sábado, 21 de setembro de 2019

A escola precisa de emoções, sentimentos, alegrias, tristezas, talvez depressões... esse é o valor da educação.


José Antonio Caride é Catedrático de Pedagogia Social na Universidade de Santiago de Compostela. Doutorou-se em Filosofia e Ciências da Educação. É autor de 450 publicações entre livros e revistas especializadas em Ciências Sociais e da Educação. Foi distinguido com a Ordem ao Mérito Institucional do Conselho Mundial da Educação. Na edição de Verão da extraordinária revista "A Página da Educação", o Professor concedeu uma entrevista absolutamente genial. Não existe ali palavra ou frase que não derrame o sumo do conhecimento e da experiência. A entrevista, conduzida por António Baldaia e Maria João Leite, toda ela, é serena, objectiva, profunda e, por isso, desperta invulgar interesse que conduz o leitor, ao fim de dez páginas, a se questionar, por que acabou? Deixo aqui algumas partes que considero relevantes, onde muito mais fica por transcrever.


Diz o Professor: "(...) quando muitas vezes dizemos educação não formal, deveríamos dizer educação familiar, comunitária, cidadã, cívica, porque todas as educações, de um jeito ou de outro, são formais. Portanto, há que recuperar o sentido da educação como projecto e trajecto comunitário, o que requer repensar a escola, o seu sentido de instituição ao serviço da sociedade e da comunidade (...) a escola não pode ser só escola e as aprendizagens não podem ser só curriculares, se verdadeiramente estamos convencidos de que a educação deve ser um processo permanente, que se estende ao longo da vida e que todos somos participantes de educar e de educar-nos. (...) O desafio é imenso e as políticas educativas, sociais e culturais devem situar-nos nesse horizonte, não só como utopia, mas como realidade, como projecto que vale a pena construir pedagógica e socialmente (...) no fundo, falamos de uma ética pública e de uma ética cívica: como serviço público a nossa responsabilidade é para com as pessoas que se educam connosco, com as quais e para as quais desenvolvemos o nosso trabalho. Especialmente as que estão em situação de pobreza, de exclusão, de vulnerabilidade, as quais, muitas vezes, o sistema educativo etiquetou como fracassadas e que são abandonadas à sua sorte e aos azares (...)

Nós não nascemos cidadãos, construímo-nos como tal, se verdadeiramente nos situarmos numa ideia de cidadania congruente com tudo o que significam os direitos e os deveres da convivência com os demais, que se movem sempre num quadro de tensões ideológicas, éticas, morais, religiosas, económicas, etc. (...) então há que construir os valores que nos permitam caminhar para uma cidadania inclusiva, democrática, solidária, tolerante, pacífica... palavras que engrandecem a condição humana. (...) 

(...) A escola é muito mais do que ser vista apenas como um edifício. É uma arquitectura, obviamente, mas é uma arquitectura social e não só física (...) a escola não é um espaço que só deve estar à disposição de um calendário e de um horário escolar. O que significa, se entendermos que outra escola ou outra educação é possível, que nesse projecto educativo participem outros agentes sociais, além dos educadores e professores, os profissionais de animação sociocultural, da mediação familiar e intercultural, das iniciativas e práticas desportivas e culturais. (...)

Perguntam António Baldaia e Maria João Leite:  E isso não é uma utopia?

Não pode sê-lo. Se a sociedade quiser tirar consequências práticas de que a educação é o mais importante que podemos dar às novas gerações, se há dinheiro para salvar as entidades financeiras, se há dinheiro para as auto-estradas... como não deveria de haver dinheiro para as pessoas? (...) Se não houver investimento nas pessoas que sofrem dificuldades (...) no final, vamos gastar muito mais no trabalho de reparação do que no trabalho de prevenção, de cultivo (...).

Sobre os grandes desafios que se colocam à escola...

"(...) Há um que eu diria imaterial, mas possivelmente o primeiro de todos, que é repensar-se a si mesma, no sentido de participar de uma educação que tem de ser distinta, que tem de ser alternativa à que temos vindo a herdar há décadas e mesmo séculos. Isto tem a ver com posicionamentos filosóficos e teóricos da educação (...) é necessário uma mudança de mentalidade, de parâmetros educativos, de levar à prática o que está nas palavras, nos conceitos, no que dizemos que deve ser a educação, e, porém, ainda não é. 

