quarta-feira, 28 de maio de 2025

Revisão Constitucional - O Sistema Educativo

 

Face à nova composição da Assembleia da República e as posições políticas que por aí são dadas a conhecer, se outra crise não acontecer, presumo ser provável que, ao longo dos próximos quatro anos, seja desencadeada uma revisão da Constituição da República Portuguesa. Sendo assim, espero que os Deputados tenham o bom senso de não mexer nas matérias que constituem os alicerces da nossa vivência democrática. As maiorias de direita ou de esquerda, porque são sempre circunstanciais, não devem constituir-se como uma oportunidade ideológica, de conveniência ou moda, de destruição do edifício que muita luta e sangue custou aos portugueses. Confesso que estou céptico quanto a um desfecho banhado de sensatez e muito discernimento. Parece-me existir palavreado populista a mais e respeito pela Nação a menos. A seu tempo veremos.



Quedo-me, para já, no sector para o qual julgo estar minimamente habilitado: a Educação. 

Eu sou defensor de um país com três sistemas educativos: Portugal Continental, Região Autónoma da Madeira e Região Autónoma dos Açores. Não faz qualquer sentido, inclusive, no quadro do Estatuto Político Administrativo das regiões da Madeira e dos Açores, manter "As bases do sistema de ensino" (alínea i) no rol das matérias do Artigo 164º (Reserva absoluta de competência legislativa) da Assembleia da República. Nem como matéria de "Reserva relativa de competência legislativa" (Artigo 165º). Aliás, o Artigo 30º do Estatuto Político Administrativo da Madeira considera, na alínea o), como "matéria de interesse específico" a Educação pré-escolar, ensino básico, secundário, superior e especial.

Às regiões autónomas, por isso mesmo, porque são autónomas, deve a Constituição libertá-las de qualquer subordinação organizacional, curricular e programática. 

Na Suíça, este é um mero exemplo, o sistema varia entre as regiões, não apenas porque existem espaços de predominância linguística distinta, mas também porque a diversidade é tida como uma riqueza no quadro da descentralização. Todos convergem para o êxito da Suíça. Quanto à Madeira e aos Açores, não se trata propriamente de especificidades regionais, mas de respeito pela capacidade local autonómica em conceber e estabelecer um sistema público próprio de aprendizagem, consistente e portador de futuro. Não faz sentido que de Valença do Minho ao Corvo todos tenham de cumprir o que alguns impõem no Ministério da Educação ou na Assembleia da República.

O princípio deve ser este, a sua implementação prática é um outro e complexo trabalho. Aí exige-se que o sistema se abra a um alargado debate que envolva professores, pais, alunos, empresas, instituições; a família, as suas dinâmicas, as questões sociais e a organização do trabalho; os currículos, programas, horários, as centenas de metas curriculares; os conceitos de aula, de turma, de sala de aula, os tpc, as avaliações; a burocracia, o número de alunos por estabelecimento, a rede e a arquitectura dos espaços escolares; a violência NA escola e a violência DA escola… tudo, mas tudo deve ser reequacionado.

De resto, o sistema não é pertença do pensamento de um ministro ou de um secretário. A robustez do sistema está directamente proporcional ao que pode receber e oferecer aos outros sistemas e sectores de actividade e da ponderada avaliação que a todo o momento deve ser feita. Estão errados os que pensam que "se sempre foi assim, porque raio há que mudar?" ou, então, os que se consideram portadores de uma qualquer verdade e, por isso mesmo, se fecham nas suas torres de marfim. Por aí perde o país e perdem as regiões. Ora, se a Escola é para todos, tem de haver vários tipos de escola! Continuar a educar para o passado não me parece sensato, quando as próximas duas décadas vão sofrer uma profundíssima alteração em todos sectores e áreas de actividade humana. É com a IV Revolução Industrial que estamos confrontados e não com processos onde se deseja metê-los à força nos "cubículos convencionais de ontem" (Tofller). 

