quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Que sociedade queremos, que escola precisamos?


A Escola do Curral das Freiras continua a dar que falar. A perseguição ao Professor Joaquim José Sousa, agora, foi "premium" no Observador. 

A escola não é a sociedade mas confunde-se com esta e deve ser um lugar onde se aprenda a produzir, onde se aprenda pelo trabalho e não simplesmente o lugar onde se aprende para um dia ter um trabalho. Ao decidir acabar com um projeto educativo de sucesso como o foi a EB123/PE do Curral das Freiras, o governo regional da Madeira decidiu que a inovação e a modernidade não são o caminho escolhido. Sem explicar os motivos da extinção, mas quem acompanhou o processo sabe quais são as verdadeiras intenções. O governo regional descredibilizou a escola pública, tornando-a dispensável, pois é demasiado cara, tem problemas insanáveis e por vezes pessoas incontroláveis, numa clara estratégia de tentar desmerecer o seu papel social e desvalorizar a sua missão.

Custo de oportunidade é um conceito económico que significa, grosso modo, aquilo que estamos a abdicar para ter aquilo que temos agora. Digo-vos, um sistema educativo aquém das suas inúmeras potencialidades tem um custo de oportunidade elevadíssimo. Perdemos muito por não oferecer ferramentas de sucesso aos alunos, perdemos por não fazer os alunos acreditarem no seu talento e perdemos por não superar as mentalidades que não escapam ao local, ou seja, que não são capazes de tirar pleno proveito de um mundo tecnológico, digital e globalizado. Por outro lado, uma mentalidade chauvinista e revanchista nos lugares de topo cria custos invisíveis que vão desde o stress ao burnout. Tenho uma profunda preocupação com o nosso futuro coletivo e pela nossa crónica dificuldade de criar capital social, do modo como sistematicamente dificultamos o sucesso do talento “sem pedigree” na Região Autónoma da Madeira (RAM).
Afirmam diferentes especialistas que “as hipóteses de os jovens terem uma carreira de sucesso dependem fortemente das suas origens socioeconómicas e do capital humano dos pais”. Diz a Constituição da República que o Estado deve garantir a existência de uma rede pública de estabelecimentos de ensino livre e de qualidade, que sirva as necessidades e os interesses das populações, assegurando a igualdade de oportunidades e o progresso social, sem exclusões. O atual sistema de ensino não potencia a existência da escola enquanto elevador social. Urge reativá-lo para que não continuemos a perder gerações.
Existem muitos professores na RAM que são verdadeiramente excecionais, muitos são cultos e têm um profundo e sistemático conhecimento das matérias que lecionam. Porque será que este talento não se traduz em resultados objetivos como os testes PISA e outros indicadores de sucesso educativo demonstram? Porque será que estamos distantes de colocar sistematicamente alunos nas faculdades de topo do país e da Europa? Podem sugerir sardonicamente que estou a ser demasiado ambicioso, mas confesso que gostava de ver mais madeirenses nas melhores universidades do continente europeu, confesso que gostaria de ver a nossa região como um exemplo de excelência não só no âmbito nacional como internacional. É ambicioso, é verdade, mas esta ambição não é vã, prende-se exclusivamente com os alunos que já encontrei. Temos uma juventude de talento. Muitos acreditam que a nossa juventude perdeu valores face aos seus progenitores, não acredito nisso. Vejo que muitos alunos têm enormes dificuldades em singrar, aliás, vejo que a minha geração teve muito mais oportunidades que as gerações atuais. Também no campo da esperança, a minha geração foi muito mais favorecida.
Os tempos mudaram, da massificação que abriu portas numa administração em mudança e sedenta de quadros com formação superior, chegámos a uma sociedade que olha para a educação como um custo e não como investimento. Quando num território isolado e distante como o Curral das Freiras despontou uma escola, indo da creche ao 12º ano com resultados assinaláveis ao nível da formação de excelência e do potenciar de condições de igualdade, como o comprovam o reconhecimento nacional traduzido nos prémios da Fundação Montepio ou o reconhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos e da Associação Corações com Coroa em menos de uma década, estávamos na presença dum balão de esperança num eventual modelo que fazia renascer a ideia da escola enquanto elevador social.
