É um desespero assistir ao que se passa na política educativa. Está em contraciclo à velocidade dos tempos. Talvez, por isso, há muito que tenho na minha agenda uma nota no sentido de escrever sobre a Doutora Ana Benavente, figura que foi Secretária de Estado da Educação. Tenho por ela uma enormíssima consideração, porque acompanhei as funções que desempenhou, estima essa pelo seu percurso de vida e também pelos valores sociais que a definem. Isto, apesar dos nossos contactos pessoais terem sido escassos. Um dia, a propósito de um convite para uma palestra que a Escola Gonçalves Zarco lhe dirigiu, sessão essa que também tive a honra de participar por convite do Dr. Rui Caetano, ao tempo presidente do Conselho Directivo, acabámos por jantar na minha casa. Foi uma noite extremamente agradável onde pudemos trocar ideias sobre a complexidade da profissão que nos une e das políticas que seriam necessárias o país desencadear.
Desde logo, tenho pena que esta Mulher de princípios e de valores, que olha a Escola a montante da sociedade e a sua organização a jusante, não esteja ao mais alto nível na condução da política educativa. Lamento, pelo que ela fez no tempo que assumiu responsabilidades governativas, em função do marasmo no qual figuras políticas seguintes deixaram o sistema mergulhar. Entregou-se a responsabilidade da Educação a pessoas menos qualificadas para tal exercício. Entregou-se a quem estava a seguir na lista partidária e não pela competência.
Ana Benavente é uma Mulher de mão cheia. Teve a coragem, no tempo da ditadura, de viver na clandestinidade. Exilou-se na Suíça, país onde mais tarde se doutorou, em Ciências da Educação, pela Universidade de Genève. Li em uma entrevista, que, em Genève, nos primeiros tempos, "trabalhou sempre para estudar (fábricas, escritórios, dactilografia de sebentas, empacotar jornais, um pouco de tudo) e só no terceiro ano conseguiu uma pequena bolsa para refugiados que permitiu
então trabalhar apenas durante as férias. Nessa primavera, viveu o Maio
de 68 e tais acontecimentos marcaram a sua plena integração na Universidade - era aluna de psicologia no Institut Jean-Jacques Rousseau, dirigido por
Jean Piaget." Nessa entrevista, conduzida por Margarida Louro Felgueiras e Anabela Amaral, achei curiosa esta passagem: "(...) já no meu 7º ano "fugia" do liceu para ir ao Estádio Universitário assistir aos comícios da luta estudantil - crise académica de 1962 - que ficaria para a história como a primeira revolta estudantil pela liberdade e cujos ecos nos iam chegando em surdina pelas colegas de liceu que tinham irmãos. Logo nos meus primeiros dias na Faculdade, inscrevi-me na Pró-Associação de Letras, cujo presidente era o José Medeiros Ferreira."
Mais tarde, após o seu regresso a Portugal, do seu cv consta que "conduziu projectos de investigação-acção e vários estudos sobre exclusão escolar e coordenou o primeiro Estudo Nacional de Literacia. Foi Vice-presidente (eleita pela Europa) do Conselho Geral do BIE (Bureau International de I’Education), UNESCO, Genève (2001-2005). Membro do Comité do CERI (Centre pour la recherche et l’innovation) da OCDE (1996-2002). Deputada à Assembleia da República (1995-2005) e Secretária de Estado da Educação (1995-2001), nos XIII e XIV governos constitucionais. (...) Foi representante governamental junto de agências internacionais na Europa, África, América, Austrália e Japão. Tem uma vasta obra publicada e centenas de participações em Colóquios, Conferências e Congressos, nacionais e internacionais. Actualmente, ainda prossegue actividades de consultoria internacional e é professora na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, nos cursos de mestrado e doutoramento".
Pergunto, quantos em Portugal, apesar desta ser uma síntese de tudo quanto fez na Educação, podem apresentar semelhante currículo. Não está a governar, esta é a minha leitura, porque tem uma coluna rígida e não se arrasta pelos corredores dos interesses político-partidários.
Ao contrário de outros, Ana Benavente sabe do que fala. É investigadora. Estudou a sociedade e, portanto, assume no quadro da necessária mudança de paradigma que: "A Escola é socialmente produzida e, portanto, socialmente transformável". É essa luta pela transformação que sempre a guiou. Reproduzo aqui uma parte da entrevista que acima referi, porque define bem o seu posicionamento relativamente a diversas matérias:
No desempenho do cargo de Secretária de Estado da Educação que prioridades definiu com base na sua experiência de viagens e no seu ideário de liberdade?
Não foi difícil estabelecer prioridades que continuo a considerar actuais: uma Educação para Todos (EPT) com qualidade, o que exige assegurar autonomia às escolas, desburocratizar o sistema, apoiar as escolas nas comunidades (científicas, económicas, sociais), enraizá-las não apenas nos saberes "sábios" mas nos saberes libertadores que permitem continuar a aprender ao longo da vida. Assim, destacarei, a esta distância, cinco pedras de toque do trabalho que desenvolvi, em equipa, durante seis anos (de 1995 a 2001) e sobre o qual publiquei vários textos, nomeadamente na Revista Ibero-Americana de Educação (OEI) que nos diz respeito a todos, ibéricos, e que pode ser lida on-line.
