sexta-feira, 2 de novembro de 2018

DA ESCOLA ENCICLOPÉDICA AO GOT TALENT


A escola tem de ser mais do que manuais, sumários e pormenorizadas grelhas de avaliação, radiografando obsessivamente e encaixotando a sua diversidade em escalas percentuais. A escola tem de ser fermento de e para a vida, lugar e oportunidade de paixão e de sonho, de aprendizagem e de produção de saberes consistentes.

A Escola
… precisa de serenidade e isso não é possível com posturas centralizadoras ou da peregrina ideia da municipalização;
… necessita de autonomia organizacional e pedagógica, não de sufocantes políticas padronizadoras;
… precisa de financiamento para que as dívidas não perturbem a aprendizagem;
… tem de sair dos seus muros convencionais e projectar-se na vida real, interagindo com todos os outros sistemas, analisando-os e compreendendo-os com o necessário pensamento crítico;
… não pode ser a mera repetição que prepara exames, quando os alunos, hoje, se relacionam com o conhecimento de forma diferente das gerações passadas;
… não precisa de um fato de tamanho único ou de um velho com arranjos marginais, mas do respeito pela diversidade cultural, expectativas, potencialidades de cada um, liberdade de escolher e decidir o que aprender e como aprender;
… não pode ser professores, por um lado, alunos, por outro, auxiliares que cumprem ordens, pais distantes, antes uma comunidade em permanente aprendizagem;
… não deve caracterizar-se pela imensidão de pequenos projectos desarticulados no tempo, antes pela existência de um caminho, aglutinador e portador de futuro;
… não deve ser conservadora e reprodutora de modelos sociais, com um currículo e disciplinas desconjuntadas, antes um espaço de inspiração, criação, inovação, de cultura, de auto-estima e de afectos, capaz de gerar, paulatinamente, os pressupostos da curiosidade;
… é muito mais que manuais, sumários e pormenorizadas grelhas de avaliação, com percentagens para tudo, radiografando e encaixotando obsessivamente a diversidade social entre 0 e 100%, antes uma instituição de aprendizagem disponível para o conhecimento, produção de saberes consistentes e fermento de e para a vida;
… não pode ser um local de obrigação, triste, enfadonho, antes um espaço que apaixone, de prazer pelo estudo, pela descoberta e pelo desejo que conduz ao conhecimento sustentado;
… não pode caracterizar-se por um sentido individualista, quando as áreas de intervenção profissional fazem apelo ao sentido de grupo;
… não pode assentar em exaustivos programas e duvidosos conteúdos, injectados qual vacina, antes o foco da sua missão deve centrar-se na observação, experiência, raciocínio, questionamento integrado de tudo e na mútua descoberta de respostas, não aquelas exigidas em testes de exclusão, antes as que se alimentam na interrogação, na capacidade de argumentação e nas soluções criativas;
… não deve (a)fundar-se na burocracia, nos papéis, muitos papéis que circulam e enervam, uns repetitivos, outros desnecessários, tarde ou cedo destinados ao arquivo morto, que apenas justificam os lugares que a hierarquia política ocupa.

Lugar de paixão e sonho

Ora, criar instituições de aprendizagem, não estabelecimentos de ensino, dá muito trabalho! Romper com o passado e com as rotinas da fábrica, assentes na lógica do toca-e-entra-toca-e-sai, é complexo. É difícil operar uma revolução na aprendizagem, depois de dezenas de anos de rédea curta, de condicionamento da inovação, com uma classe docente trabalhadora, porém, envelhecida, cansada e desmotivada. Não é tarefa fácil assumir que aprender é muito mais do que transmitir conhecimento enciclopédico segmentado e que o papel do professor deve ser hoje a de mediador e potenciador da descoberta. Mas é por aí que o caminho deve de ser trilhado, para que o êxito aconteça e baixem os números do abandono, do insucesso e das qualificações que perturbam o desenvolvimento.
Há uma frase de Izabel Grispino que me cativa: "(...) antes de colocar a educação numa vala comum, é recomendável examinar cada indivíduo, cada anseio, cada desejo embutido na personalidade (...)". Baseado nessas palavras, à medida que digito, perpassam-me, por aproximação, algumas imagens que retenho do programa “Got Talent”, onde crianças e jovens mostram as suas capacidades em um hino à beleza sensorial das múltiplas artes. A estética em todo o seu esplendor atravessando, de uma ponta à outra, através do corpo, a música, a dança, o canto, a declamação, a magia, a comédia… No essencial, tudo quanto a imaginação, a vontade e o sonho podem conduzir. Ora, se tudo aquilo que nos toca e muitas vezes emociona até às lágrimas é possível, fico a pensar nas razões da escola não ser, igualmente, para a maioria, um local de paixão e sonho. A resposta está numa outra visão que conduza a excelentes ambientes de aprendizagem. Daí que o sistema educativo necessite de uma revolução, nunca de uma evolução através de acertos marginais.
Ilustração: Google Imagens.

Nota
Texto da minha autoria publicado na revista nacional A Página da Educação e no blogue Gnose

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