Desafio? Ser coerente na transição para um novo modo de pensar a educação e as suas práticas nos distintos cenários em que ocorre. E a escola é um entre outros. (...) A questão não é tanto como ensinamos mas como aprendemos; não é  tanto o educar, mas como educar-nos em comum... como conseguimos que as pessoas construam autonomamente, desde si e por si, as aprendizagens? No fundo é um processo de emancipação e de libertação que depende daquele que nos ensina, de que necessitamos como mediador e facilitador (...)"

O Professor Caride aborda, depois, das mudanças fundamentais que a Educação Social e a Pedagogia Social estão a promover: 

(...) Hoje em dia tanto ou mais importante do que o tempo laboral é o tempo dos ócios e o direito ao ócio para a qual as sociedades não estão preparadas (...) o ócio começa por ser um direito (...) na contemporaneidade nasce de uma vontade inequívoca de darmos oportunidade do descanso, para satisfazer necessidades básicas; a oportunidade do divertimento, associado à cultura, às artes, enfim, às afeições pessoais; e a oportunidade do desenvolvimento pessoal (...) é um direito de 3ª geração. 

(...) dizia Paulo Freire que é uma prática que necessita de ser educada e em que devemos educar-nos porque nela está muito do que é a nossa razão de ser. Então o ócio deve ser a oportunidade de cada pessoa  dar o melhor de si e muito desse melhor de si tem a ver com a leitura, a música, o desporto... isso é ócio; o ócio não é levar-nos ao far niente. (...) De tal modo que as novas gerações, inclusive as educadas na escolaridade obrigatória, chegam à aposentação e não sabem o que fazer com as suas vidas, porque o tempo livre é visto como uma ameaça (...) Dizia um dos nossos filósofos, Luis Racionero, que o ócio é um direito que deve ser educado, numa sociedade que também nos tempos livres tem diferenças muito acentuadas entre os diferentes colectivos sociais. (...)

A escola tem de tomar opções ou tem de ser neutral?

"(...) A ideia de que a escola é neutral, no fundo, é já uma ruptura dessa neutralidade. O mesmo com o dever de ser apolítica ou estar à margem da política. Todas as pessoas que participam na educação, consciente ou inconscientemente, tomam decisões a respeito do aluno, criança ou jovem, e, no fundo, da sociedade. Não podemos separar de nós tudo o que significa ter ideias, valores, pensamentos, atitudes... porque com elas educamos, implícita ou explicitamente. O importante é fazê-lo com o máximo de coerência, congruência e transparência, clarificando quem somos, que ideia temos da educação, como queremos pôr em prática. (...) Educar com a cidadania não significa educar na uniformidade, num modelo de pessoa e de sociedade; significa educar em todas as opções em que podemos ser pessoas e sociedade, individual e colectivamente. (...)

O que implica troca. Todos aprenderem com todos...

(...) Implica troca. Algo que em termos políticos, sobretudo, mas também educativos, é difícil e muito complicado. Se eu reivindico a mudança dos demais e da sociedade, não posso negar-me a mudar eu mesmo. (...) Quando perguntamos o que é um professor, um educador, eu digo há muito tempo que é um profissional da  mudança, da troca. (...) Ser professor significa assumir tudo o que essa identidade e entidade profissional, mas também social e cívica, requer: compromisso, responsabilidade, ética. 

E aí as universidades ainda têm um caminho a percorrer (...) na formação ligada a esse código ético deontológico e profissional. (...) A educação que necessitamos é muito distinta da educação que temos, da que queremos e mais ainda da que reivindicamos.

(...) perceber que significados cada criança leva para a escola e da escola...

(...) Essa era uma ideia de Summerhill: corações, não apenas cabeças. Além do que podemos ter e construir com a informação e conhecimento, que é muito importante, necessitamos de emoções, de sentimentos, alegrias, tristezas, talvez depressões... Esse é o valor da educação. (...)

(...) A utopia é consubstancial à educação...

(...) a utopia é uma esperança. (...) Na utopia estão as ideias, está aquilo que ainda imaginamos que pode ser conseguido, ainda que entendamos que seja difícil (...) se não tivéssemos utopias, possivelmente, nem podíamos imaginar que por trás do momento que estamos a viver há um futuro. E a educação é sempre futuro. (...)"

Ilustração 
Fernando de Valenzuela

Nota
Texto também publicado no blogue
www.gnose.eu

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