orbán, na Hungria, ou Narendra Modi, na Índia. "O enfraquecimento da educação superior é uma parte importante desta estratégia".

Só a suspensão do funcionamento da USAID, para além da fome, da doença e da morte que já está a provocar, cortou 800 milhões de dólares de subvenções à John Hopkins. A Columbia sofreu um corte de 400 milhões porque foi acusada de antissemitismo. Com o fim anunciado do Departamento da Educação, que já viu o seu staff reduzido a metade, acaba também grande parte do apoio directo aos estudantes. Há, evidentemente, processos judiciais para tentar impedir estas medidas, mas se Donald Trump tenciona cumprir o que os tribunais decidirem é hoje uma enorme interrogação. Na semana passada, num discurso no Departamento de Justiça, insultou juízes e tribunais, para além dos órgãos de comunicação social, com particular destaque para a CNN e a NBC, que considerou "ilegais". Razão? Passam mais de 90% do tempo a "criticar-me".

O ambiente gerado junto da opinião pública pelas universidades, acusadas de wokismo e vistas como redutos privilegiados das elites intelectuais, alimentando o ressentimento, favorece estas medidas. Zakaria reconhece isso mesmo. "Demasiados professores e administradores das universidades agiram nos anos recentes como ideólogos liberais (no sentido americano do termo), mais do que procurarem a verdade empírica. Académicos tentaram silenciar o debate em torno de questões legítimas, incluindo sobre o confinamento durante a pandemia, os tratamentos transgénicos ou as questões de diversidade, igualdade e inclusão." Criaram, por vezes, um ambiente opressor. Houve, no ano passado, gigantescos protestos contra Israel na Universidade de Columbia e noutras universidades, por causa da guerra em Gaza. Houve excessos. Os estudantes judeus sentiram-se ameaçados. Se recuarmos aos anos 1960, o mesmo aconteceu contra a guerra no Vietname. Faz parte do comportamento dos jovens e das suas causas. Não se resolve com cortes à investigação científica.

Voltando a Castells: é porque a produção científica das universidades e centros de investigação está na base do poder tecnológico, económico e militar da América que estes ataques deliberados são mais uma forma de a Administração Trump enfraquecer o poder americano no mundo. Está a fazê-lo em todos os domínios, da economia às alianças, do soft power à cultura.

Perseguições
Nas universidades, não são só os financiamentos que estão em causa. Uma das razões pelas quais a América é o país com mais Prémios Nobel está também na capacidade das suas universidades para atraírem professores e investigadores do mundo inteiro. Alguns vão doutorar-se, muitos ficam. Começam agora a ser alvo de perseguição.

O New York Times relatava há dois dias um caso exemplar. A médica Rasha Alawieh, especialista em transplantes de rim e professora da Universidade Brown, detentora de um visto válido, foi expulsa do país, apesar da decisão do tribunal de Massachusetts de suspender temporariamente a ordem de deportação. No mês passado, Alawieh foi visitar a família ao Líbano, onde nasceu e estudou. Foi presa no aeroporto quando regressava e colocada num voo para Paris pelos Serviços de Fronteiras.

O Líbano nem sequer está na longa lista de países cujos nacionais vão ser proibidos de entrar nos Estados Unidos. O advogado que representa a professora e a universidade esclareceu que, enquanto ela estava no Líbano, o consulado americano em Beirute lhe emitiu um visto H-1B, que permite aos cidadãos estrangeiros altamente especializados viver e trabalhar na América. O seu visto foi patrocinado pela Brown. A médica, de 34 anos, formou-se na Universidade Americana de Beirute em 2015. Foi para os Estados Unidos, três anos depois, completar os estudos na Universidade Estadual do Ohio, para em seguida ensinar em Yale e em Brown.

Os pormenores desta história ajudam a compreender o que sentirão nesta altura os milhares de professores e investigadores em situação semelhante à de Rasha Alawieh. Os Estados Unidos começam a ser um destino perigoso. Até para quem dispõe de green cards ou de vistos especiais, sobretudo se não tiver a pele branca.

Caro leitor, cara leitora, este é um dos lados menos conhecidos da natureza autoritária e racista da nova Administração e, ao mesmo tempo, do seu crescente desrespeito pelos tribunais, a última barreira ao arbítrio e à ilegalidade de muitas das decisões que foram orquestradas pelo Presidente americano nestes 50 dias.