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 20 de maio de 2025

A Educação e o acto de decidir

 

Li, com muito agrado, o texto do Jornalista Roberto Ferreira, subdirector do Diário de Notícias da Madeira, publicado no dia das recentes eleições legislativas nacionais (18 de Maio, página 26). A determinada altura refere: “(…) Como se o êxito se resolvesse por feitiçaria. Urge contrariar esta crença e devolver à Educação o seu papel formador, com base na inteligência natural. Ensinar a pensar tornou-se urgente (…)”. Hoje, digo, que ele foi premonitório do que viria a acontecer na distribuição dos mandatos.



Obviamente que, no plano democrático, há que aceitar o sentido de voto dos portugueses. Porém, num quadro alargado de causas, de origens muito remotas, que agora causam espanto a muitos, ao jeito de “como foi possível?”, há uma causa estrutural e essa reside na importância do papel da escola na formação de base. O que o Jornalista quis dizer, e bem, pelo menos assim interpretei, é que esta formação de natureza enciclopédica é inconsequente e está morta. Não serve a ciência nem a vida real. “Ensinar a pensar tornou-se urgente”. E esta escola não ensina a pensar, ensina a repetir. E avalia quem repete bem!

Rubem Alves (1933/2014), notável pedagogo de reconhecimento internacional, enalteceu que a “primeira missão do professor não é a de oferecer respostas prontas, mas a de fazer pensar”. Quando a estrutura da educação assenta na curiosidade e no pensamento, a capacidade das pessoas torna-se mais consistente em todas as áreas de intervenção, inclusive, quando são chamadas a decidir. O problema é que a escola está, claramente, divorciada do pensamento, porque há programas e extensas metas curriculares a cumprir, porque se confunde política com actividade partidária, porque, grosso modo, os professores têm medo das abordagens que possam colidir com as estruturas hierárquicas políticas ou não, e porque se assiste, entre muitos aspectos, à negação de uma verdadeira, livre e autónoma cultura de escola. Nem as tais "aulas" de Cidadania e Desenvolvimento atenuam as fragilidades de pensamento. 

Um pouco por tudo isto, ainda ontem li, no mesmo Diário, as declarações de uma eleitora que, questionada, relativamente ao sentido de voto, disse: “(…) É sempre o mesmo enquanto for viva”. Como se o acto da decisão política, que tem influência directa na vida de todos, fosse exactamente igual às cores de um qualquer clube que, por uma ou outra razão, gostamos.

“Ensinar a pensar” nunca se tornou tão urgente, quando se olha para uma onda mundial que rasga princípios e valores humanistas; quando temos presente as redes que, pela repetição, promovem e geram a opinião distorcida; para painéis de comentadores, escolhidos a dedo, para formatar consciências; quando se olha para o enorme desencanto das populações, porque os políticos desligaram-se da realidade sentida, pois bem, só através da Educação, entendida como cultura, podemos, a prazo, não andar para aí a “chorar baba e ranho”.

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 4 de maio de 2025

Colecção Vidas (des)conhecidas - Padre José Martins Júnior


Numa edição da CADMUS (uma marca da Associação Académica da Universidade da Madeira) foi ontem apresentado o livro que espelha, naquilo que é essencial, a vida e obra do Padre José Martins Júnior. Um texto de Cristina Carvalho e ilustrações de Rafaela Rodrigues (ambas no canto superior direito da foto). Os testemunhos que ali escutei, confesso, emocionaram-me, pelas narrativas genuínas de quem foi tocado pelo Homem de cultura transversal. "(...) Serão sempre poucos os livros e documentos publicados sobre o Padre Martins. Porque a sua presença foi daquelas que não cabem bem em páginas, mas sim nas memórias, nos gestos, nas sementes que deixou em cada um de nós. Fará sempre sentido que se fale sobre ele, sobre a sua marca nas pessoas e nesta Terra que tanto amou". - Cláudia Carvalho.