1. O desenvolvimento da educação pré-escolar para todas as crianças foi um avanço inquestionável para uma escola pública que quero democrática de facto e não apenas nas palavras. Educação pré-escolar como espaço e tempo inteligentes de desenvolvimento e de socialização e não de anticipação das aprendizagens escolares.
2. Proposta de um "Pacto Educativo para o futuro" (ver Revista da OE!) que garantisse a continuidade política de eixos estruturantes das necessárias transformações da escola sem a deixar, como hoje continua, prisioneira dos tempos políticos e das fantasias e ignorâncias de quem ocupa os cargos executivos. Sabemos que a inovação educativa é de lenta construção (para ser sustentável e significativa) e que os seus resultados só podem, de facto, ser avaliados, no espaço de uma geração. É um tempo institucional contraditório com os tempos eleitorais, rápidos e bruscos, imprevisíveis e sempre preocupados com o show-off das campanhas. Garantir a descentralização e a autonomia das escolas, o desenvolvimento da educação pré-escolar, a valorização dos docentes e outros técnicos e funcionários, flexibilizar os curricula sem perder um núcleo nacional estruturante, garantir oportunidades de formação aos mais excluídos, eis alguns dos objectivos desse Pacto. Recusado no Parlamento e pelos Sindicatos de Professores, permitiu, no entanto, celebrar protocolos com autarquias, associações de pais e outros parceiros. Mas falhou, no país latino e velho que somos, pouco dado a trabalho sério, silencioso e continuado.
3. Definimos, em documentos publicados e debatidos nas escolas, orientações de médio e longo prazo para o ensino básico e para o ensino secundário (assim como para o ensino superior, não sendo este da minha responsabilidade directa). Qualquer caminho é bom quando não sabemos onde queremos chegar. Sabíamos então o que queríamos e como caminhar: envolvendo todos os parceiros e, em primeiro lugar, os professores e outros actores da escola e da educação. Criar condições para a sua valorização social e profissional, assegurando o apoio ao trabalho de qualidade. Romper (ir rompendo) alguns tabus da escola tradicional que a tornam produtora de exclusão: a rígida divisão disciplinar herdada de séculos passados, os horários tayloristas, com o toque de campainha de 50 em 50 minutos, as aulas expositivas e tradicionais em que se quer ensinar o mesmo, ao mesmo tempo e da mesma maneira a todos os alunos, as representações profundamente enraizadas, nomeadamente as que que identificam exigência e rigor com insucesso e com exclusão. Estas orientações alimentaram processos inovadores que se iniciaram com 10 escolas e envolveram, quatro anos depois, mais de 200 escolas. A "gestão curricular flexível'; assim ficou conhecido esse processo, baseou-se nas "boas práticas" construídas nas escolas e criou condições para a sua consolidação e o seu desenvolvimento.
4. O quarto ponto que quero destacar é o da luta imediata contra a exclusão. A escola pública não pode conviver com a expulsão (quer se designe insucesso ou abandono) escolar de quem mais precisa da escola. Assim, diversas medidas, desde os currículos alternativos à criação de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, foram desenvolvidas para assegurar a aprendizagem dos mais vulneráveis e daqueles que, pela sua origem, história ou condições de vida, não se integravam no padrão único da escola única (sendo que igualdade, como sabemos, não significa ser "indiferente às diferenças" mas sim praticar a equidade, assegurando a todos, por caminhos diversos, as mesmas aprendizagens e diplomas - refiro-me aqui, evidentemente, à escolaridade obrigatória). No caso do ensino secundário, em que os processos de exclusão, sendo menos escandalosos são igualmente selectivos, procedeu-se a uma reorganização e revisão curriculares assegurando a todos percursos que, continuados ou não de imediato no ensino superior, lhes permitissem voltar à formação ao longo da vida. Curiosamente, quando a selecção é mais invisível e escondida, convive-se melhor com ela. Quando se assume que, após o 9º ano, há orientações diferentes, grita-se que se estão a introduzir desigualdades. Hipocrisias sociais que vivemos em muitos espaços, sendo a escola apenas mais um. O que é lamentável é serem muitas vezes os que deviam lutar pela escola democrática- e falo aqui de sindicalistas e de responsáveis académicos - os primeiros a preferir a ignorância, com medo de sujarem as mãos na luta pela Educação para Todos, de facto e não apenas como um slogan para tranquilizar consciências.
