quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A palavra-chave deve ser "desconstrução"


Um dos meus netos chegou a casa para o almoço. Um habitual beijinho na cabeça, como a todos faço, e disparei: então, que tal foi a primeira manhã de escola? Encolheu os ombros como se quisesse dizer: oh avô, a mesma coisa que a última do ano anterior! Continuei: pelo menos foi agradável o reencontro com os teus colegas! Respondeu-me: o primeiro que encontrei à porta, disse-me, bem-vindo ao inferno. Avô, os intervalos continuam a ser o melhor da escola. Isso não é bem assim, retorqui. Não é? Já pensaste o que é estar horas sentado a olhar para um professor que não pára de falar? Pois, compreendo. Esta manhã, avô, já ficaram marcados alguns testes!


Aí fez-se um clique na minha cabeça, que não verbalizei, mas aqui deixo: ainda não foi "despejada" a matéria constante dos extensos programas do currículo e já estão marcados momentos de avaliação. Irra! Não é a escola, espaço de aprendizagem séria, de qualidade e de plena curiosidade, onde se mete a "mão na massa" e se descobrem novos saberes que se manifesta, mas a escola instrutora que debita a enciclopédia e determina níveis e notas. É isto que, infelizmente, continuam a servir como "prato do dia", em um repetitivo toca-entra-toca-sai.
O prazer que a escola deveria irradiar continua a ceder lugar à pressão e ao medo. Para alunos e professores. Mais do mesmo e eles, os "alunos" deste sistema, configurado e determinado por adultos insensatos, para posterior gáudio deles próprios, senão veja-se a pompa e circunstância dos quadros de honra, diplomas e de todas as cerimónias meritocráticas, os alunos, dizia, ali enredados sentem que o sistema  está, claramente, em choque com o manancial de informação que transportam, os seus interesses e projectos. A escola desejo é hoje, mais do que nunca, uma escola malquista. 
E porquê? Porque continua a existir um excessivo "sinal mais" do adulto relativamente à criança ou jovem, quando o verdadeiro papel do professor deveria ser o de moderador e incentivador das múltiplas descobertas. E tudo pode ser aprendido, das ninharias aos fenómenos complexos. É o processo que está em causa, incompatível porque assente em uma visão quantitativa, em detrimento do ajustado e com uma qualidade portadora de futuro.
A propósito, há cinquenta anos li, em Georges Gusdorf que "o mais alto ensinamento do mestre não está no que ele diz, mas no que não diz". Significa isto que o mais difícil é fazer calar os professores, concedendo a primazia ao aluno. O sistema não permite. E, no entanto, há mais de dois mil anos, o grego Arquimedes (287-212 aC), embora em outro contexto, sintetizou: "dê-me uma alavanca bastante comprida e um momento de apoio bastante forte e, sozinho, moverei o Mundo". Lamentavelmente, o sistema ainda não compreendeu que terá de ser outro o formato, o sentido e a missão da escola.

A alavanca pode ser a escola e o momento de apoio o professor. Ora, sendo tão complexo, porque são muitas as variáveis, o processo de aprendizagem, melhor, o caminho para o conhecimento implica alavancas e apoios, implica, também e necessariamente, uma ruptura no sentido do surgimento de uma outra forma de o entender. Isso faz-me trazer em memória Robert Quillen que sintetizou este dilema entre a complexidade e a facilidade: "se quisermos fazer um mundo novo o material está à nossa disposição; o primeiro também nasceu do caos". O problema é que há quem tenha medo do caos, este caos entendido como momento em que tudo parece não fazer sentido. 

Significa isto que a mudança de qualquer sistema, neste caso, o educativo, não depende de outros, pois o "material", leia-se alunos, está aí à disposição. Basta para que tal aconteça que os "iluminados",  os de plantão na administração do sistema, desçam da torre de marfim e se misturem  e bebam na fonte científica, deixando-se fecundar pelo conhecimento existente. Que não tenham medo de perder o controlo. O problema reside, portanto, na teimosia em querer manter um pensamento estático, estruturalmente rotineiro e vertical, como se não existisse mundo para além dos muros da escola.

