sexta-feira, 28 de abril de 2023

A pressa que descamba na queima de etapas

 

Por outras razões já aqui trouxe o nome de Peter Drucker. Estávamos nos finais dos anos 80 quando li um seu livro que, a páginas tantas, falava que a década seguinte seria a da "cultura da pressa e do nanosegundo". Articulado que esta sua posição, um outro guru da gestão, Tom Peters, enalteceu que doravante só teríamos dois tipos de gestores: "os rápidos e os mortos". Certo é que a aceleração em todos os sectores foi tal que, aos poucos, veio influenciar a instituição Escola e as correspondentes etapas da aprendizagem. A Escola foi, claramente, contaminada o que fez esquecer que o ser humano é o animal que mais longa infância tem. Por algum motivo será!



Eu diria que trouxeram para dentro da escola as taras da sociedade, talvez melhor dizendo, essa cultura da pressa, traduzida na competição, na meritocracia, no diploma, no quadro de honra que é a desonra de muitos outros, nos prémios pecuniários, nas várias avaliações onde radiografam a criança e nas cerimónias das "capas de fim de curso", logo nas primeiras idades. 

Raros são aqueles que olham de forma crítica para a situação que o sistema está a oferecer. Bastaria que os decisores políticos tivessem alguma formação, mesmo que ténue, sobre os estádios do desenvolvimento cognitivo. Bastaria alguma predisposição para a leitura, entre muitos outros, cito-os de cor, Piaget, Vygotsky, Wallon, Claparéde, Alain, Gross, Montessori, Chateau, Freire, Niza, Pacheco, até aos fundamentais livros publicados em Portugal pelo Professor Carlos Neto, Professor Jubilado da Faculdade de Motricidade Humana. Há centenas de autores, talvez milhares, inclusive portugueses, com uma produção científica respeitadora das necessidades da infância. Trago em memória Jean Chateau (1961), autor do livro A Criança e o Jogo que, logo na página 7, enaltece: "(...) o ser mais bem dotado é aquele que mais joga". Ele não escreveu que o ser mais preparado para as etapas futuras da vida é aquele que "aprende" a ler aos três anos! A leitura tem de ser outra. Talvez, com um pouco de estudo, não se cometeriam tantas barbaridades e atropelos.

Tanto assim é que, há dias, no decorrer de um diálogo, escutei: ela tem apenas dois anos, já conta até 20, identifica as letras do abecedário, já começa a somar parcelas e por aí fora! Porventura já ensaia os primeiros acordes no piano ou na guitarra, imaginei. Creiam que fiquei apavorado com esta cultura da pressa, com o desejo de tornar a infância numa quase obrigatoriedade de saber as ditas "coisas da escola"! E todos ficam contentes, de pais a avós, pela antecipação precoce das etapas. Esta forma de estar e de entender a infância generalizou-se nas famílias, sobretudo nas economicamente mais favorecidas ou estáveis, que corresponde a uma ânsia de queimar as etapas do crescimento e do desenvolvimento. Eu diria que, hoje, as primeiras etapas da infância estão a tornar-se num perigoso "castigo". 

Nem os decisores políticos nem os pais e avós sabem que "(...) há uma correlação muito forte entre as crianças que brincaram muito e adultos empreendedores e felizes", sublinhou o Professor Carlos Neto, para quem "o acto de brincar não é uma coisa menos importante, pelo contrário, deve ser assumido como primordial no desenvolvimento saudável de qualquer criança e de futuro adulto. De uma forma frontal, em 2015, ele chamou à atenção que "(...) estamos a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável", pelo que o seu livro "Libertem as crianças" constitui uma espécie de "grito de alerta para os pais e educadores".

Mais do que saber o abecedário ou de contar até 20, importante é olhar para a iliteracia motora, porque há muito que "o corpo está esquecido na escola", enalteceu Carlos Neto. Há um estudo elaborado por Carol Kolyniak que situa bem este problema: "(...) a prática observada na grande maioria dos estabelecimentos escolares evidencia a centralização das intervenções pedagógicas na construção de abstrações conceptuais, especialmente no que se refere à língua escrita, ao raciocínio lógico-matemático e às ciências exatas, naturais e humanas. Tais práticas vêm recorrendo, quase que exclusivamente, ao trabalho em sala de aula, em situações de relativa imobilidade, exigindo dos alunos quietude e concentração, desde os primeiros anos da escolarização. A progressiva universalização da educação básica vem evidenciando as insuficiências da metodologia de ensino que recorre, quase que exclusivamente, à atividade mental, mantendo os alunos em relativa imobilidade. Tais insuficiências revelam-se nas inúmeras dificuldades de aprendizagem apresentadas por muitos estudantes, que têm redundado em abandono da escola ou, mais recentemente, na conclusão da educação básica sem apropriação de conhecimentos básicos, como a leitura, a escrita e o cálculo aritmético (...)".