5. Como quinto ponto das minhas prioridades, destacarei a educação de adultos. Num país de baixo nível de literacia, era urgente ultrapassar as tradicionais barreiras de territórios entre educação e formação. Isso foi feito com a criação dos cursos EFA (Educação e Formação de Adultos) e com a criação do sistema de Reconhecimento, Validação e Certificação de competências adquiridas durante a vida. Criaram-se, com todo o rigor e com critérios académicos e pedagógicos claros, os primeiros centros de RVCC. A Agência de Educação e Formação de Adultos protagonizou esta área de actividade. Duas notas finais de resposta a uma pergunta sem fim: 1• nota - o desporto escolar, a educação para a saúde (incluindo a educação sexual), o ensino do português no estrangeiro não apenas como língua de emigração mas como língua europeia de seu pleno direito, a formação contínua de professores, formação para a mudança e para a reflexão crítica sobre as práticas foram também áreas em que investi muito do meu imenso querer e dos meus (mais limitados) saber e poder. 2• nota - este trabalho foi desenvolvido em equipa, com colaboradores preciosos, uns mais convictos do que outros. Quero destacar o Prof. Alberto Melo, meu querido amigo, cujo trabalho foi fundamental na educação de adultos e o Prof. Paulo Abrantes, querido colega da Universidade de Lisboa, modesto e brilhante, que já nos deixou e que foi a alma do trabalho realizado no ensino básico. Uma referência ainda a Philippe Perrenoud, meu colega em Genève que aceitou, com amizade, ser consultor das mudanças que se foram construindo na escola portuguesa durante os seis anos em que tive responsabilidades executivas. E obrigada aos alunos e aos professores, evidentemente, sem os quais a escola não tem qualquer sentido. Se me perguntarem hoje o que ficou destes anos direi que ficou muito e que ficou muito pouco. Ficou muito porque a história se constrói com avanços pioneiros e nada nem ninguém pode apagar o valor das experiências vividas. Ficou muito pouco porque logo os responsáveis governativos que se seguiram, quer do Partido Socialista quer do Partido Social Democrata, se apressaram em impor de novo o controlo burocrático e centralista sobre a escola, em desbaratar os esforços dos docentes mais profissionais, em promover a mediocridade e até, no caso da educação de adultos, em impor metas quantificadas de modo a que o país, mudando ou não, ficasse melhor no retrato das estatísticas europeias e da OCDE. Quanto mais complexo é o mundo e quanto mais "invisíveis" se tornam os mecanismos sociais (D. Innerarity), mais sedutoras se tornam as estatísticas, querendo alguns acreditar que assim aprisionam e conhecem a realidade. Muito do que foi feito entre 1995 e 2001 foi certamente "engolido'; nas escolas, pela força do statu-quo, mas não duvido do valor do trabalho então realizado e, nem que fosse pelos meninos que se salvaram da exclusão e dos diversos modos de expulsão escolar, valeu a pena.
O meu discurso fundamenta a minha prática de docência, de investigação, em cargos políticos, executivos ou no Parlamento, e nos projectos de luta contra a pobreza que hoje me ocupam em África e na América Latina e tem um só propósito: refundar a escola que herdámos. Trabalho lento e difícil, partilhado e persistente, é o único digno do nosso esforço. Considero a escola como a "instituição mais generosa da democracia';
já o disse, pois, apesar das desigualdades sociais - que a escola, enquanto instituição, não pode resolver só por si, como é óbvio - o conhecimento é património de todos e de cada um e não apenas de alguns "eleitos': Embora a escola não possa "escapar" totalmente aos mecanismos de normalização que sobre ela pesam - e quero acrescentar que as comparações internacionais estilo "PISA'' são dos efeitos mais perversos e nefastos da história da escola no final do sec. XX - pode ser também um espaço de socialização universal, de apropriação do conhecimento, de democratização das relações e dos saberes, um espaço de cidadania e de libertação. Eis o fundamento da minha acção pedagógica e cívica. A escola é uma instituição fundamental na luta contra a pobreza e contra as desigualdades mas apenas e só se se transformar considerando que os seus alunos são PESSOAS e não recursos humanos, conceito que se banalizou mas que retirou todo o sentido de humanidade à vida social democrática. Democratizar a democracia e as suas instituições é uma tarefa de todas as gerações, da minha (da nossa), das que me antecederam e das que continuam hoje, num período histórico preocupante (quer pelos fundamentalismos que julgávamos ultrapassados quer pelos novos deuses sem rosto: o Mercado, a Bolsa, a Alta Finança) o percurso por mais e melhor educação, por um mundo mais justo, em que a vida humana tenha o mesmo valor, seja a de um israelita seja a de um palestiniano. (...)"
O problema, Caríssima Ana Benavente é que entregam(ram) a responsabilidade política a quem nada sabe de Educação. Falta-lhes conhecimento transversal, maturidade e abrangência. Apenas funcionam, administrativamente, também tal como se a escola fosse uma fábrica que abre às 08:00 e encerra às 18:00!
Um grande abraço de muita Amizade e estima.
Ilustração: Arquivo pessoal e Google Imagens.
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