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“Educar não é encher vasos, mas atear fogos” dizia Montaigne. Vamos parar de castrar esta atividade tão nobre que é o ensino, limitando-o a uma simples preparação mecânica do exame.
Prestes a chegar 28 de setembro, dia da publicação das colocações da primeira fase no ensino superior público, Portugal vem dar grandes alegrias e grandes tristezas. Afinal de contas, é efetivamente um dia que fica na memória de todos, que por ele esperaram e ansiaram, para o resto da vida.
Permitam, então, que teça algumas considerações. A brancura e a claridade das páginas de Excel publicadas pela DGES é digna de que por ela, se verta uma lágrima no canto do olho. Que clareza! Que dignidade! É verdadeiramente um país justo, este, o nosso, “que orgulho”, lembro-me de pensar. Impossível haver uma já quase tradicional cunha. Era um ponto forte da nossa democracia, pensava eu, se havia algo que estava correto no nosso país era o acesso ao ensino superior, permitindo uma fluidez social essencial à manutenção da sanidade da nossa democracia.
Perdoem-me este, ainda mais jovem, eu, há não tanto tempo atrás quanto isso, pois eu já perdoei. Não foi preciso grande reflexão para perceber que, por detrás desta “brancura e claridade” de que vos falava há pouco, se esconde uma grande injustiça, na minha opinião um atentado aos valores da nossa democracia. Ataco este dia, mas reconheço que ele é somente o produto de um sistema em falha e podre até à raiz. Deteto dois grandes problemas no nosso ensino e o resultado inevitável desse.
A honestidade da publicação de resultados pressupõe que todos os alunos são números, e todos os números enquanto unidades são iguais, embora todos saibamos que não o são, nem estão nas mesmas condições. Uns estão em colégios mais do que acompanhados, outros estão em explicações a tudo e mais alguma matéria, têm acesso aos livros que quiserem e a instrumentos que fazem realmente a diferença, como um computador. O que proponho? Simples. Em vez de aparentarmos ter um sistema justo e coerente com os valores que dizemos ter, assumirmos as suas inevitáveis falhas. Eu não sou um número, sou um indivíduo, com notas, sim, sujeito a uma avaliação, claro, mas tenho igualmente uma história para contar. A França e o Reino Unido apresentam sistemas diferentes do nosso, onde as notas e uma avaliação, digamos, mais tradicional, que antes de tudo digo ser essencial, está presente, mas também é tida em conta a história do aluno: os seus interesses, atividades extracurriculares, atividades de voluntariado, trabalhos part-time. Desta forma poderíamos mudar a face das próximas gerações de estudantes universitários em Portugal, para indivíduos mais interessados, completos e humanistas.
O segundo problema, que do primeiro deriva, é a pressão então colocada nos exames, porque, como mandam as regras mais básicas da economia, se há uma necessidade, o mercado aloca os seus recursos para a resolver, e assim tirar proveito. Como há necessidade de meter alunos na faculdade, criam-se então estas máquinas industriais de meter meninos na faculdade, a que todos nós, inocentemente ou não, gostamos de chamar colégios. Nas quais deixa de haver aulas de História, e passa haver aulas de exames de História, deixa de haver aulas de Português e passa haver aulas de exames de Português. O ensino de Português, se é que alguma vez o fez, deixou, com este sistema de entrada, de priorizar o desenvolvimento do raciocínio e do pensamento crítico porque, no final do dia, o que vai interessar é que já não é preciso ler o melhor que a nossa literatura portuguesa tem, mas resumos com a matéria colhida, tratada, trincada, mastigada, para enfim o aluno a engolir e regurgitar no exame e nunca mais pensar no assunto.
O combate a estas falhas no nosso ensino e no acesso ao ensino superior são da mais capital importância, é necessária uma revolução! Se nada for feito está em causa nada mais nada menos que a sobrevivência de uma democracia saudável porque se não estamos a educar os nossos mais novos ao pensamento crítico e à reflexão, mas simplesmente a instigar o clássico “marranço”, que tipo de eleitores estamos a educar? Naturalmente, eleitores que aceitam tudo o que lhes dizem, muito perigosos nos tempos em que vivemos.
“Educar não é encher vasos, mas atear fogos” dizia Montaigne. Vamos parar de castrar esta atividade tão nobre que é o ensino, limitando-o a uma simples preparação mecânica do exame, e levá-la a uma abertura do espírito. Libertar o sistema desta forma de acesso era libertá-lo do exame e assim desta pressão da mecanização e memorização gratuita. Sejamos ousados, sejamos piromaníacos!
Nota
Artigo publicado no Observador
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