E o problema, dramático, é que todos os actuais ciclos de estudo enfermam desta "doença" assente no pensamento curricular e programático. Predomina essa cultura da pressa, a falsa aprendizagem, a ilusão de uma consistente preparação para o futuro, consequentemente a pressão exercida sobre os educadores, os professores, as extensas folhas com dezenas de itens avaliadores e a imposição de relatórios que não servem para nada. Queixam-se, depois, ainda na etapa básica, que muitas crianças, sejam catalogadas de hiperactivas e portadoras de défice de atenção. Pudera, porque aquilo que lhes é exigido é a antítese da natureza das primeiras idades.

Seria bom que não nos esquecêssemos que a educação não é para ontem é para amanhã. Pressa para quê? Respeitem a cadência do tempo.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Chega de vergonha, a comunicação social e a Escola

 

O que se passou na Assembleia da República (25 de Abril) através do "partido político" Chega, não apenas o envergonhou, mas envergonhou a esmagadora maioria dos portugueses, quando foi Portugal que convidou, sublinho, para a nossa casa, o Presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva. Tratou-se de um acto vexatório, de desonra, eu diria mesmo, indecoroso, que nada tem a ver com o exercício da política feito de oposição mas com decência. No dia evocativo da conquista da Liberdade, um partido demonstrou não ter um mínimo de decoro e de respeito o que, para mim, significa ser inferior no quadro da democracia. 



Aliás, se já estavam bem definidas, neste 25 de Abril, as suas atitudes demonstraram, claramente, o sentido da sua existência: um partido de protesto rasca, jamais um partido de proposta séria. 

Bem disse o Coronel Vasco Lourenço, um dos operacionais do 25 de Abril de 1974, que nesse tempo "soubemos travar o ELP" - 1975 (Exército de Libertação de Portugal, organização terrorista de extrema-direita criada por Barbieri Cardoso (ex-subdiretor-geral da PIDE/Direção-Geral de Segurança), hoje, tal como ontem, sublinhou Vasco Lourenço, é povo que tem de travar este tipo de organização que esconde os verdadeiros objectivos e que, portanto, não se enquadra nos parâmetros de uma Democracia adulta e civilizada.

Há tanta forma de discordar, de fazer oposição e de propor novos caminhos. Há lugares e momentos para o fazer, nunca numa sessão solene de boas-vindas a um Chefe de Estado de um País com o qual temos uma História comum e centenárias ligações afectivas e empresariais. A questão é determinarmos por que razão se chegou a este ponto. Por que razão, ainda que escassa, uma determinada percentagem eleitoral segue esta lógica de descontrolada berraria? 


Ora bem, não sendo eu sociólogo, nem tendo estudado, profundamente, esta tendência para a radicalização discursiva e o afrontamento, venha de que quadrante político vier, atrevo-me dizer que tudo isto não surge apenas por um certo descontentamento popular. Obviamente que tem outros contornos vastos e bem evidentes, a avaliar pelo que se passa em vários países, com o despontar de figuras (entre outros, Marine Le Pen, Alice Weidel e Alexander Gauland, Matteo Salvini, Jussi Halla-aho, Viktor Órban, Santiago Abascal, Trump, Bolsonaro), e com ataques e mortes perpetrados por essas "sementes" populistas que varrem não apenas a Europa mas um pouco por todo o Mundo. Daí que, sustento eu, só existam três formas de conter esta escalada, pelo menos no nosso país: 1. através do combate democrático, nas instituições próprias, estabelecendo princípios e valores que a Democracia e a concomitante liberdade jamais possam considerar como linhas ultrapassáveis; 2. com a responsabilidade da comunicação social que deve deixar de ir à procura de "sangue"; 3. preventivamente, a Escola, mais do que exigir definições para esquecer, eduque para a cidadania. Aliás, a tarefa da escola está por realizar. É evidente um vazio, quando estas questões delicadas e profundas não podem ser do tipo toca-e-foge, isto é, falar o mínimo, não debater e não questionar para além de uma certa treta programática. Quando assim acontece significa que estamos a deixar caminho aberto para a incapacidade de ver à distância o que alguns pretendem. Porque LIBERDADE não significa LIBERTINAGEM.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

