Há algumas designações que considero absolutamente desadequadas no tempo que estamos a viver. Uma delas é o conceito de aula. Lê-se amiudadas vezes: os alunos regressaram às "aulas" ou, então, o professor que diz: "dou aulas". Ora, o conceito de aprendizagem, diferente do de ensino, não se coaduna com o tradicional formato que já alguém caracterizou de "autocarro", isto é, professor à frente na condução e alunos sentados atrás. Ora, o professor que conduz, debitando o manual, com maior ou menor habilidade, tenho por assumido que não cumpre o seu mister. Portanto, "dar aulas" constitui uma expressão que bole comigo, sobretudo quando centro a minha atenção nos primeiros nove anos de aprendizagem básica. No alicerce do conhecimento.
Disse o pedagogo Paulo Freire: "Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo". Esta mediatização, em um primeiro momento, pode designar-se ou centrar-se no professor.
Daí que, professor que ensina cumpre o ritual, repete ao gosto da hierarquia, condiciona, não faz da sua acção um exercício de imortalidade. Quem cumpre o superiormente definido mantém os pássaros na gaiola, jamais promove e encoraja o voo. Um pouco por tudo isto trago em memória o ensinamento de André Berge: "Em vez de opor a educação nova à educação tradicional, mais avisado seria opor a educação educativa à educação não educativa". Situo-me nesse espaço de entendimento, de uma educação libertadora e criadora, que conduza à assunção da própria responsabilidade do educando e onde a "disciplina não gere o medo" (Erich Fromm, psicanalista, filósofo e sociólogo - 1900/1980). Hoje, a educação é, genericamente, geradora de medo.
"Dar aulas" significa que, na tal metáfora do autocarro, o professor é o detentor do conhecimento, o que conduz, inevitavelmente, a apoderar-se do "discípulo". Uns esquecem-se do que aprenderam na sua formação pedagógica, esquecem-se, rapidamente, dos livros que leram e do que escreveram em monografias e em dissertações, pior, esquecem-se que foram alunos e quanto detestavam aquelas "aulas" a pedir "mais paciência que Jó". Há pais chamados à escola porque o aluno, pasme-se, desinquieta a classe porque faz muitas perguntas! E a pergunta, quando o ambiente é criado nesse sentido, pode significar que o aluno é curioso, até pela idade que o impele nesse sentido. De resto, é um absurdo privilegiar a palavra do professor relativamente à do aluno. O professor, em todas as circunstâncias, deveria assumir o importante papel de mediador da aprendizagem, jamais o de figura central, o protagonista em palco. A personagem principal é o aluno.
Assisti, no Funchal, há quatro, cinco anos, a uma palestra do Professor José Pacheco, palestrante em todo o mundo, hoje "exilado" no Brasil, onde desenvolve um notável trabalho. A determinada altura contou que, nos primeiros anos de carreira docente, planeava de forma irrepreensível as suas "aulas". E mesmo assim, com todas as preocupações e olhares atentos para a diversidade dos membros da classe, muitos não aprendiam. Este facto levou-o a concluir: "se eu preparo ao pormenor as "aulas" e, mesmo assim, eles não aprendem, então, posso deduzir que eles não aprendem porque eu "dou aulas". Simples.
Há um livro de Pierre Vayer, "Objectivos da Educação Psicomotora", no qual ele interroga-se: "o que é preciso fazer para que a criança se interesse". Ficou-me esta questão de princípio: "para aceitar a criança o adulto deve, primeiro, aceitar-se a si próprio". O problema é que o adulto, neste caso professor, tem um programa a cumprir com centenas de itens, e na condução do "autocarro" ele sabe que tem duas ou três paragens obrigatórias que o obrigam a uma avaliação do percurso. Avaliação que ele sabe ser dos alunos, mas também do seu próprio desempenho, no quadro de um sistema onde o tempo foge para cumprir determinações, algumas abstrusas, e sobre as quais não tem voz (mesmo que tivesse!). Portanto, "aceitar a criança" não passa de uma miragem. Resta-lhe "dar aulas" ou, melhor dizendo, "vender aulas" a troco de um salário mensal. Alguns furam as regras, é certo, mas correm o risco de um processo disciplinar. A hierarquia política não gosta de quem saia do "anormal".
Certo é que, por este caminho, nem a escola prepara para o mundo do trabalho, tampouco consegue formar cidadãos críticos e disponíveis. Por um lado, porque a escola está desfasada do mundo real; por outro, porque, através da "aula" bloqueia o pensamento, o talento, o interesse e o sonho. O drama de tudo isto aqui aflorado, tanto que há a dizer sobre isto, é que os professores ainda não deram conta, parece-me, que estão "reduzidos a meros técnicos e supervisores na fila da assembleia da educação, isto é, que são objectos em vez de sujeitos da história", salientou Lipman (2004).
A Escola que deveria constituir um ponto de partida continua, assim, a ser um ponto de chegada. Há um livro de Pascal Paulos com o título: "A Escola faz-se com pessoas". Pois é. Faz-se, também, com utopias, não messiânicas, mas na esteira do Filósofo Agostinho da Silva, sempre na "busca incessante, inquietante, da Pessoa-Indivíduo e da Comunidade, que são os alicerces da Sociedade livre e civilizada". Valha-nos o facto de, em Portugal Continental, florescerem muitas iniciativas no sentido que aqui explanei.
Ilustração: Google Imagens.
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