A escola virou cápsula e vegeta na bolha que os adultos construíram!

Pasmo com a discussão que por aí anda sobre as avaliações trimestrais em contraponto com as semestrais. É o mais perfeito exemplo de um "debate" sobre o nada, porque o problema não reside aí. O problema não está nos momentos de avaliação (ela deve ser contínua e bilateral), mas na preocupação pela aprendizagem, de como gerar o gosto pelo saber, a descoberta do prazer da curiosidade, a alegria de saber ler, escrever, conhecer, dominar e, permanentemente, ter capacidade para colocar tudo em causa para de novo partir. O problema é de pensamento estrutural na construção do futuro, o qual não se coaduna com afunilamentos de consciência de quem, logo à partida, mais preocupado se apresenta, de forma cega, a separar o eventual trigo do que considera joio.

É evidente que olhamos em redor e, no quadro do actual sistema educativo, existem muitos jovens de excelente qualidade em todas as áreas. A pergunta que se deve colocar é esta: em que patamar de excelência não estariam, quantos mais poderiam ter despontado e quanto insucesso e abandono poderiam ter sido evitados se outro fosse o caminho? 

Mais escola não significa melhor escola*
É sensível na estrutura política um défice de mentalidade, de estudo e conhecimento, situação que, depois, invade a consciência colectiva, tomando por certa, inevitável e sem outra saída, a actual caracterização de escola. É mais fácil manter o existente, retocando aqui e ali com cores garridas, é mais fácil mexer nas margens do que penetrar no âmago para criar o novo. Dá muito trabalho, permanentemente, questionar e colocar em causa o que se aceita como "verdade". Mas é por aí que a avenida do conhecimento deve ser criada, com utopia, e é por aí, de forma compaginada e integrada, a montante, com uma nova geração de políticas de família, que a escola se pode tornar fonte de cultura, de conhecimento e de incentivo, na perspectiva que há mais escola para além da escola. No essencial, que ela é, apenas, um ponto de partida, não de chegada.
Por tudo isto não valorizo, no quadro do actual sistema educativo, a "excelência" dos níveis e notas atingidos pelos meus netos. Desejo é que eles e todos os outros saibam olhar para o mundo, sejam capazes de desenvolver leituras muito para além das apriorísticas, ganhem consciência da importância do rigor, do trabalho, da disciplina, subordinem-se à curiosidade, sejam humildes e cultos e que estruturem uma estratégia de vida assente na permanência do aprender a desaprender no sentido de reaprender.
A construção da vida começa na solidez do alicerce do designado ensino básico. É aí, no meio da argamassa da complexidade, que se estruturam os pilares que vão possibilitar a laje e os novos pilares do ensino superior. É na idade das perguntas, fortalecendo-as, e não da exigência das respostas do manual, digital ou qualquer outro, que se ganha a capacidade para desenvolver gostos, interesses e projectos de vida. Ignorar este quadro é ir contra o racional. Bhagavad-Guita, Século V aC, sublinhou: "feliz o aluno a quem o mestre agradece". Pensem nisto, governantes, professores e pais. Pensem na criança sujeito e não objecto. Pensem, nas palavras do Juiz Laborinho Lúcio, que disse: cuidado, porque "qualquer dia as crianças dizem que têm um adulto dentro de si".

NOTA

"(...) No total, os alunos entre o primeiro e sexto ano passam um total de 1039 horas na escola, entre aulas obrigatórias (822) e não obrigatórias (217), o que põe Portugal no top dos países onde os alunos passam mais de mil horas na escola (...)" - OCDE. Perante isto, razão tem aquela criança mencionada no início do texto: "bem-vindo ao inferno".
Ilustração: Google Imagens.

Este texto foi publicado no blogue
www.gnose.eu

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