terça-feira, 29 de setembro de 2020

EDUCAÇÃO - Qualquer caminho serve!


Um dos princípios orientadores que um gestor, público ou não, deve seguir é, desde logo, responder a três perguntas essenciais: onde estou? onde quero chegar? e que passos tenho de dar para lá chegar? É básico. Isto coloca-se ao político, ao empresário e a todos os que desejam atingir um objectivo. Coloca-se a todos nós na vida corrente. Quando não existem respostas ou elas apresentam-se difusas, entra-se no campo da "Alice no País das Maravilhas": "senão sabes para onde vais, então, qualquer caminho serve"



Onde estou (?) significa a caracterização exaustiva e segmentada da situação com a qual nos confrontamos em um dado sector. Passa não apenas pelos dados estatísticos, mas por múltiplos aspectos de natureza económica, social e cultural. É a partir desta caracterização que, com absoluta racionalidade e sentido das prioridades, se pode definir, por etapas de curto, médio e longo prazo, onde se deseja chegar (?). Finalmente, aí chegados, será possível, com rigor, elencar todas as tarefas, sujeitas, naturalmente, a contextos imprevisíveis, que irão permitir, no final do processo, a transformação de uma dada situação inicial em uma outra ideal.

Se isto não for observado, de uma forma graduada no tempo, o resultado constituirá sempre a repetição do passado, pincelado, aqui e acolá, sobretudo nas margens, com alguma coisita que não altera a questão de fundo. Isto permite dizer que é inaceitável que se peçam competências aos alunos à saída da escolaridade e os mesmos que a impõem manifestem uma flagrante ausência de "competências" para olhar o mundo e responder de forma adequada. É um paradoxo.

É mais fácil, eu sei, repetir o passado. Todos na rotina do dia-a-dia, no toca-entra-toca-sai, no debitar, fazer o teste e avaliar, porque assim deseja a hierarquia. Saem do gabinete (des)cansados da labuta. Nada, rigorosamente nada, bole com a consciência, com aquilo que dizem os investigadores, os pensadores e autores de diversas áreas do conhecimento. Por exemplo, questiono, se interessará aos "chefes de turno político", o que ainda há poucos minutos li, no decorrer de uma entrevista com o Psicólogo Eduardo Sá?: 

"É uma catástrofe o que se está a passar com os recreios" (...) "crianças fechadas muito tempo numa sala de aula, sem recreio, vão estar, obviamente, mais agitadas e tensas" (...) "Não me canso de desafiar as autoridades a explicar porque é que há tantas crianças a consumir antipsicóticos e metanfetaminas".

Pois, isso é lá no Continente, certamente dirão. Aqui nada se passa, tudo anda nos carris da "normalidade" e da "tranquilidade". Ora bem, mas, afinal, e este é o centro das minhas preocupações, para onde caminha o sistema educativo? A situação é, globalmente conhecida e facilmente se caracteriza; para onde caminha, duvido que alguém tenha capacidade para explicar; portanto, deduzo, a questão de saberem quais os passos para lá chegar constitui assunto que não preocupa. Lamento, porque com a Educação ninguém, e quando digo ninguém refiro-me, também, aos partidos políticos, deveriam brincar com ela.

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Olá, eu sou "=(Exame Mat A* 0,5 + MédSeg* 0,5)

Por

“Educar não é encher vasos, mas atear fogos” dizia Montaigne. Vamos parar de castrar esta atividade tão nobre que é o ensino, limitando-o a uma simples preparação mecânica do exame.



Prestes a chegar 28 de setembro, dia da publicação das colocações da primeira fase no ensino superior público, Portugal vem dar grandes alegrias e grandes tristezas. Afinal de contas, é efetivamente um dia que fica na memória de todos, que por ele esperaram e ansiaram, para o resto da vida.

Permitam, então, que teça algumas considerações. A brancura e a claridade das páginas de Excel publicadas pela DGES é digna de que por ela, se verta uma lágrima no canto do olho. Que clareza! Que dignidade! É verdadeiramente um país justo, este, o nosso, “que orgulho”, lembro-me de pensar. Impossível haver uma já quase tradicional cunha. Era um ponto forte da nossa democracia, pensava eu, se havia algo que estava correto no nosso país era o acesso ao ensino superior, permitindo uma fluidez social essencial à manutenção da sanidade da nossa democracia.

Perdoem-me este, ainda mais jovem, eu, há não tanto tempo atrás quanto isso, pois eu já perdoei. Não foi preciso grande reflexão para perceber que, por detrás desta “brancura e claridade” de que vos falava há pouco, se esconde uma grande injustiça, na minha opinião um atentado aos valores da nossa democracia. Ataco este dia, mas reconheço que ele é somente o produto de um sistema em falha e podre até à raiz. Deteto dois grandes problemas no nosso ensino e o resultado inevitável desse.

A honestidade da publicação de resultados pressupõe que todos os alunos são números, e todos os números enquanto unidades são iguais, embora todos saibamos que não o são, nem estão nas mesmas condições. Uns estão em colégios mais do que acompanhados, outros estão em explicações a tudo e mais alguma matéria, têm acesso aos livros que quiserem e a instrumentos que fazem realmente a diferença, como um computador. O que proponho? Simples. Em vez de aparentarmos ter um sistema justo e coerente com os valores que dizemos ter, assumirmos as suas inevitáveis falhas. Eu não sou um número, sou um indivíduo, com notas, sim, sujeito a uma avaliação, claro, mas tenho igualmente uma história para contar. A França e o Reino Unido apresentam sistemas diferentes do nosso, onde as notas e uma avaliação, digamos, mais tradicional, que antes de tudo digo ser essencial, está presente, mas também é tida em conta a história do aluno: os seus interesses, atividades extracurriculares, atividades de voluntariado, trabalhos part-time. Desta forma poderíamos mudar a face das próximas gerações de estudantes universitários em Portugal, para indivíduos mais interessados, completos e humanistas.

O segundo problema, que do primeiro deriva, é a pressão então colocada nos exames, porque, como mandam as regras mais básicas da economia, se há uma necessidade, o mercado aloca os seus recursos para a resolver, e assim tirar proveito. Como há necessidade de meter alunos na faculdade, criam-se então estas máquinas industriais de meter meninos na faculdade, a que todos nós, inocentemente ou não, gostamos de chamar colégios. Nas quais deixa de haver aulas de História, e passa haver aulas de exames de História, deixa de haver aulas de Português e passa haver aulas de exames de Português. O ensino de Português, se é que alguma vez o fez, deixou, com este sistema de entrada, de priorizar o desenvolvimento do raciocínio e do pensamento crítico porque, no final do dia, o que vai interessar é que já não é preciso ler o melhor que a nossa literatura portuguesa tem, mas resumos com a matéria colhida, tratada, trincada, mastigada, para enfim o aluno a engolir e regurgitar no exame e nunca mais pensar no assunto.

O combate a estas falhas no nosso ensino e no acesso ao ensino superior são da mais capital importância, é necessária uma revolução! Se nada for feito está em causa nada mais nada menos que a sobrevivência de uma democracia saudável porque se não estamos a educar os nossos mais novos ao pensamento crítico e à reflexão, mas simplesmente a instigar o clássico “marranço”, que tipo de eleitores estamos a educar? Naturalmente, eleitores que aceitam tudo o que lhes dizem, muito perigosos nos tempos em que vivemos.

“Educar não é encher vasos, mas atear fogos” dizia Montaigne. Vamos parar de castrar esta atividade tão nobre que é o ensino, limitando-o a uma simples preparação mecânica do exame, e levá-la a uma abertura do espírito. Libertar o sistema desta forma de acesso era libertá-lo do exame e assim desta pressão da mecanização e memorização gratuita. Sejamos ousados, sejamos piromaníacos!

Nota
Artigo publicado no Observador

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Cidadania e Desenvolvimento. "Conhecimento fragmentado", não, obrigado!

 

O conceito de "conhecimento fragmentado" de que fala a filósofa Viviane Mosé aplica-se à situação da polémica em redor das "aulas" de "Cidadania e Desenvolvimento social". Vou, directamente, ao assunto: embora as múltiplas e importantíssimas questões da cidadania sejam de um valor incalculável na vida, não devem fazer parte de uma disciplina isolada, ainda por cima, sujeita a uma avaliação. É redutor a roçar o ridículo.



A aprendizagem segmentada ou "fragmentada" por disciplinas constitui um formato que teve o seu tempo, mas que não se adequa ao pensamento integrado, no essencial, à exigência dos tempos que correm. 

Dir-se-á, com razão, que os direitos e os deveres de um indivíduo, os actos de responsabilidade deveriam partir das famílias: as preocupações ambientais, de consumo, economia doméstica, interculturalidade, segurança, direitos humanos, património, igualdade de género, tolerância, sexualidade, sentido humanista, eu sei lá, tantas são as áreas da relação do indivíduo com mundo. Para isso precisaríamos de ter um sistema educativo que, para já, nos últimos 46 anos, tivesse educado nesse sentido. Infelizmente, assim não foi e não é. O défice é significativo. Competirá, portanto, à escola, colmatar e educar nesse sentido. Porém, jamais enquanto disciplina autónoma. 