"O melhor ensino de Portugal é aqui"

 

A frase foi dita ontem pelo Senhor presidente do governo regional da Madeira, no decorrer de uma visita a uma denominada "sala do futuro", no âmbito, li, da criação de "ambientes inovadores de aprendizagem". "O melhor ensino de Portugal é aqui", disse, no ensino em geral, nas artes e no desporto. Fiquei estarrecido face à sua continuada preocupação pela "inteligência artificial"! Fez-me lembrar o saudoso Jornalista Carlos Pinhão (A Bola) na sua página de corrosivo humor e que eu trago sempre em memória.



Na altura do Professor Carlos Queirós, quando Portugal ganhou vários títulos no futebol jovem, escreveu mais ou menos isto: "(…) somos os melhores do mundo em sub-20, os melhores da Europa em sub-18 (…) somos os melhores em subdesenvolvimento".

Pois, há governantes que têm uma tendência para ver uma fotografia 10x15 em 18x24. Pessoalmente tento ver a realidade despida de sentidos político-partidários. Porque com a Educação não se brinca! E eu que sou, visceralmente, contra os "ranking's" na educação, porque só se pode comparar o que é comparável, para este efeito, enquanto mero indicador, podia o Senhor presidente passar os olhos pelos "ranking´s" nacionais para verificar, de uma maneira geral, a posição que os estabelecimentos da Madeira ocupam. Com toda a certeza que não diria o que afirmou.

Mas quanto às declarações eu percebo-as no quadro da propaganda política. Mas isso não deixa de incomodar e de revelar desconhecimento do que deve ser uma política educativa de qualidade e portadora de futuro. A que vivemos prova-se, através de muitos indicadores, que não é. E quanto à tecnologia torna-se necessário repensar todo o processo ao invés de embarcar em modas ou ideias sem a devida sustentabilidade científica. É óbvio que a tecnologia tem de estar presente, não a podemos ignorar, o problema é saber como, quando e porquê utilizá-la. 


Michel Desmurget escreveu A Fábrica de Cretinos Digitais. Entretanto, li um oportuno artigo assinado por António Carlos Cortez, professor, poeta e crítico literário, que transcreve uma parte interessante do livro de Michel Desmurget. Escreve o ensaísta francês, Prémio Femina de Ensaio em 2020: 

"Aos 2 anos as crianças dos países ocidentais consagram todos os dias quase 3 horas ao ecrã. Entre os 8 e os 12 anos, esse tempo aumenta para cerca de 4h e 45 min; entre os 13 e os 18, a exposição é, em média, de 6 h e 45 min. Em termos anuais são cerca de 1000 horas para um aluno do 1.º ciclo; e 1700 para um aluno do 2.º ciclo. Para alunos do 3.º ciclo e Secundário, falamos de 2400 horas anuais, o equivalente a um ano e meio de trabalho a tempo inteiro." Não é suficiente para alterar o plano de transformar as escolas em centros de informática? Não é suficientemente grave? Então há mais: Desmurget confirma (com recurso a gráficos, mapas neuronais, estatísticas) os males que o digital inflige a toda uma nova geração de adictos (drogados) dos ecrãs: os smartphones, os tablets, a televisão, os computadores contribuem para a obesidade, o aumento de doenças cardiovasculares; potencia a agressividade (experimentem proibir o uso do telemóvel a crianças e adolescentes... a reação será sintomática do grau de adição), perturba o regime do sono, promove, ao nível do comportamento, a depressão e a ansiedade, e, cognitivamente, afeta a linguagem (que empobrece), a concentração (6 minutos é o tempo de leitura dos estudantes, hoje), a memorização (o ChatGPT virá cavar mais fundo ainda o buraco negro da memória onde todas as aprendizagens - as poucas dignas desse nome - se afundam e perdem). Não, o digital não é a solução. A solução é o regresso ao livro e à cultura!"

"(...) Escreve Michel Desmurget: "Quanto mais "inteligentes" se tornam as aplicações, mais substituem o nosso pensamento e mais nos permitem tornarmo-nos idiotas. "Para quem ainda insista em defender o digital no ensino, vale esta nota: a própria Microsoft explica que a capacidade de atenção dos seres humanos tem vindo a regredir e a deteriorar-se nos últimos 15 anos. Atingiu-se um valor histórico: a nossa atenção é hoje inferior à do peixe-dourado. Tal se deve às tecnologias digitais, comprova-o, neste livro urgente, o neurocientista."