Três figuras apresentaram a Obra. 
Cláudia Carvalho, Fisioterapeuta, enalteceu a sua participação na Tuna criada pelo Padre Martins Júnior: (...) É sabido por todos a importância que esta tuna teve e tem ainda hoje na nossa comunidade, por tantas razões, mas, essencialmente, pelo conhecimento musical que foi possível passar a crianças e jovens que não teriam outra forma de recebê-lo. Aprendi a tocar bandolim na tuna e sendo eu esquerdina — como mais três colegas na altura — fomos apanhados naquela encruzilhada clássica: tocamos também com o braço do instrumento para o mesmo lado, como é típico noutras tunas ou orquestras se pensarmos noutros instrumentos, ou mudamos a nosso favor? Com o Padre Martins a resposta foi simples. Em vez de nos obrigar a tocar como os restantes, ele deu-nos liberdade. Literalmente, a liberdade de inverter o bandolim e tocar à nossa maneira. E nós, quatro jovens músicos esquerdinos, lá estávamos, a tocar com a mão esquerda como se fosse a coisa mais natural do mundo — e com ele a achar imensa graça àquilo também porque já nos confidenciou: que adorava ser também esquerdino ou talvez porque, sendo um homem de convicções fortes — e, digamos, tendencialmente à esquerda —, via em nós uma espécie de revolução musical. Mas no fundo, deu-nos uma lição de pedagogia, ele via as pessoas como eram e não como "deviam" ser. O ensino musical que nos ofereceu foi isso mesmo — uma lição de inclusão, criatividade e identidade. (...) Mas não foi só na música que o Padre Martins marcou a diferença e já que hoje é sobre um livro que nos juntamos aqui, não posso deixar de lembrar um verão, tínhamos talvez entre 9 e 12 anos, e juntávamo-nos no salão paroquial com o pe. Martins, não para ensaiar nem preparar apresentações, mas simplesmente para ler, escrever e conversar sobre isso. Criámos uma espécie de clube de leitura e oficina de composições, onde escolhíamos um tema e partilhávamos ideias, como gente grande. E ele, no meio de mil responsabilidades, recebia-nos com gosto, sem pressas, só porque acreditava que merecíamos aquele espaço. (...) Hoje, percebo como esses encontros plantaram sementes. Porque ler, escrever, pensar em conjunto — tudo isso também nos foi ensinado por ele, mesmo quando não havia palco, nem microfone, nem aplausos no final. Só a presença. (...) Lembro-me, ainda de um evento muito especial: o nosso Parlamento Jovem. O Padre Martins lançou a ideia — cada um de nós, como um pequeno deputado, apresentava e defendia uma proposta. Escrevemos os nossos textos e levámos a sério o papel na defesa dos direitos da criança. Ele estava a ensinar-nos a pensar, a falar com propósito, a escutar os outros. No fundo, deu-nos ferramentas e, mais do que isso, deu-nos voz — e a certeza de que valia a pena usá-la. Ele criou um espaço onde o diálogo, a escuta e o pensamento crítico eram levados a sério, mesmo entre crianças. E isso, para muitos de nós — especialmente os que em casa não tinham tanto espaço para conversar, questionar ou discordar — foi uma verdadeira escola de cidadania. (...) 

A Professora Madalena Franco referiu-se assim:

"Com o Padre Martins despertei para a atividade cultural, para a música, para o teatro, para o exterior… para o mundo! Nas décadas de 80/90, nas atividades dos domingos culturais no palco aberto da Ribeira Seca, com teatro de improviso, simulação de programas de televisão, encenação de cenas do quotidiano, desporto, jogos de animação… muita atividade! Por essa altura houve concertos …Trovante, Júlio Pereira, Amélia Muge … era o mundo que vinha ter connosco!! Por essa altura foi formada a Tuna de Câmara de Machico e foi o despertar para os clássicos da música … para a beleza da música! Mozart, Strauss, Beethoven… Música que nos levou a atuar no hotel Atlantis e no Natal dos hospitais! Depois lançou-nos novo desafio: o teatro, teatro mais sério…Tchekhov! E encenou O pedido de casamento. Representamos em S. Roque e no Funchal. Nós, uns jovens da Ribeira Seca, a representar Tchekhov! Uma semente que mais tarde daria início ao Grupo de teatro A Lanterna! Já como presidente da Câmara de Machico, financiou uma formação em teatro com o António Plácido e foi aqui, que muitas vezes ensaiávamos, representamos e declamamos na escadaria e no átrio da escadaria da Câmara!
Relembro com carinho, que em dada altura o Senhor padre dava aulas de Português no liceu e entre ensaios da Tuna, ouvíamos excertos dos Maias, dos heterónimos de Fernando Pessoa…aí percebi que era um privilégio aprender daquela forma!...que pedagogia, que sensibilidade dava aos textos do Eça, aos poemas de Cesário Verde! A sagacidade de pensamento, a crítica e o humor, sempre presentes naquelas tardes e noites em que éramos jovens com vontade de viver, e que entre músicas, leituras e conversas, perspetivávamos o nosso mundo, pelas mãos deste senhor, o padre Martins!
Para além desta atividade cultural em que me vi envolvida, fui também contagiada pela clarividência, pelo humanismo, pela LIBERDADE de pensamento e ação que fui colhendo nestas atividades da igreja – atrevo-me a dizer que, tudo aquilo que foi novidade para a maioria das pessoas com o Papa Francisco, eu ouvi desde sempre: pensamento ecuménico dos valores da Igreja, da validade das outras religiões no contexto mundial, o valor e o sentido do perdão, esse perdão que deve ser pedido ao próximo, àquele que ofendemos, e acolher TODOS, todos, todos! Que devemos ser responsáveis pelas nossas ações… Que Cristo é amor e perdão e não um deus de medo e punição. Que Cristo também é liberdade e amor e que o reconhecemos no nosso próximo.
Mais tarde, já bem mais adulta, os ciclos temáticos das Missas do Parto eram verdadeiros seminários! Com temas atuais, desde o Ambiente, Educação, o Mundo Atual…uma pedagogia para todos! Durante as suas homílias, falou muitas vezes de educação e apelou a que os pais estivessem atentos à educação dos seus filhos e que ouvissem e respeitassem os professores.
Que este livro seja também uma inspiração para os mais novos…que sigam os vossos sonhos, que sejam criativos e que se envolvam em atividades com a comunidade!"

Finalmente, Cheila Martins, Psicóloga, disse:

"Com um olhar atento, com uma palavra firme e uma alma feita de entrega, cultivou a consciência de um povo, despertou-lhes coragem, distribuiu o saber onde existia ignorância e semeou a esperança, onde tantas vezes reinava a resignação. Foi nos passos do Pe. Martins que encontrei chão, foi pela sua voz (pela sua verdade) que aprendi a questionar aquilo que tantas vezes o tempo tenta calar. Aprendi que a verdadeira autoridade está precisamente na coerência entre o que se diz e o que se vive. Ele mostrou-me o que é educar pela arte, com um carinho incondicional, mas com a firmeza de quem luta sem perder a esperança de quem “luta sempre, sempre de pé!” Conhecer a vida do Pe. Martins é descobrir que a grandeza não está nas palavras ocas, mas na ação consequente. É perceber que as pessoas grandiosas são aquelas que, tal como ele, servem sem esperar aplausos, lutam sem esperar recompensas. As suas palavras ainda nos desafiam, os dias ímpares são ainda mais ricos, as suas canções ainda nos elevam. A sua presença continua a viver em cada gesto de cidadania ativa, em cada aula onde se ensina com paixão, em cada grupo que canta e dança não apenas por gosto mas por justiça porque “lutaremos cantando a vida inteira, à conquista do nosso lugar!"




Três intervenções que me encheram de alegria e de emoção, porque ali está o retrato, não apenas do Padre e lutador pela felicidade de todos, mas o Professor e o verdadeiro Pedagogo que deixa sementes para a VIDA.