A cidadania, logo nos primeiros anos de escolaridade, constitui um processo transversal na aprendizagem, onde todos, repito, todos os professores devem estar envolvidos. É ininteligível a actual estrutura organizacional, curricular, programática e pedagógica que caracteriza o sistema, claramente "fragmentado", quando a escola precisa de uma revolução de conceito, que a leve a integrar o conhecimento. Logo, a "cidadania" lá estaria como preocupação básica. É a escola que tem de mudar na ideia de escola. Acrescentar um conjunto de preocupações autónomas, sujeitas a uma avaliação, para além de errado, apenas consomem tempo com resultados que não são proporcionais ao investimento.

Mas, para que essa transversalidade aconteça, também se torna necessário olhar, atentamente, para a formação dos professores. Ela é determinante. Docente que não transporte um conjunto de princípios tidos como fundamentais, não estará apto para ser o mediador de uma aprendizagem consequente. Mas também coexiste um outro aspecto, o da autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem: enquanto todo o poder de decisão estiver centralizado, sem hipóteses de criação de outras experiências, obviamente que serão nulas as possibilidades de entender a escola como espaço de uma aprendizagem integrada e portadora de futuro. 

Ilustração: Google Imagens.

Estar no pré-escolar com seis anos é um fenómeno que não pára de subir


Quando as aulas começaram no último ano lectivo que foi “normal” (2018/2019), estavam inscritos nas escolas 93.497 alunos do ensino básico e mais 51.801 do secundário que se encontravam em atraso no seu percurso escolar. Neste universo figuravam 11.242 crianças que estavam no 1.º ano de escolaridade, o que correspondia a 13% do total de inscritos. Na prática, isto quer dizer que estes alunos tinham mais de seis anos, que é a idade apontada como “normal” para a frequência do 1.º ano.



É o que mostram os dados divulgados pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) no seu último Perfil do Aluno, no caso relativo ao ano lectivo de 2018/2019. Mas como no 1.º ciclo só podem existir chumbos a partir do 2.º ano, a que se deverá então este desfasamento etário? “A proporção dos que ficam na educação pré-escolar com seis anos de idade tem subido muito”, justifica a investigadora e directora do Departamento de Sociologia do ISCTE-IUL, Teresa Seabra.

Mais concretamente, frisa, duplicou nos últimos anos: tendo como universo as estimativas do Instituto Nacional de Estatística quanto ao número de crianças com seis anos residentes em Portugal, a proporção de inscritos no pré-escolar nesta idade passou de 5,7% em 2013/2014 para 12% em 2018/2019. Em números absolutos, a dimensão é esta: subiu de 5229 para um recorde de 10.212. 



Para Teresa Seabra, está é a razão pela qual a chamada taxa real de escolarização tem estado a cair no 1.º ciclo. Este indicador, que tem sido utilizado como uma das medidas de sucesso dos sistemas educativos, relaciona o número de alunos que estão matriculados num determinado ciclo de estudo, em idade normal de frequência, com a população residente dos mesmos níveis etários.

Utilizando esta relação percentual constata-se, por exemplo, que em 2018/2019, último ano com dados publicados, estavam inscritas no 1.º ciclo (1.º ao 4.º ano) 95,8% das crianças residentes em Portugal com idades entre os seis e os nove anos, que é o intervalo apontado como sendo o de “frequência normal” para este nível de ensino.

Nos últimos anos esta proporção oscilou entre 96,1% e 95,4%, depois de ter estado mais de uma década nos 100%. “A taxa baixa, sobretudo, por ficarem alunos de seis anos (considerada a idade normal de frequência do 1.º ano) no pré-escolar”, insiste Teresa Seabra.

E isto acontece porquê? “Creio que o aumento do número de famílias que optam por matricular os seus filhos no 1.º ciclo um pouco mais tarde se poderá relacionar com o crescendo da percepção social de que a vida escolar é muito exigente, a consciência de que brincar é muito importante para o desenvolvimento das crianças e, talvez, também como uma forma de indirectamente assegurar um aumento da probabilidade do sucesso escolar na escolaridade básica”, sugere Teresa Seabra, ressalvando que estas são “apenas algumas hipóteses de trabalho”, já que não existe investigação que se conheça sobre este tema.

A investigadora da Universidade Nova de Lisboa (UNL), Liliana Pascueiro, que tem trabalhado com várias escolas, com aponta no mesmo sentido: “A transição para o 1.º ano começa progressivamente a ser entendida não como uma questão administrativa dependente do ano e mês de nascimento da criança, mas sim da posse de competências essenciais para a integração no 1º ciclo.” A investigadora da UNL lembra, a propósito, que uma das razões mais comuns para os pais pedirem o adiamento da entrada dos filhos no 1.º ciclo se prende com o que consideram ser a “imaturidade das crianças”.


Alunos que ficam para trás

A frequência da educação pré-escolar passou a ser identificada, em muitos estudos internacionais, como um preditor de sucesso no futuro escolar dos alunos. O mesmo já não acontece com as retenções. E, para Liliana Pascueiro, esta é a principal razão por detrás da queda da taxa real de escolarização no 1.º ciclo: “Há uma política de retenção que continua enraizada em franjas populacionais, não só da classe docente, como dos próprios pais e encarregados de educação, que consideram o transitar para o ano seguinte com avaliações menos positivas como uma política de facilitismo da instituição e de injustiça para com os demais colegas de turma.”

No 1.º ciclo, os alunos só podem ser chumbados a partir do 2.º ano, quando terão em média sete anos. Apesar das taxas de retenção terem atingido em seus valores mais baixos de sempre, quando o ano lectivo de 2018/2019 terminou estavam chumbados 4523 alunos que frequentavam o 2.º ano, o que significa 4,7% do total. No conjunto do 1.º ciclo reprovaram 7408 alunos.

O 2.º ano de escolaridade é um dos três em que mais estudantes chumbam. “Os agentes intervenientes em contexto escolar (escola, pais, comunidade científica e demais figuras de destaque no panorama educativo) têm o dever de promover espaços de reflexão e esclarecimento sobre as estratégias escolares e a forma como os alunos são acompanhados”, defende Liliana Pascueiro. E também “deve ser tido em conta o efeito da retenção no percurso escolar futuro da criança, ponderando-se aspectos positivos e negativos de tal procedimento, nomeadamente face à real aquisição de conhecimentos e aos efeitos nefastos da retenção, particularmente no efeito cumulativo que esta origina ao longo do processo educativo”, alerta.

Os números falam por si. O desfasamento etário por ano de escolaridade não pára de crescer ao longo dos anos de escolaridade, começando por afectar 18,1% dos alunos inscritos no 2.º ano (17.399) e atingindo 30,7% no 12.º ano (18.815).

Milhares fora da escolaridade obrigatória

Por nível de ensino, e tendo em conta a taxa real de escolarização, tal é responsável, em grande parte, por esta proporção ser de apenas 82,5% no ensino secundário, quando a escolaridade obrigatória se alargou até ao 12.º ano há já quase uma década. A escolaridade obrigatória vai até ao 12.º ano desde que os alunos não tenham excedido os 18 anos, passando por isso a serem considerados adultos e podendo ser deslocados para o ensino nocturno, entre outras consequências.

Teresa Seabra previne que “os dados disponíveis não permitem discriminar” qual o peso do “insucesso e do abandono escolar” nas razões que levam alunos entre os 15 e os 17 anos a não serem encontrados no ensino secundário, sendo esta a faixa etária “normal” de frequência deste nível de ensino.

No ensino secundário, parte do insucesso escolar fica a dever-se a escolhas que podem não adequar-se ao perfil dos jovens, refere, por seu lado, a investigadora da UNL. “É um momento de indecisão que, para alguns alunos, se traduzirá em percursos escolares pautados pelo desinteresse e desmotivação, e para outros de reorientação das suas escolhas.” Por isso, Liliana Pascueiro adianta que, “embora os serviços de orientação escolar e profissional prestem um serviço notório neste campo, talvez seja ainda necessária uma melhor articulação entre técnicos, famílias, alunos e rede escolar ao longo do percurso escolar das crianças e jovens para que este momento de decisão seja tomado em consciência e com a informação necessária”.