Em função deste enquadramento, sensato seria debater, jogando para cima da mesa de diálogo, todas as dúvidas, de tal forma que não se tome por único e imprescindível caminho aquilo que as consequências estão a demonstrar. Repito: não podemos ignorar a tecnologia, ela está aí, é fundamental na aprendizagem, a questão é determinar como utilizá-la. Não é por acaso que, nos Estados Unidos, a política dos manuais digitais está a ser abandonada. Explicou o Professor Santana Castilho na sua recente passagem pela Região: "Estudos feitos por centros de investigação e cientistas da neurociência concluíram que o desenvolvimento cognitivo dos jovens que tiveram um grande mergulho nas tecnologias digitais aos 11 anos está similar àquele que há 30 anos as crianças tinham com 8/9 anos de idade" (...) Existem várias razões que, alegadamente, demonstram os efeitos nocivos da adoção desta medida. Uma delas é a situação dos Estados Unidos da América, onde "a experiência dos manuais digitais começou há 8 anos" – e, desde então, tem sido abandonada sistematicamente". Porquê? "Porque o custo relativamente aos manuais em papel disparou, é cinco vezes mais caro. E porque as doenças oftalmológicas aumentaram em 30%", frisou o professor.

Ilustração: Google Imagens

segunda-feira, 17 de abril de 2023

O digital no ensino: uma fábrica de cretinos


Por
António Carlos Cortez *


Não sei se os diretores de escola, os pais, ou muitos professores leram o livro de Michel Desmurget, A Fábrica de Cretinos Digitais (o título do meu artigo glosa o livro do neurocientista francês), mas, num país como o nosso onde quem governa só segue modas e obedece a obscuras razões de interesse nacional para, como é o caso do digital na Educação, obrigar alunos, professores e pais a serem os técnicos de informática que nunca escolheram ser; num país assim, convém jogar forte e chamar os bois pelos nomes: a ditadura digital existe e a reboque dela estamos a perder gerações inteiras de estudantes e de docentes que seriam melhores estudantes e melhores docentes se tivessem tempo para fazer do livro o meio essencial das aprendizagens. Queixamo-nos de se ler pouco em Portugal.



Pois bem, para que tal aconteça, quem ensina precisa de ter três condições fundamentais (as condições do investigador), sem as quais a Escola e a Universidade não existem: dinheiro, tempo e habitação. Dinheiro para comprar cultura livresca; tempo para fruir essa cultura, casas dignas onde ter "um quarto só seu". Escreveu Rousseau: "A questão no ensino não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Para quando, em Portugal, medidas que tornem este país mais livre e menos provincianamente fascinado pelas "luzes impuras" do suposto progresso tecnológico que, se existe, nos põe, a todos, e contrariamente às promessas de uma vida melhor, de gatas.
Quarenta e duas plataformas digitais, eis o que os professores têm de dominar para, nos diferentes estabelecimentos de ensino, serem considerados "professores de excelência". Sumários eletrónicos, portarias, horários, reuniões com colegas e com direções, com pais e com alunos, tudo passa pelo ecrã. Temos o GIAE, o SIGAE/ IGA; ele há o site da DGE, o Extranet e o IAVE; ele é o MEGA (manuais escolares) e o portal dos Recursos Humanos; temos o DGEST/Recorra e o DocGest; não faltam o SIIESTE (edifícios escolares) e o SISE (Segurança Social); e para assuntos relacionados com o acompanhamento psicológico dos alunos, vamos ao Psicólogos POCH e para matricular os estudantes vamos ao Portal das Matrículas; para compras públicas o VORTAL e, se ainda se lembram de bibliotecas, temos o SIRBE... Enfim, a lista é longa, o tempo para ensinar, de facto, é pouco.





Dizemos que não há uma "cidadania ativa". Constatamos que se lê pouco ou nada neste pobre país, que é um país pobre. Como haver consciência política, cidadania ativa, gente culta e, por isso, mais exigente consigo e com os outros, com os governantes e empresários, se tudo, hoje, está de cabeça caída por sobre os ecrãs e não são poucos os escuteiros que pugnam pelo computador em vez do livro? Isso é especialmente verdade no campo do ensino. Mas quem defende o computador, o manual digital, a parafernália dos ecrãs, leu Michel Desmurget? Não? Aqui ficam, então, alguns excertos que deveriam fazer soar os alarmes nas escolas e nas universidades, nas famílias e nas empresas.