A Europa abre os braços
Entretanto, deste lado do Atlântico, as universidades europeias já começaram a aliciar os cientistas americanos, convencendo-os a vir para cá trabalhar.

O Financial Times noticiava ontem que a Universidade de Cambridge, com uma forte capacidade de atracção dada a sua alta qualificação nos rankings mundiais, é uma delas, mas não é a única. O mesmo está a acontecer em França, na Suécia, mas também na China.

Escreve o diário britânico que a Administração americana está a preparar-se para cortar milhares de milhões de fundos às agências federais, como os institutos nacionais de saúde. "O ambiente político na América é desencorajador para a investigação independente", diz ao jornal Maria Leptin, presidente do Conselho Europeu de Investigação. "O que podemos fazer é dizer com toda a clareza aos nossos colegas que a comunidade de investigadores europeus e os seus financiadores dão as boas-vindas à Europa àqueles que, independentemente da nacionalidade, consideram as suas opções para o trabalho científico ameaçadas." O reputado instituto sueco Karolinska, de investigação biomédica, está a oferecer sabáticas aos colegas americanos.

A China, naturalmente, também não perde a oportunidade. O Global Times, jornal do Partido Comunista, escreveu na semana passada que, "sob o pretexto da segurança nacional, Washington está a desestabilizar o campo da investigação científica." Diz o jornal: "Confrontados com uma pressão crescente, muitos cientistas sino-americanos estão a reavaliar a suas carreiras e a voltar a sua atenção para a China, um país mais aberto, inclusivo e cheio de oportunidades".

A América de Trump a dar mais um monumental tiro no pé.

Tenha uma boa semana

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Manuel Sérgio - Um Pensador de Excelência

 

Conheci-o em 1969 na biblioteca do INEF. Era muito mais do que o seu responsável, mas a figura que ajudava, conversava sobre tudo e tornava-se amigo. Porque por lá andava vasculhando tudo o que me interessava, tornámo-nos próximos ao ponto de me ter oferecido o único volume do Tratado de Educação Física, onde, ao longo de 870 páginas, o Doutorado Professor Celestino Marques Pereira discorreu sobre o problema pedagógico e histórico desta área do conhecimento. Desde então, mantivemos uma relação de profunda estima e consideração.



A meu convite, numa sua vinda ao Funchal para uma conferência, ele e um meu outro grande amigo, o Professor Gustavo Pires, jantámos na minha casa, numa noite memorável de histórias marcadas pelo humor até aos temas mais profundos e preocupantes da nossa sociedade. Recordo esse momento com uma marcante saudade.

Os anos foram-se passando com os naturais telefonemas, mais que não fosse para selarem a nossa amizade. Na época de Natal fiz sempre questão de lhe enviar um bolo de mel caseiro. E lá vinha o longo telefonema amigo e, depois, um cartão como expressão da nossa Amizade. Antes do último Natal telefonou-me e deixou-me com a lágrima ao canto dos olhos. 

É este Homem culto, este Filósofo, pensador de excelência, com uma vasta obra publicada, que, recentemente, nos deixou. Tinha 91 anos. Curvo-me perante a sua morte, mas mantenho ali, na vitrina, a sua presença através dos vários livros e mensagens que me remeteu. Aprendi muito com ele, com a sua vastíssima cultura, própria de uma pessoa de uma indiscutível qualidade científica reconhecida mundo fora. 

Para Manuel Sérgio, a Ciência da Motricidade Humana, desde há muito, constitui uma nova ciência social e humana. A ele se deve a consolidação desta nova visão que veio a colocar em causa, epistemológica e ontologicamente, a educação física. Sempre defendeu que a Educação Física não existe, porque não existe uma educação unicamente de físicos. Ela é um "híbrido cultural", misto de ciência, tecnologia, arte, filosofia e senso comum. 

Ademais, Manuel Sérgio foi mais que um Professor, pela figura humilde, profundamente preocupado com o rumo da sociedade, magistral na transmissão do conhecimento sábio, mas com a serenidade e a modéstia do verdadeiro Homem Culto. Sinto, por isso, a dor pela perda de um Amigo de estima mútua. 

Até sempre Amigo Professor. 

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

A MINHA PARTICIPAÇÃO NO TEDxFunchal - A Escola não é um SPA


Por convite, recentemente, participei na edição do TEDX Funchal.
Deixo aqui a minha intervenção, no pressuposto que o debate aconteça junto da comunidade madeirense autónoma.