Fonte: Público

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O que a Escola deveria aprender antes de ensinar


 
A EDUCAÇÃO, vista pela Filósofa Viviane Mosé. Mais do que formações necessárias à progressão na carreira docente (algumas... francamente!), professores, responsáveis pelas direcções das escolas e pais, assistam a este vídeo. Já tem uns anos e julgo até que já o publiquei, mas vale a pena repeti-lo para ajudar a perceber o monumental erro estratégico que os políticos andam a cometer. Erros que vão ser pagos em um futuro próximo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O secretário tem o dever de explicar, publicamente, o desaparecimento das actas da Escola do Curral


Regresso à Escola do Curral das Freiras e, naturalmente, ao caso do Professor Joaquim José Sousa. E porquê? Porque este assunto incomoda-me e deveria incomodar toda a classe docente. Também porque, cada dia que se passa, pelo que vou lendo, se adensam as características maquiavélicas que não só marcou a retirada da autonomia à citada escola, como resultou em um processo ao professor em causa que determinou uma suspensão de seis meses sem salário. Nos próximos tempos este será, estou certo, um assunto incontornável, porque existem todos os indícios de uma feroz perseguição. Pelo menos até que a secretaria regional da Educação consiga provar o contrário. Aí, render-me-ei aos factos passíveis de tamanha punição.



A verdade é que não consegue. Tem jogado no tabuleiro do silêncio, na cumplicidade de muitos outros silêncios e em uma propaganda de permanente auto-elogio através dos mais diversos canais. É público e notório. Aliás, são conhecidos os meios para camuflar as atitudes miseráveis e inqualificáveis. Na sociedade há especialistas em demonstrar aquilo que não são. 

Ora, no caso específico do processo ao Professor Joaquim Sousa, não deixa de ser espantoso o misterioso desaparecimento das actas das reuniões da escola, as quais acabariam por clarificar posições e provar toda a alegada trama do processo. Sem as actas o acusador ficou, como quis e entendeu, livre para a imputação da culpa e, a defesa, sem os fundamentais meios de prova. Naquilo que é essencial à avaliação do processo tais actas seriam determinantes. Segundo li, a solicitação das actas foi requerida há 700 dias e moita! Não existem, desapareceram e não consta que alguma acção tenha sido desencadeada no sentido de apurar as razões do desaparecimento. Se assim é, deveria tratar-se de um caso de investigação criminal. Desapareceram? Pela mão de quem? Ou a mando de quem? Mas também aí a opacidade é total.

Mas, pior ainda, o comportamento dos agentes do processo é tão grotesco, que desejam ganhar administrativamente aquilo que perderam nas razões substantivas. E porquê? Não podendo contrariar a defesa do Professor Joaquim Sousa, alegam que a "contestação" ao processo instaurado foi concretizada 24 horas depois do prazo. A Relação foi sensível a este espúrio argumento, espero, no mesmo sentido, que o Supremo considere, então, que a sanção aplicada (seis meses sem salário) seja revertida, porque consta ter sido aplicada quando o processo, alegadamente, já prescrevera. Mas, atenção, não alinho nesta questão de datas, de uma e de outra parte, mas nos comportamentos assumidos nas causas que deram origem a esse processo. Certo é que os patamares iniciais da Justiça, genericamente, conferiram razão e mérito ao Professor, porém, os seis meses sem salário oxalá não fique marcado pelas tais 24 horas de atraso. Se assim não acontecer ou a prescrição não for considerada, tudo ficará ABAFADO pela mesquinhez que o processo envolve.

Pela experiência que levo na vida, quem assim se comporta, no exercício da política ou na vida de todos os dias, quem não tem um pingo de humildade para assumir os erros, inclusive, capacidade para pedir perdão, quem se remete na imunidade para não prestar declarações à Justiça, pode conviver bem com a sua consciência, pode dormir profundamente, mas tarde ou cedo estampar-se-á. Já vi alguns senhores cá da paróquia, durante algum tempo, a gozar os seus momentos de uma fama fabricada, que julgavam ser muito duradoura, e quando deram por si acabaram por perceber que ninguém lhes liga e leva a sério. Então, na política, há dezenas de ilustres desconhecidos! 

O processo contra o Professor Joaquim Sousa, notem os leitores, pessoa com quem falei, pessoal e circunstancialmente, talvez os dedos de uma mão cheguem, deixa-me com um sentimento de revolta, porque ele é, claramente, uma vítima de um poder que não aceita que outros estejam no palco do reconhecimento público nacional, chamem-se Joaquim, Manuel, Fátima ou, simplesmente, Maria. Revoltam-me os silêncios, mexem comigo quando vejo alguém ser, injustamente, neste caso a avaliar pelos factos conhecidos, trucidado na sua vida profissional, pessoal e familiar, perante a mudez de uma significativa parte da classe ou da população. Daí este texto, motivado por uma entrevista que li (aqui).

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Antes de começar já está em falência


"O que é importante não é a inovação, mas o inovador. As políticas públicas que hoje, mais do que nunca, precisamos, é termos uma reforma profunda do sistema educacional (...) o papel do professor será sobretudo de tutor, de ajudar a resolver problemas (...) será necessário fazer uma aposta nas qualificações que cruzem o mundo físico e o digital (...) os que conseguirem navegar melhor nestas duas realidades serão os melhores profissionais" - Engenheiro Carlos Moedas, ex-Comissário Europeu.


Por estes dias, naquilo que designam por "regresso à escola" (expressão que tem muito que se lhe diga), multiplica-se, no espaço escolar, o desfile de políticos com funções de governo. A propósito da pandemia ou não, esforçam-se por reafirmar os desígnios do sistema, os "notáveis esforços" feitos para que tudo esteja em conformidade com a "normalidade". Para onde caminham não dizem porque, talvez, nem saibam. Certo é que a escola está aberta, os alunos, os professores, os administrativos e restante pessoal estão lá para que tudo funcione com "tranquilidade". "Normalidade e tranquilidade" têm sido as duas palavras-chave do pensamento político. Um pensamento muito pobre, sublinho com toda a convicção, porque foge, como o diabo da Cruz, daquilo que deveria ser o pensamento estrutural e portador de futuro. Isso não se discute, porque, como está, assumem pela sua práxis, está bem e recomenda-se!

São tantos, de investigadores a autores de diversos sectores e áreas, passando por professores, que argumentam sobre o grosseiro erro deste sistema, velho, caduco, inoperante e desgastante, mais próximo do século XIX do que este século exige, mas teimam em continuar, cegos e surdos, fechados na sua redoma, incapazes de se deixarem fecundar pelas ciências, porém sempre altivos e transbordantes de uma "sabedoria" bacoca.  

E, de vez em quando, lá vem mais um colocar o dedo na ferida. Agora, foi o insuspeito e respeitado Carlos Moedas (PSD) dizer que se torna necessária "uma reforma profunda do sistema educacional" e que o "papel do professor será sobretudo de tutor, de ajudar a resolver problemas". Colocou tudo em causa: os currículos, os programas e a parte PEDAGÓGICA. Não falou da pandemia, enalteço, falou daquilo que é profundamente importante para o futuro do país, para a sua competitividade e, por extensão, para o aproveitamento das vocações, dos sonhos, felicidade de quem aprende e de quem motiva a aprendizagem.

Tenham consciência que esta escola está simultaneamente viva e morta. Viva porque acontece (abre todos os dias) e morta porque não se coaduna com as exigências do nosso tempo. Todavia, por estes dias, sempre altivos, fazem acreditar que este é o melhor dos mundos. Já não há pachorra! Uma vez por outra, digo eu, convém ler umas coisitas e sobretudo PENSAR. Lembrem-se de Carlos Moedas: "(...) Os políticos não podem criar emprego, o que cria é esta inovação disruptiva" (disrupção: que acaba por interromper o seguimento normal de um processo). Ora bem, como tudo permanece igual, com ou sem COVID, este será mais um ano perdido. 

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Aprender a cidadania na escola? Sim!


A construção da cidadania é contínua numa sociedade humanista e democrática. Inspira sistemas educativos modernos, e radica no direito universal à Educação e à igualdade de oportunidades. No nosso país, a Educação para a Cidadania nasce dos princípios orientadores da nossa Constituição, consagrados na Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986. Mas não só. Cumprir o imperativo da cidadania no quotidiano, é estar de corpo inteiro em todos os acordos, convenções, declarações, recomendações, agendas, pactos, desígnios internacionais, pelo combate a todas as formas de discriminação e desigualdade que Portugal assume, enquanto país membro de múltiplas organizações e signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 



Na escola, a Educação para a Cidadania visa mobilizar conhecimentos de todas as disciplinas, desenvolver competências transversais – os chamados “soft skills”, tão importantes para a vida - de preferência em trabalhos de projeto, à volta de temas aglutinadores, saídos da observação da realidade envolvente, com a finalidade de consciencializar, desenvolver a capacidade de observação, a cooperação, a liderança, o espírito crítico, a participação, tendo em vista a promoção de uma cultura cívica de tolerância e respeito pela diferença, em suma, a formação global do aluno enquanto cidadão, e membro da sociedade, elevando-a para níveis superiores de conhecimento, liberdade, tolerância e justiça. 