Através dum Projeto Educativo que se baseava (1) no profundo conhecimento do aluno de modo a poder intervir sobre os seus constrangimentos de partida; (2) na aquisição pelo aluno de confiança pessoal e social; (3) na aquisição efetiva de competências académicas e sociais. Estando o mesmo orientado para proporcionar aos alunos condições de Equidade – respeitando a identidade de cada um e potenciando as suas competências de trabalho e de excelência, no ensino regular ou profissional; Igualdade – apoiar – recuperar – potenciar, cada jovem que abandona a escola sem completar a escolaridade é uma perda tremenda para a região e para o país de potencial humano e poder económico (o futuro em educação constrói-se, não se adia); Individualidade – cada aluno tem a sua identidade própria, diferente de todos os outros e era com ele elaborado o seu projeto de vida académico com realismo, de modo a promover a excelência académica e de prevenir o abandono escolar; Acesso às artes e ao desporto – o desenvolvimento harmonioso depende do desenvolvimento do corpo, da sua integração no espaço, da perceção do belo; Sentimento de pertença – todos os elementos desde o porteiro ao presidente do conselho Pedagógico são fundamentais para a formação académica e social dos alunos; Desenvolvimento do cidadão reflexivo – de modo a criarmos cidadãos participativos, críticos e intervenientes nas suas comunidades; Construção do futuro – continuávamos a acompanhar os alunos mesmo depois de saírem da escola, assim como apostámos na formação dos país.
O mundo atual está em permanente transformação, não é sustentável que a escola mantenha o mesmo paradigma, urge iniciar um novo ciclo pedagógico, curricular e administrativo adaptado aos desígnios dos alunos, tendo por princípio chegar a todos, proporcionando-lhe melhores e mais significativas aprendizagens.
Grandes mudanças avizinham-se no horizonte. Singrar neste mundo novo exige um conjunto de aptidões, conhecimentos e faculdades completamente novas. Será que estamos a disponibilizar estas competências aos alunos? Julgo que estamos muito longe disso e esta situação exige uma mudança rápida de rumo. É preciso reunir novas metas e objetivos no sistema educativo que prepare os alunos para os sinuosos desafios da modernidade, não só para que tenham competências técnicas, mas também que estejam preparados como cidadãos e indivíduos para as dificuldades. Os nossos jovens merecem uma herança social melhor, eles são também a garantia que a região salvaguarda os seus valores culturais, são o seu elo com o mundo. Os nossos jovens serão o futuro da nossa comunidade, da nossa pátria e nós temos o dever de lhes proporcionar todas as condições para que quando chegar o momento deles, eles possam transportar um testemunho geracional de excelência. Não podemos continuar a perder gerações, perante os dados demográficos, cada criança que perdemos é Portugal que fica mais pobre.
Tenho a ambição que no futuro o cenário se altere e os nossos jovens não tenham que partir por falta de oportunidades na sua terra. Urge devolver à escola pública a sua legitimidade, o que passa em meu entender por lhe conferir dimensão ética na sua organização e o gosto pelo ato de aprender e ensinar em si. Com isto quero dizer que os atores educativos deverão retomar a sua posição social de relevo, assente na dignidade e no saber que transportam e que as aprendizagens devem ser significativas e que permitam aos alunos compreender e intervir na sua sociedade e não sejam apenas um acumular de conhecimentos para um qualquer exame que “traga” hipotéticos benefícios futuros.
A escola não é a sociedade, mas confunde-se com esta e deve ser um lugar onde se aprenda a produzir, onde se aprenda pelo trabalho e não simplesmente o lugar onde se aprende para um dia ter um trabalho. O ato de aprender pela repetição de conhecimentos tão comum na escola tradicional parece-me de todo desfasado no tempo. A escola deve sair das suas “amarras” e procurar produzir conhecimento, nem que seja de cariz cultural, como o foi o projeto da Cultura Madeirense desenvolvido na escola do Curral das Freiras e sem razão objetiva, entretanto, extinto.
A evolução da sociedade da informação, tornou imediatos e crus factos outrora diluídos pela distância da informação, os jovens não podem crescer sós num mundo onde a informação e as “fake news” se confundem. O ato de debater a realidade da comunidade, da região do país e do mundo, o ter opinião sobre o ambiente, as intolerâncias, as desigualdades e ou a democracia é o princípio duma cidadania ativa. Acreditando como acredito que a escola forma Homens e Mulheres para e com a sociedade, é para essa mesma sociedade que a escola deve preparar os jovens, pois o tempo não para e não podemos continuar a perder gerações.
São metas ambiciosas, reconheço. Mas o fluxo imparável da modernidade assim o exige.

NOTA
Texto publicado no Observador e que aqui reproduzo pelo seu enorme interesse. 

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