Vera Gouveia Barros
24 Novembro 2018
24 Novembro 2018
A autonomia deveria permitir às escolas seleccionar aqueles docentes cujas características, qualidades e experiência melhor se adequassem ao seu projeto educativo.
No meu penúltimo artigo, deixei a promessa de, em texto futuro, me debruçar sobre a reforma do funcionamento das escolas. Ora, há uns dias, deparei-me com um artigo de Bárbara Reis sobre o professor Joaquim Sousa. O nome provavelmente não será reconhecido. É natural. O professor Joaquim Sousa era “apenas” o director da Escola Básica do Curral das Freiras, o estabelecimento de ensino que, em 2010, ocupava o 1209º lugar do ranking, para, em 2017, ter ficado em 275º e 318º lugar, respectivamente, nos exames do 9º ano de Português e de Matemática.
O número 8 da revista “XXI Ter Opinião”, devotado ao tema da igualdade, dedicou um artigo a este caso de sucesso. Nele, Joaquim Sousa explica o que fez: na avaliação, o conhecimento da matéria passou a valer 90%, quando antes representava 60% (vindo os restantes 40% do comportamento, da assiduidade, da participação); eliminou o toque de campainha; os alunos tinham menos uma hora livre que nas demais escolas e os horários foram conciliados com o dos autocarros; desapareceram os trabalhos de casa, mas reforçaram-se os apoios nas disciplinas nucleares.
É esta a receita para o êxito? Resultou no Curral das Freiras, local isolado, com uma orografia pouco amistosa, uma das freguesias mais pobres da Madeira, onde a grande maioria dos alunos aufere Acção Social Escolar e tem pais com reduzida escolaridade. Mas não é uma fórmula de aplicação universal. Num meio diferente, com um contexto sócio-económico distinto, os resultados provavelmente seriam outros. E, por isso, as escolas precisam de autonomia.
Em Portugal, as escolas gozam de um regime de autonomia desde 1989. Teoricamente, pelo menos. O Decreto-Lei n.º 43/89 veio instituí-lo. No seu preâmbulo pode ler-se que “entre os factores de mudança da administração educacional inclui-se, como factor preponderante, o reforço da autonomia da escola”. Já o Decreto-Lei n.º 115-A/98 começa com a frase “A autonomia das escolas e a descentralização constituem aspectos fundamentais de uma nova organização da educação”, ideia que vamos reencontrar, sob outra formulação, no Decreto-Lei n.º 75/2008.
Na prática, passados quase 30 anos e três diplomas, Portugal continua a ter um sistema de ensino muito centralizado, em que é o Estado a tomar três quartos das decisões que afectam as escolas. Quem o diz é a OCDE, no Education at Glance 2018, documento que, na comunicação social, foi destacado por afirmar que os professores portugueses eram mais bem pagos que outros profissionais com o mesmo nível de qualificações.
E não creio que o Decreto-Lei n.º 55/2018, aprovado em Julho passado, venha operar uma verdadeira reforma neste domínio. Estendendo a todos os estabelecimentos de ensino o Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (implementado como experiência-piloto em 2017/18), deu às escolas o poder de, nomeadamente, gerir até 25% da carga horária do currículo escolar, desdobrar turmas, organizar o funcionamento das disciplinas (por exemplo, anuais ou semestrais), combiná-las e adoptar uma perspectiva multidisciplinar.
Pode ser pessimismo meu, mas entendo que a autonomia das escolas fica esvaziada se estas não tiverem capacidade para gerir os seus recursos humanos, a começar logo pela sua escolha. No oitavo episódio do programa Fronteiras XXI, intitulado “De Que Escola Precisamos?”, Joaquim Sousa não deixou de referir a dificuldade que a constante mudança de corpo docente lhe trouxe enquanto director da EB123 com Pré-Escolar do Curral das Freiras.
Uma instabilidade que afecta igualmente os professores, que estão constantemente a mudar de escola, sendo colocados ora no Algarve ora no Minho. Vendo as coisas por esse prisma, talvez não seja, afinal, uma profissão assim tão bem remunerada. E já se percebe que seja tão pouco cativante.
Mas o pior são as externalidades negativas decorrentes dessa falta de vínculo para a própria qualidade da Educação. Uma pessoa que não se identifica com a orientação educativa do estabelecimento de ensino que lhe calhou no concurso nacional de professores, que não se revê nos seus princípios, nos seus valores, nas estratégias adoptadas, dificilmente será um profissional totalmente comprometido e empenhado.
Parece-me, pois, que seria importante mudar a forma de contratação dos professores. A autonomia deveria permitir às escolas seleccionar aqueles docentes cujas características, qualidades e experiência melhor se adequassem ao seu projecto educativo, como, de resto, acontece com quase todas as organizações, incluindo da Administração Pública. E, claro, exemplos de dedicação como o de Joaquim Sousa devem ser enaltecidos e incentivados, devidamente reconhecidos.
Estranhamente, a Secretaria da Educação decidiu integrar a escola do Curral das Freiras na escola básica de Santo António, no Funchal. Retirou-lhe a autonomia que lhe permitiu transformar-se num caso de sucesso nacional e afastou o seu director, recentemente reeleito.
“São miúdos, iguais aos outros miúdos, e têm direito a ter os mesmos sonhos.”: era isto que dizia Joaquim Sousa a quem chegava para ensinar na escola do Curral das Freiras. Aparentemente, ele é que não tinha direito ao seu sonho de mostrar que “a escola é, por definição, um elevador social”.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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