Uma breve consulta ao sítio do ME fornece todo um rol de temas à volta da Cidadania, adaptados aos diversos ciclos de ensino, que gravitam na esteira dos direitos humanos: o combate ao discurso do ódio, o desenvolvimento sustentável, a educação ambiental, as dependências, a prevenção da violência, os comportamentos abusivos, a educação intercultural, etc., etc. Quando nos debatemos com um reacender de conflitos de origem racial, até com manifestações à Klu-Klux-Klan, a existência de um abaixo-assinado contra a disciplina de Educação para a Cidadania, cujos subscritores incluem um ex-Presidente da República, um ex-Primeiro Ministro e um ex-Ministro da Educação é deveras inquietante! 

É um facto sermos uma sociedade conservadora, na melhor tradição patriarcal judaico-cristã, para quem as questões ligadas à sexualidade e identidade de género, os direitos da mulher, a diversidade étnica, etc., aparecem ainda rodeadas de tabus para alguns. Atente-se num certo discurso partidário emergente… Talvez não se tenha feito ainda uma reflexão factual sobre o passado histórico de um país pontuado por momentos efémeros de conquista, expansão e império colonial, apogeu, glória e declínio, e ainda persistam ideias passadistas de Pátria… 

Talvez precisemos questionar o nosso relacionamento com a diversidade. A começar pela múltipla diversidade cultural ibérica de onde nascemos, adicionando o nosso passado colonial, a ligação aos novos países da lusofonia, fonte de riqueza e diversidade cultural. Desenvolvemos com eles uma atitude multicultural, em condições de igualdade e equidade? Diz quem sabe, estar a inclusão do “outro”, do culturalmente diferente, sem desconfianças, reservas ou preconceitos, condicionada a um maior ou menor sentimento de insegurança do nosso processo identitário… Será? 

Uma sociedade só evolui e cresce em termos de desenvolvimento humano e cultural, para patamares superiores de justiça e democracia, quando é capaz de se confrontar com os seus traumas e pecados, exorcizar os seus fantasmas, superstições, crenças e medos, interpelar dogmas e mitos, desocultar os esqueletos no armário, que um vetusto percurso de quase nove séculos de História sempre acumula e reproduz. A Educação para a Cidadania ajuda! 

Júlia Caré

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A abjeção de eterno retorno


Por estatuadesal
Fernanda Câncio,
in Diário de Notícias,
05/09/2020


Desde 1984, quando se decretou que devia haver educação sexual na escola, que periodicamente surge um escândalo fabricado seguido de manifesto para que tal não suceda. Nunca tínhamos era visto um ex presidente e um ex PM subscreverem a ideia de que a discriminação só se combate se os pais deixarem.


Em 2004, decidiu-se em França que na escola pública os alunos menores não podem comparecer ostentando símbolos religiosos. Anunciada sobretudo como uma proibição do véu muçulmano, a decisão incidiu sobre todas as formas de traje afetas à religião. Nem as meninas muçulmanas podem cobrir o cabelo com véu ou lenço - muito menos usar burqa ou niqab -, nem os rapazes judeus usar quipá, nem os cristãos exibir crucifixos. A lei foi apresentada como uma defesa da igualdade de género e da liberdade das crianças - "a sociedade francesa não pode aceitar atentados à liberdade dos sexos e ao seu convívio", lia-se no relatório de "sábios" que lhe deu origem -, e está em vigor até hoje.

Estranhamente, nunca vimos os habituais paladinos portugueses da "objeção de consciência" dos encarregados de educação face às imposições da escola pública fazerem referência a esta compressão da vontade e das convicções dos encarregados de educação, quanto mais contestá-la ou apresentá-la como "marxismo cultural", "ideologia de género" ou "politicamente correto".

Do mesmo modo, não vimos nenhuma dessas vozes rasgar as vestes quando em 2017 o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu razão à Suíça no processo que os pais islâmicos de duas meninas de 11 e nove anos ali tinham levado devido à multa de cerca de 1300 euros que lhes fora aplicada por recusarem que estas participassem nas aulas - obrigatórias - de natação.

Argumentou o tribunal que o interesse das crianças de terem acesso a uma educação completa deve prevalecer face ao desejo dos pais de terem as suas filhas isentas das aulas de natação. A disciplina de educação física, da qual a natação faz parte, é vista pelos juízes como tendo um especial papel no desenvolvimento e saúde das crianças, observando o acórdão que "a escola desempenha um papel fundamental no processo de integração social das crianças" e que "o interesse dos estudantes em participar dessas aulas não é apenas nadar ou fazer exercícios físicos, mas, sobretudo, participar dessas atividades com todos os outros alunos, sem qualquer exceção quanto à origem da criança ou às convicções religiosas ou filosóficas dos pais."

Convém talvez frisar que o motivo pelo qual algumas famílias muçulmanas - há muitos muçulmanos que não concordam com isso - querem que as filhas cubram o cabelo e de um modo geral permaneçam "cobertas", não participando em aulas de educação física ou natação, é a ideia de que existe uma diferença fundamental entre os sexos, com papéis de género muito definidos, e que as raparigas devem ser educadas de forma diferente e "protegidas" dos rapazes. Quem pensa assim considera ser seu direito inalienável impor essa perspetiva não só às suas filhas como à comunidade escolar, com o que tal implica de exemplo de discriminação - porque crê que as suas crenças religiosas estão acima de tudo. Como se viu, o TEDH rejeitou tal perspetiva, tornando claro que vê o direito das crianças à igualdade, à saúde e ao desenvolvimento pessoal como sobrelevando as convicções dos pais e considera que os interesses dos menores não são sempre melhor representados pelos progenitores, não sendo estes donos dos filhos. Afinal, aquela multa imposta pelo Estado suíço é uma pena pelo dano que infligiram às filhas - aos seus direitos humanos.

Sabemos que este tribunal nunca teve de apreciar um caso em que em vez de educação física esteja em causa uma disciplina que visa especificamente familiarizar os alunos com os princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e contribuir para que sejam cidadãos informados e responsáveis, como se passa com a disciplina portuguesa de Cidadania e Desenvolvimento. Mas em face da decisão citada parece pouco provável que aceitasse o mesmo tipo de argumentos daqueles pais para recusar uma disciplina que visa evitar comportamentos de risco, sensibilizar para as questões ambientais, promover a igualdade de género e a não discriminação e contribuir para o conhecimento pelas crianças e jovens dos seus direitos e deveres.

Falo, claro, do pai de Famalicão que quer ver a sua "objeção de consciência" à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento reconhecida na justiça depois de impedir os dois filhos de a frequentar e vê-los chumbar por faltas não justificadas por esse motivo. O caso, no qual a justiça portuguesa deverá ter em consideração a decisão de 2017 do TEDH, será interessante de seguir. Até porque veremos pela primeira vez tratada nos tribunais uma questão que está sempre a regressar à discussão pública, trazida sempre pelos mesmos - agora com o oportunista apoio de outros - e poderemos finalmente ouvir os argumentos dos que se lhe opõem tão desesperadamente.

Trata-se, como esclarece o progenitor em causa, Artur Mesquita Guimarães, da educação sexual. Porque é que tanto o apavora que a escola fale disso não diz; afirma apenas que é "competência dos pais". Também o manifesto que surgiu esta semana contra a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento repete a ladainha: "No programa da referida disciplina inclui-se ensinamento sobre matéria de opinião íntima pessoal, moral e religiosa. Esta matéria tem sido publicamente anunciada em vista a libertar os alunos de "preconceitos e estereótipos" relativos à questão de género, e alterar "costumes, atitudes e valores" em matéria de sexualidade, assuntos que pertencem à responsabilidade educativa da família e não do Estado."

Mete sexo? É com os pais. Não surpreende ver sob estas palavras as assinaturas de prelados e reconhecidos fundamentalistas católicos, como não surpreenderia ver a de fundamentalistas muçulmanos - os pais das meninas suíças impedidas de nadar assinariam de cruz. Mas encontrar ali um ex-presidente da República (Cavaco), um ex PGR e juiz do Supremo (Souto de Moura) e um ex primeiro-ministro (Passos), todos da democracia e portanto da obediência à Constituição em vigor e à legislação europeia, não pode deixar de chocar.

É que, como se lê na muito resoluta resolução do Conselho de Ministros chefiado por Passos que em 2013 aprovou o V Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e Não-discriminação 2014-2017, "é tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre mulheres e homens, sendo princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa e estruturante do Estado de direito democrático a não-discriminação em função do sexo ou da orientação sexual."

Princípio fundamental e estruturante mas opcional, será? Parece que não: "A prossecução de políticas ativas de igualdade entre mulheres e homens é um dever inequívoco de qualquer governo e uma obrigação de todos aqueles e aquelas que asseguram o serviço público em geral."

Para tal, a resolução, cuja leitura se recomenda a todos e particularmente ao ex-primeiro-ministro que a assinou, privilegia "ações na área da educação enquanto pilar das políticas para a igualdade", nomeadamente "a produção do Guião de Educação, Género e Cidadania destinado ao ensino secundário (...) e que a igualdade de género constitua um eixo estruturante das orientações a produzir para a educação pré-escolar e para o ensino básico e secundário." Mais: reconhecendo que "tradicionalmente a sociedade portuguesa tem revelado alguma permissividade face às discriminações, no que diz respeito à orientação sexual e à identidade de género", anuncia-se como objetivo estratégico "prevenir e combater todas as formas de discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género e promover a sensibilização de toda a sociedade portuguesa para esta problemática."

Poderá Passos, como poderão Cavaco o ex-ministro da Educação David Justino, também signatário do manifesto - e que em 2004, enquanto titular da pasta, defendeu que a educação sexual deveria fazer parte, incluída "num conjunto de questões ligadas à educação para a saúde e cidadania", de uma disciplina obrigatória ao longo de sete anos -, alegar que mudou de ideias. Que afinal as discriminações não devem ser combatidas pelo Estado, que a legislação europeia deve ser ignorada, que a defesa da igualdade na escola é só se os pais quiserem e que se a sociedade portuguesa é permissiva face à exclusão de pessoas, incluindo crianças, por causa da sua identidade de género e orientação sexual, ou se os estereótipos de género continuam a penalizar muito as meninas e mulheres - como a resolução citada reconhece - olha, azar.

Pode Passos, como podem Cavaco e Justino, até defender a "imediata revogação das leis de igualdade de género", à imagem do partido que está a marcar-lhes a agenda. Podem, em inconsciência ou consciência, objetar à Constituição. Podem isso tudo - e nós sentir abjeção.

Jornalista

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Novamente a escola - Apenas uma despretensiosa reflexão


Há muito que me invade o pensamento: em todo o actual "ciclo básico", qual a razão da existência de ciclos (1º, 2º e 3º)? Depois, qual a razão substantiva para uma divisão por turmas?


Norteia-me o pressuposto de provocar o debate. Só o debate inteligente, sério e profundo é capaz de produzir mudança. E são tantos os que para isso podem contribuir. 

Ainda ontem li, no Dnotícias, com muito entusiasmo, pela beleza e qualidade do texto, a crónica do meu amigo Nuno Morna, que trouxe à colação uma série de artigos publicados pelo Le Monde sobre o tema "Le courage de la nuance". Refere no seu texto uma frase de Albert Camus: "Próximos da cegueira devido à polémica, deixamos de viver entre homens, mas num mundo de silhuetas. (...) Abafamos no meio das pessoas que pensam ter a razão absoluta". É isso. E aplica-se em múltiplos campos do debate. Também na escola, onde o aluno não é mais do que uma silhueta. Mas aquela frase fez-me recordar o que li em John Stuart Mill (1859): "A recusa em escutar uma opinião porque se tem a certeza que é falsa, é supor que a sua certeza é a mesma coisa que certeza absoluta". De facto vivemos um mundo onde alguns julgam ser portadores da verdade. Então, políticos, valha-nos Deus! E o que é para eles a verdade? Talvez o comodismo da eleição seguinte, não a geração seguinte. Ora, este posicionamento que deixo para debate, constitui a minha opinião. Só isso. Uma opinião ou uma convicção aberta à comunidade, depois de experiências e muitas leituras.

Começo por questionar a razão da existência de ciclos de estudo? Fará algum sentido, na aprendizagem básica, dividi-la em 1º, 2º e 3º ciclos? O assunto não é novo, eu sei, e até o Conselho Nacional de Educação já sobre este assunto se pronunciou, embora de forma ténue e muito cautelosa. O problema é, portanto, político. E como é político e a comunidade pouco se rala com os assuntos da educação, o seu debate não é considerado prioritário. Fica pela estúpida normalidade de uma enervante centralização do pensamento e da práxis.

Ora bem, quando se acaba com qualquer coisa que faz parte da nossa organização social e que se intuiu como certa, obviamente que se deseja uma outra que se enquadre na necessidade de uma nova resposta que seja amplamente compreendida. Partamos desta imagem: o professor e o aluno dos séculos XIX/XX estavam confrontados com a "sala de aula", com as carteiras normalmente individuais e alinhadas, com a secretária do professor, com o quadro, com os mapas, com o giz, com o silêncio e até com a régua do castigo. O mundo estava confinado à sala e ao pensamento da época. O aluno do século XXI está confrontado não com a "sala de aula", mas com o planeta e com fortíssimas fontes de informação que circulam e o envolvem a todo o momento através da tecnologia. Dois mundos completamente diferentes. E a pergunta é, como encaixar o mundo de hoje nos cubículos e nas convenções de ontem?

Não é possível. Uma escola fechada sobre si própria, que não interage com o mundo, que não deita abaixo os seus muros, que se circunscreve aos programas, aos testes e aos exames, em uma falsa meritocracia, é uma escola condenada, onde o prazer da curiosidade não existe. Quero eu dizer com isto que a aprendizagem é um continuum interligado, de invenção e reinvenção diária e de descoberta e fortalecimento da autonomia individual. A aprendizagem, mais do que um "conhecimento" pontual com a preocupação do teste de avaliação (normalmente, logo esquecido), deve assentar na abrangência da vida, da cultura, da plena formação do ser, porque a escola é formada pelas pessoas que lá convergem e que transportam interesses e sonhos. 

É pois pobre, muito pobre, chega a ser ridículo, cumprir o currículo, centrando a atenção, quase exclusiva, no domínio cognitivo. A vida é muito mais do que isso, do que disciplinas desconexas e assentes em uma segmentação por patamares. Existem outros domínios extremamente preocupantes que não podem ser ignorados: a origem dos alunos, a questão social, económica, cultural e o concomitante domínio emocional. Um fato de tamanho único, compreende-se que poderá assentar bem em uns poucos, mas muito mal na maioria. O que é gerador de infelicidade e de abandono. O insucesso passa a ser, e é, a marca indelével do actual sistema. Infelizmente, a escola está longe de conduzir à felicidade como não tem conduzido à plena construção do SER. 

Portanto, esse continuum devidamente interligado, na incessante busca de um conhecimento alargado, não se constrói com escolas sobredimensionadas (1.000, 1.500, 2.000 e até 2.500 alunos), currículos restritivos e com programas pensados por adultos, em uma centralização que chega a ser intelectualmente obscena, programas sempre acrescentados de mais qualquer coisita, oferecendo boa guarida às editoras, à custa de milhões que saem das algibeiras dos pais e dos cofres públicos. O Estado apenas deve ser o moderador (fiscalizador, também) e, em poucas páginas, definir um conjunto de competências a atingir no final do percurso básico. O resto é à escola, à sua comunidade educativa, à sua autonomia, que deverá pertencer a definição dos caminhos para lá chegar. Convenhamos que não existem duas escolas iguais em todas as áreas e domínios de análise, pelo que é um disparate tratar de forma igual o que é diferente. 

Esse continuum de aprendizagens constrói-se com um novo paradigma organizacional e PEDAGÓGICO. Mas como (?) quase oiço a interrogação de quem me lê. Construindo, é a resposta. Colocando em causa o velho sistema e não copiando ou transferindo experiências já realizadas. Essas apenas poderão servir de inspiração. Para além da não existência de ciclos, não não vislumbro qualquer interesse na existência de turmas ou na separação por idades. Da mesma forma que há famílias com crianças de diferentes idades que coabitam no processo de aculturação e aprendizagens diversas no seio onde se inserem. Trata-se de ver a escola segundo um ângulo diferente que rejeita o "modelo" convencional. Não existe uma resposta, mas várias. Essa postura exige que todos, refiro-me à comunidade educativa, não parem de aprender. O comodismo faz sofrer e mata. Que o digam os educadores. É nesta construção que o professor, mediador da aprendizagem, se torna uma peça fundamental. Não fazem pois sentido a existência de disciplinas, mas sim projectos onde cabem e disparam todos os conhecimentos. 

Um simples exemplo: uma garrafa de vinho como projecto de estudo. Ali acomodam-se a Geografia, a História, a Geologia, o Português, a Química, a Biologia, a Economia, várias outras indústrias, a música, eu sei lá... o que é possível organizar, em famílias de alunos (grupos), o estudo, em conjunto, sob a mediatização dos professores! E quem fala de uma garrafa de vinho, obviamente que pode enunciar muitas centenas de projectos que fogem à peregrina ideia de uma escola de espaços fechados, com disciplinas e patamares de aprendizagem. E com faltas! Tudo está interligado e tudo deve ser interpretado como um desafio. A escolha está entre uma atitude passiva (velha escola) e uma atitude activa (nova escola). É a sociedade que o exige. Se não fosse trágico, daria uma gargalhada com a recente polémica em redor da disciplina "Cidadania e Desenvolvimento". Então as questões da cidadania não são transversais na aprendizagem e trazidas a todo o momento para a formação? Ou dela querem fazer mais uma segmentação sujeita, até, a avaliação e perda de ano? É paranóico o que estamos a assistir.

Finalmente, não deixa de ser curioso que a VIDA real, o mundo laboral, cada vez mais pede trabalho em equipa, isto é, o êxito de uma empresa está directamente proporcional ao sentido de grupo e de pertença. Porém, a escola, no decorrer da formação básica (e não só), fechou-se na sua torre de marfim, como instituição que promove o individualismo, desde as primeiras idades até ao acesso ao superior. É cada um por si. Que raio de paradoxo é este entre a escola e a vida que pede competências! Deixem-se fecundar pelas ciências.

Ilustração: Google Imagens. 

domingo, 6 de setembro de 2020

Dar aulas?


Há algumas designações que considero absolutamente desadequadas no tempo que estamos a viver. Uma delas é o conceito de aula. Lê-se amiudadas vezes: os alunos regressaram às "aulas" ou, então, o professor que diz: "dou aulas". Ora, o conceito de aprendizagem, diferente do de ensino, não se coaduna com o tradicional formato que já alguém caracterizou de "autocarro", isto é, professor à frente na condução e alunos sentados atrás. Ora, o professor que conduz, debitando o manual, com maior ou menor habilidade, tenho por assumido que não cumpre o seu mister. Portanto, "dar aulas" constitui uma expressão que bole comigo, sobretudo quando centro a minha atenção nos primeiros nove anos de aprendizagem básica. No alicerce do conhecimento.



Disse o pedagogo Paulo Freire: "Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo". Esta mediatização, em um primeiro momento, pode designar-se ou centrar-se no professor.

Aliás, confesso que não me recordo o nome do autor, mas fiquei, desde a minha formação inicial, com a plena convicção que "ninguém ensina nada a ninguém, apenas toco e desperto a curiosidade, a compreensão", daí resultando a aprendizagem e a transferência para outras situações. E trago na ponta da língua uma frase de Georges Gusdorf que, aliás, bastas vezes escrevo: "o mais alto ensinamento do mestre não está no que diz, mas no que não diz". Significa isto o despertar da curiosidade, onde os assuntos, todos, sem excepção, dos menos aos mais complexos, nunca estão terminados visando o teste de avaliação, antes, como enalteceu aquele pedagogo que ainda há dias dele falei, o Rubem Alves, visa a aprendizagem, o "desaprender para aprender de novo, o raspar as tintas com que me pintaram. Visa desencaixotar emoções, recuperar sentidos". É um pouco por tudo isto que aquela expressão "dar aulas" constrange-me, fundamentalmente porque é a antítese do processo de aprendizagem, sobretudo a básica, repito.

Não deixa de ser curiosa a frase feita e sucessivamente repetida que fala de uma "aprendizagem ao longo da vida", uma aprendizagem contínua, de permanente preocupação pautada pela necessidade de novas respostas, porém, tragicamente, logo na formação básica, é imposta a resposta única, a do manual ou a do professor, obviamente sujeita a avaliação! É, por múltiplas razões, que aprecio a clarividência, pela abrangência e profundidade dos conceitos, o que o Rubem deixou aos professores como mensagem, na sua passagem pela Madeira a convite do Sindicato de Professores (SPM): 

"(...) Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controlo. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado".

Daí que, professor que ensina cumpre o ritual, repete ao gosto da hierarquia, condiciona, não faz da sua acção um exercício de imortalidade. Quem cumpre o superiormente definido mantém os pássaros na gaiola, jamais promove e encoraja o voo. Um pouco por tudo isto trago em memória o ensinamento de André Berge: "Em vez de opor a educação nova à educação tradicional, mais avisado seria opor a educação educativa à educação não educativa". Situo-me nesse espaço de entendimento, de uma educação libertadora e criadora, que conduza à assunção da própria responsabilidade do educando e onde a "disciplina não gere o medo" (Erich Fromm, psicanalista, filósofo e sociólogo - 1900/1980). Hoje, a educação é, genericamente, geradora de medo. 

"Dar aulas" significa que, na tal metáfora do autocarro, o professor é o detentor do conhecimento, o que conduz, inevitavelmente, a apoderar-se do "discípulo". Uns esquecem-se do que aprenderam na sua formação pedagógica, esquecem-se, rapidamente, dos livros que leram e do que escreveram em monografias e em dissertações, pior, esquecem-se que foram alunos e quanto detestavam aquelas "aulas" a pedir "mais paciência que Jó". Há pais chamados à escola porque o aluno, pasme-se, desinquieta a classe porque faz muitas perguntas! E a pergunta, quando o ambiente é criado nesse sentido, pode significar que o aluno é curioso, até pela idade que o impele nesse sentido. De resto, é um absurdo privilegiar a palavra do professor relativamente à do aluno. O professor, em todas as circunstâncias, deveria assumir o importante papel de mediador da aprendizagem, jamais o de figura central, o protagonista em palco. A personagem principal é o aluno.

Assisti, no Funchal, há quatro, cinco anos, a uma palestra do Professor José Pacheco, palestrante em todo o mundo, hoje "exilado" no Brasil, onde desenvolve um notável trabalho. A determinada altura contou que, nos primeiros anos de carreira docente, planeava de forma irrepreensível as suas "aulas". E mesmo assim, com todas as preocupações e olhares atentos para a diversidade dos membros da classe, muitos não aprendiam. Este facto levou-o a concluir: "se eu preparo ao pormenor as "aulas" e, mesmo assim, eles não aprendem, então, posso deduzir que eles não aprendem porque eu "dou aulas". Simples.

Há um livro de Pierre Vayer, "Objectivos da Educação Psicomotora", no qual ele interroga-se: "o que é preciso fazer para que a criança se interesse". Ficou-me esta questão de princípio: "para aceitar a criança o adulto deve, primeiro, aceitar-se a si próprio". O problema é que o adulto, neste caso professor, tem um programa a cumprir com centenas de itens, e na condução do "autocarro" ele sabe que tem duas ou três paragens obrigatórias que o obrigam a uma avaliação do percurso. Avaliação que ele sabe ser dos alunos, mas também do seu próprio desempenho, no quadro de um sistema onde o tempo foge para cumprir determinações, algumas abstrusas, e sobre as quais não tem voz (mesmo que tivesse!). Portanto, "aceitar a criança" não passa de uma miragem. Resta-lhe "dar aulas" ou, melhor dizendo, "vender aulas" a troco de um salário mensal. Alguns furam as regras, é certo, mas correm o risco de um processo disciplinar. A hierarquia política não gosta de quem saia do "anormal".

Certo é que, por este caminho, nem a escola prepara para o mundo do trabalho, tampouco consegue formar cidadãos críticos e disponíveis. Por um lado, porque a escola está desfasada do mundo real; por outro, porque, através da "aula" bloqueia o pensamento, o talento, o interesse e o sonho. O drama de tudo isto aqui aflorado, tanto que há a dizer sobre isto, é que os professores ainda não deram conta, parece-me, que estão "reduzidos a meros técnicos e supervisores na fila da assembleia da educação, isto é, que são objectos em vez de sujeitos da história", salientou Lipman (2004). 

A Escola que deveria constituir um ponto de partida continua, assim, a ser um ponto de chegada. Há um livro de Pascal Paulos com o título: "A Escola faz-se com pessoas". Pois é. Faz-se, também, com utopias, não messiânicas, mas na esteira do Filósofo Agostinho da Silva, sempre na "busca incessante, inquietante, da Pessoa-Indivíduo e da Comunidade, que são os alicerces da Sociedade livre e civilizada". Valha-nos o facto de, em Portugal Continental, florescerem muitas iniciativas no sentido que aqui explanei.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 5 de setembro de 2020

Pela obrigatoriedade da Educação para a Cidadania


Sandra Maximiano, 
in Expresso Diário, 
04/09/2020

Cerca de 100 personalidades, 88 homens e 13 mulheres, maioritariamente de direita, de uma classe social privilegiada, entre as quais o ex-Presidente da República Cavaco Silva, o ex-primeiro-ministro Passos Coelho e o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, assinaram um manifesto a apelar à não obrigatoriedade da disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Para os signatários, os pais têm o direito à liberdade na educação dos conteúdos da disciplina que advogam ser ideológicos e o Estado deve apenas cooperar e não impor esta educação.



Eu até consigo nutrir alguma simpatia conceptual por aqueles que defendem a liberdade de escolha individual e se levantam contra um Estado extremamente intervencionista e paternalista no que respeita à formação e educação dos cidadãos em matérias éticas e morais. Conceptualmente, a ideia de o Estado poder impor através da fixação de um currículo escolar o conceito de bom cidadão pode ser assustador, sobretudo quando pensamos em regimes totalitários. Mas a este nível, tenho dois pontos a ressaltar.

Primeiro, vivemos em democracia, e, não sendo menos verdade que existe uma certa escolha curricular para a disciplina, os conteúdos resultaram do trabalho de um grupo multidisciplinar com um vasto conhecimento científico de áreas sociais e exatas. A definição de conteúdos é consistente com o ensino da cidadania em sociedades democráticas e modernas com uma visão global dos problemas mundiais. Mais, em democracia o debate sobre os conteúdos da disciplina e a importância destes é certamente dinâmico e pluralista e deve seguir o contexto económico, social e ambiental do país e do mundo.

Segundo, a construção da cidadania na sociedade tem sido sobretudo assente em decretos de leis e imposta por penalizações. Veja-se o mais recente exemplo das multas para as beatas de cigarro deitadas para o chão. Estas multas fazem apenas sentido porque há ainda uma grande maioria de cidadãos que não respeita o espaço público nem o meio ambiente, havendo assim a necessidade de alterar este comportamento através de uma atitude mais coerciva. No entanto, idealmente, o que se pretende é que os cidadãos modifiquem o seu comportamento de uma forma mais intrínseca e estrutural onde o recurso a penalizações seja cada vez menos necessário. Para isso, a educação formal e informal, nas escolas e em casa, é extremamente importante. Se colocarmos numa balança estes dois “veículos de construção de valores de cidadania”, ou seja, a educação, por um lado, e as leis e as penalizações, por outro, a educação é certamente o meio que melhor defende a liberdade de escolha.

No que respeita aos conteúdos da disciplina, estes são latos e abordam temas como direitos humanos, educação ambiental, interculturalidade, participação cívica, igualdade de género, violência doméstica, segurança rodoviária, voluntariado, literacia financeira e sexualidade. No entanto, parece-me a mim, que a questão mais fraturante se prende com a questão da sexualidade. Como o professor universitário e antigo reitor da Universidade Católica Manuel Braga da Cruz, mentor do abaixo-assinado, disse ao Diário de Notícias, “eu não sei o que é o Estado a fazer educação sexual. Mais, afirmou ainda que “os pais consideraram que a educação sexual e de género, que não são propriamente assuntos de uma educação para a cidadania, são de grande sensibilidade moral e até religiosa”. Esta visão da disciplina é bastamente redutora, ideológica e totalitária.

Os pais, ao imporem a sua posição baseada num dogma religioso deixam espaço aberto para que se possa recusar o ensino de outras matérias, como por exemplo, o ensino do evolucionismo que contraria as crenças criacionistas. Não se deve restringir conteúdos porque estes chocam com dogmas religiosos ou outras crenças, o que se deve fazer é considerar práticas de ensino inclusivas e respeitadoras. A fé e a ciência não têm necessariamente de estar em conflito e não cabe aos professores criarem esse conflito e imporem escolhas. No que respeita ao evolucionismo, por exemplo, os estudantes não precisam de ser obrigados a acreditar que os humanos se desenvolveram de outras espécies, é preciso apenas que entendam porque é que os cientistas apoiam tal teoria e qual a evidência na qual os cientistas fundamentam a visão. Este é o tipo de ensino que permite abordar questões fraturantes de uma forma plural e justa.

Ensinar questões de grande sensibilidade moral e religiosa pode não ser tarefa fácil, mas o que é perigoso é transformar o ensino numa educação à la carte, onde aos pais seja permitido restringir os horizontes dos filhos. Permitir aos pais a objeção de consciência tornando a disciplina facultativa cria grandes injustiças para os jovens. Nem todas as crianças nascem numa família privilegiada, com disponibilidade de tempo para educar e com a capacidade para abordar determinados temas. Cai-se no perigo de muitos pais, sem perceberem a fundo quais são os conteúdos da disciplina, se sentirem chocados com um ou outro tema que pode ser mais sensível em termos religiosos e então impedirem o acesso aos seus filhos a conteúdos estruturantes. Assusta-me pensar nas famílias com baixa educação escolar e poder económico, que vivem em localidades mais isoladas onde o papel da religião é muito fundamental, mas que pode obscurecer a escolha destes pais. Se ter o Estado a escolher pode ser assustador, ter o padre da aldeia a escolher parece-me a mim bastante mais tenebroso.

Por último, há quem ressalte o perigo de os conteúdos da disciplina serem políticos. É verdade que o são. Mesmo os temas que aparentemente podem não levantar qualquer celeuma são políticos. Veja-se o caso do voluntariado. A promoção da atuação voluntária constitui uma das formas de construção de uma cidadania ativa e participativa, fortalece a integração das classes, promove a igualdade e a inclusão e ajuda os voluntários no seu processo de crescimento e realização pessoal. No entanto, apesar da importância do terceiro setor, para alguns, o seu crescimento pode implicar a diminuição da ação social do Estado.

A meu ver, o facto de os conteúdos serem políticos intensifica a importância da obrigatoriedade da disciplina. O debate de ideias e o pensamento crítico não deve estar apenas acessível a elites. A sobrevivência e crescimento da democracia, nomeadamente o combate à abstenção, a maior transparência na condução de políticas públicas e a diminuição da corrupção estão dependentes do desenvolvimento de uma sociedade educada e participativa.

Sou uma das subscritoras de um manifesto em defesa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento como estruturante e obrigatória no ensino básico e secundário. O manifesto foi dinamizado pela Helena Ferro de Gouveia, e conta com o apoio da Susana Peralta, Ana Gomes, Maria João Marques, Teresa Violante, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Teresa Pizarro Beleza, Daniel Oliveira, Alexandre Quintanilha, Catarina Marcelino, Miguem Somsen, entre outros apoiantes de diferentes esferas profissionais.

O facto de subscrever a obrigatoriedade da disciplina não significa que ache que o papel dos pais na educação para a cidadania não deve ser fundamental ou até mesmo o mais fundamental. Mas choca-me a arrogância intelectual das elites que se esquecem que a liberdade de escolha só existe verdadeiramente numa sociedade educada e informada.

As crianças quando nascem não escolhem o meio social, económico, as crenças religiosas, o partido político, o clube de futebol, nem se querem ser vegetarianas ou não. Os pais, como tutores, imputam a sua visão sobre o mundo, as suas preferências, muitas das vezes de uma forma totalitária e absolutista. Esta disciplina não pretende fechar visões, muito pelo o contrário, oferece aos jovens a possibilidade de crescerem para além da família, como seres individuais e com uma participação ativa em democracia.

Nota
Uma opinião para debate. Pessoalmente, concordo com  esta posição.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

"O Homem não é completo senão quando joga" - Schiller


Há dias o Dnotícias publicou, sem qualquer comentário (nem era preciso), uma lista de material solicitado por um estabelecimento de aprendizagem da Região. Não me interessa saber se é público ou privado. Até porque, com maior ou menor exigência, o problema é o mesmo. Já vi uma lista de uma escola pública onde era pedido material "Caran d'Ache" que, segundo creio, não é nada barato! A questão é outra. Aos quatro anos de idade as preocupações de aprendizagem terão de ser outras, mais enriquecedoras e de menores encargos.


Guardo do saudoso Professor Rubem Alves (1933/2014) aquela ideia do "professor de espantos". A profundidade desta designação está muito para além do significado das palavras que a compõem. O "professor de espantos" ensina a pensar, cria na criança a curiosidade e, portanto, esse deve ser o objectivo da educação... criar a alegria de pensar, salientou Rubem Alves. "Quando o professor provoca a curiosidade da criança, ela pergunta, quando o professor manda, já estragou (...) a missão do professor não é dar respostas prontas, a sua missão é a de provocar a inteligência, o espanto, provocar a curiosidade (...)". Infelizmente, não é assim. Logo nas primeiras idades, a lista de material, a mochila ou o trolley pesam... pesam ainda mais, nas carteiras dos pais.

Pois, é o maldito programa, definido por alguns  adultos de conhecimento débil, de adultos que não escutam a voz dos investigadores, de adultos que têm a desfaçatez de complementar as suas políticas, afirmando que tudo é feito colocando a criança no "centro das políticas educativas". Que grosseira mentira! 

Ora, aquela lista apresentada por essa escola, semelhante a tantas outras listas de material, constitui a prova da falência de um pensamento adequado às verdadeiras necessidades do desenvolvimento das crianças.

Desde logo esquecem-se, intencionalmente, do importantíssimo acto de brincar e da descoberta, porque brincar é estruturante a todos os níveis. Tenho presente Luciana Leiderfarb em um artigo publicado no Expresso: 

"Bem-vindos à nova era, a das crianças que não têm tempo para brincar. E a dos adultos obcecados por ocupar-lhes os dias. Que mundo é este onde a brincadeira se tornou indesejável?". 

Nem mais, logo aos 3/4/5 anos matam a vivência de uma infância que não volta mais. Tudo porque existe uma absurda pressa em "ensinar", não sei bem o quê, quando no jogo infantil está lá tudo o que é fundamental. Como Gross (Les jeux des animaux - 1902) mostrou, "o jogo prepara a vida séria, como um projecto de vida séria que esboça, com antecedência, essa vida. Pelo jogo a criança conquista, pela primeira vez, a autonomia, a personalidade e até os esquemas práticos de que a actividade adulta terá necessidade".

De facto, vivemos um tempo de iliteracia motora de péssimas consequências. Em 2016 escrevi um texto subordinado ao título: "Andam a matar a importância de ser criança e de brincar". Transcrevo uma parte: 

“(...) As crianças são dotadas para brincar, é o seu estado natural. Precisam de ser perseguidas, de perseguir, lutar, correr, esconder-se, inventar. E a sociedade faz um esforço para as ter quietas e em silêncio”, comenta o especialista Doutor Carlos Neto. Num quadro de quase permanente institucionalização, em que os mais novos passam na escola quase tantas horas diárias quanto um adulto no trabalho, a configuração do seu tempo livre nesse espaço revela-se determinante. E a escola “ainda trata o recreio como algo avulso ao processo de ensino”, sem perceber que “o tempo para brincar deve ser bem estruturado e encarado como um contributo para aprender (...) No jardim de infância a situação é semelhante. Em Portugal, de Fevereiro a Maio — a estação invernal — as crianças passam apenas uma média de 10,8% do seu tempo em espaços exteriores, mais apetecíveis para a brincadeira livre. Este é um dos dados que constam do estudo “Interação Criança-Espaço Exterior em Jardim de Infância”, da autoria de Aida Figueiredo. A professora da Universidade de Aveiro concluiu ainda que, nas creches observadas, os bebés com menos de um ano só saíram ao exterior duas vezes em quatro meses. O estudo serve também para comparar realidades educativas opostas: se na Noruega, por exemplo, são exigidos entre 24,2 e 33 m2 por criança, em Portugal apenas são previstos 4 m2 por criança.

Quando é que o brincar livremente se tornou a actividade mais rara, menos praticada, na vida das crianças? E quando é que este quadro negro passou a ser encarado como normal? “O que não é normal é não se olhar para as crianças como cidadãos com direitos, isto é, com direito ao tempo livre e a fazer o que é próprio na infância: brincar, correr e dialogar com outros”, frisa Maria José Araújo. Para esta especialista em educação e professora no Instituto Politécnico do Porto, chegámos a um ponto em que o acto de brincar é excedentário e conotado como “fútil” pelos adultos, cuja ideia de competência “passa por estruturar a vida das crianças, não respeitando as suas necessidades nem proporcionando as condições para elas poderem brincar”.

E brincar está longe de ser fútil. “É uma actividade completa, em que as crianças aprendem a decidir, a negociar, a colaborar, a pensar e a criar; descobrem o que querem e como querem fazer; elaboram e exprimem as suas fragilidades e traumas; e começam a ler a realidade social, a interpretá-la e a agir sobre ela”, diz a investigadora. Pelo contrário, o não brincar ocasiona danos profundos no ser humano: “Gera crianças mais obesas, mais sentadas, com menos competências sociais e relacionais, mais isoladas e individualistas, e que em adultos estabelecem relações mais difíceis. (...) Promove, igualmente, uma pandemia de crianças cansadas e stressadas que acabam sendo alvo de medicação". (...) “Estes miúdos vão para a sala de aula brincar, extravasar, porque não lhes foi dada outra hipótese. Ora, uma criança que não brinca não aprende a concentrar-se”

Em um outro texto, de 2018, publiquei a síntese de outros autores que tive o ensejo de os ler e estudar:  

Sublinhou Jean Chateau (1961), "se o jogo desenvolve as funções latentes, compreende-se que o ser mais bem dotado é aquele que mais joga" (...) "para ela quase toda a actividade é jogo, e é pelo jogo que ela descobre e antecipa as condutas superiores" (...) "a fuga leva a criança para um mundo onde ela é toda poderosa, onde pode criar". Para Claparède, in Psychologie de l'enfant e pédagogie expérimentale, "o jogo é o trabalho, o bem, o dever, o ideal de vida. É a única atmosfera em que o seu ser psicológico pode respirar, e, consequentemente, pode agir" (...) Perguntar por que joga a criança, é perguntar por que é criança". Ou então, na palavra de Schiller "o Homem não é completo senão quando joga".


É óbvio que não estamos no tempo da "pedra - ardósia", do "lápis de pedra" e da esponja ou paninho! Os tempos são outros e os materiais também. Claro que isso é entusiasmante. Mas, atenção, nada de subjugar as crianças aos interesses das editoras e das empresas que colocam "coisas" no mercado que, no fundo, pouco ou nada adiantam. É isso que está a acontecer desde há muito! Apenas um exemplo: escrever, todos os educadores sabem, constitui um acto de coordenação óculo-manual. Certo? Pois no jogo infantil são inúmeras as situações que podem ser vividas para desenvolver essa habilidade que depende, em muito, da melhoria da motricidade fina. Tenho um neto que, um dia, tinha ele três anos, regressado da escola, disse-me: "avô, tenho de fazer os TPC". E o que eram? Muitos riscos, ora para a direita, ora para a esquerda, ora na vertical. Questionei-me, para quê, quando são inúmeras as situações, onde, através do jogo, na escola e em casa, é possível desenvolver essa plasticidade motora. O "caderninho de riscos" mecaniza (não torna o gesto doce e adaptado) aquilo que deveria ser uma capacidade adquirida através do jogo. 

Conclusão: aos 4 anos, não tenham pressa. Esqueçam esse condicionador programa e essa avidez de adulto em "produzir" à custa da criança. Tenham presente o texto do Psicólogo Eduardo Sá: "(...) aquilo que me preocupa é que mais escola, sobretudo como ela está a ser vivida, signifique menos infância e quanto menos infância, mais nos arriscamos a construir pessoas magoadas com a vida. Quanto mais longa e mais rica for a infância mais saudável será a adultez (...) os pais estão muito enganados ao pensarem que mais escola significa mais educação (...) neste momento a infância começa a ser perigosamente a escola e, de repente, há toda uma vertente tecnocrática como se o que estivesse em primeiro lugar fosse toda a formação e depois viver a vida. Isto é um absurdo". 

Um lamentável absurdo. Libertem, pois, as crianças, não lhes roubem o tempo de infância. 

Nota
Texto inicialmente publicado no blogue:
www.gnose.eu

Ilustração: Dnotícias - Google Imagens.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Normal anormalidade!

 FACTO

Secretário da Educação garante que o novo ano lectivo arranca na "MAIS COMPLETA NORMALIDADE". Fonte: 1ª página do Dnotícias de 30.08.2020

COMENTÁRIO

Disco riscado

Na mesma edição do Diário leio outros títulos: "Este é um ano dramático", a propósito da restauração (páginas 2 e 3); logo a seguir "Primeiro semestre de 2020 com tendência crescente de pensões" (páginas 4 e 5); nas duas páginas seguintes: "Novo ano lectivo começa com problemas antigos". Isto é, por razões distintas, porém relacionadas com a pandemia, todos estão aflitos menos o secretário da Educação, quando sublinha que o ano lectivo arranca na "mais completa normalidade".

Normalidade porque existem edifícios? Porque existem salas? Porque as cantinas funcionarão? Porque os professores têm os seus horários? Porque há administrativos e funcionários de acção educativa? Se tudo isto confere normalidade ao funcionamento da escola, enquanto instituição de aprendizagem, tudo bem. O problema é a gestão da pandemia! Pois, como se diz no desporto, o futebol é fácil, a bola é que atrapalha! A chatice é a pandemia e as severas limitações impostas em defesa da saúde pública. E sendo assim, NÃO EXISTE, não pode existir a "mais completa normalidade". Até, no plano político, é um grave erro assumir esse quadro, quando tudo está configurado na incerteza. Basta que surjam (oxalá que não) um caso aqui e outro ali e o pânico instala-se. Basta ter presente a primeira fase do surto epidemiológico.

Mas há um outro aspecto que considero da maior relevância voltar a equacionar: o velhíssimo e ultrapassado sistema organizacional que, tal como "a bola que atrapalha", também não facilita a dinâmica educativa neste tempo complexo, não só ao nível da saúde pública, mas também no quadro de uma resposta à sociedade que está a despontar. Este sistema, para quem estuda estes problemas, bloqueia as experiências portadoras de futuro. E esta seria uma óptima oportunidade para mudar, corrigir, desenhar e responder às novas necessidades. E nada disso foi ou está a ser concretizado.

Pior, ainda, e aqui a situação constrange-me: a Autonomia da Região da Madeira. Por que raio o sector educativo continua agarrado às determinações do Ministério da Educação? Se isto por aqui existe para cumprir ou "adaptar", então não é necessário ter uma estrutura tão pesada quanto a que a Região dispõe. Mas que fique claro que a Autonomia permite, sem ferir o quer que seja a Constituição da República, traçar o seu próprio caminho. A Constituição não impede uma nova política arquitectónica dos edifícios, não impede a organização do sistema, não impede que se avance no conceito de turma, de aula, de "ano lectivo" e não impede que tenhamos uma orientação pedagógica distintiva. Tudo isto é possível. Entretanto, do meu ponto de vista, não obsta que a Região deva lutar para, em sede de uma próxima revisão constitucional, caminhar no sentido de "um país, três sistemas educativos", sem que tal coloque em causa os desígnios nacionais. 

O que, porém, constato, é a insistência em um "modelo", que não tem ponta por onde se pegue, daí que não estranhe a "MAIS COMPLETA NORMALIDADE"

Ilustração: Google Imagens.