Escreve o ensaísta francês, Prémio Femina de Ensaio em 2020: "Aos 2 anos as crianças dos países ocidentais consagram todos os dias quase 3 horas ao ecrã. Entre os 8 e os 12 anos, esse tempo aumenta para cerca de 4h e 45 min; entre os 13 e os 18, a exposição é, em média, de 6 h e 45 min. Em termos anuais são cerca de 1000 horas para um aluno do 1.º ciclo; e 1700 para um aluno do 2.º ciclo. Para alunos do 3.º ciclo e Secundário, falamos de 2400 horas anuais, o equivalente a um ano e meio de trabalho a tempo inteiro." Não é suficiente para alterar o plano de transformar as escolas em centros de informática? Não é suficientemente grave? Então há mais: Desmurget confirma (com recurso a gráficos, mapas neuronais, estatísticas) os males que o digital inflige a toda uma nova geração de adictos (drogados) dos ecrãs: os smartphones, os tablets, a televisão, os computadores contribuem para a obesidade, o aumento de doenças cardiovasculares; potencia a agressividade (experimentem proibir o uso do telemóvel a crianças e adolescentes... a reação será sintomática do grau de adição), perturba o regime do sono, promove, ao nível do comportamento, a depressão e a ansiedade, e, cognitivamente, afeta a linguagem (que empobrece), a concentração (6 minutos é o tempo de leitura dos estudantes, hoje), a memorização (o ChatGPT virá cavar mais fundo ainda o buraco negro da memória onde todas as aprendizagens - as poucas dignas desse nome - se afundam e perdem).


NÃO, O DIGITAL NÃO É A SOLUÇÃO!
A SOLUÇÃO É O REGRESSO AO LIVRO E À CULTURA.


O neurocientista escreveu este libelo contra o digital após observar, criteriosamente, as consequências nefastas dos ecrãs em crianças e adolescentes de diversos países. Contra a alienação de gerações inteiras de jovens (e dos menos jovens, também), Desmurget insurge-se, apelando a que não sigamos o Santo Graal que é hoje o smartphone, a arma dos "sugadores de cérebro", "o derradeiro cavalo de Tróia da nossa descerebração". Escreve Michel Desmurget: "Quanto mais "inteligentes" se tornam as aplicações, mais substituem o nosso pensamento e mais nos permitem tornarmo-nos idiotas. "Para quem ainda insista em defender o digital no ensino, vale esta nota: a própria Microsoft explica que a capacidade de atenção dos seres humanos tem vindo a regredir e a deteriorar-se nos últimos 15 anos. Atingiu-se um valor histórico: a nossa atenção é hoje inferior à do peixe-dourado. Tal se deve às tecnologias digitais, comprova-o, neste livro urgente, o neurocientista.

* Professor, poeta e crítico literário.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Sem comprometimento a Escola continuará aquilo que é!

 

Não é que não me preocupe em demasia. Sinto, sim, o problema com alguma tristeza, mas, simultaneamente, com algum distanciamento. Sei que o poder político tem muita força e mor das vezes reage sem base científica; tenho uma leitura sobre a idiossincrasia das pessoas; sinto que qualquer atitude, primeiro, que sugira inquietação, depois, o debate e a necessidade de mudança, é sempre susceptível de desconfortos em função do rame-rame da vidinha diária; tenho, também, noção que há uma ausência de algum estudo e até de interrogação permanente sobre o que se faz e por que motivo assim se faz; sei, ainda, do peso da palavra de Bernard Shaw (1856-1950) quando enalteceu que "quem pode cria e que quem não pode ensina".



Porque vivo dentro da realidade, de uma designada normal anormalidade, sei que é mais fácil seguir John Stuart Mill (1859): "(...) a recusa em escutar uma opinião porque se tem a certeza que é falsa, é o mesmo que supor que a sua certeza é absoluta", do que escutar, colocar em dúvida, estudar, argumentar e produzir pensamento sobre qualquer assunto. No contexto em que vivemos e no sentido de uma melhor política educativa, não é por isso fácil, serena e humildemente, contribuir para que, na esteira de Édouard Claparéde (1873/1940), a "aprendizagem seja uma resposta" aos desafios de cada momento histórico.

Deixei aqui três sínteses de figuras de uma mesma época. Conjugadas com aquelas são tantas as personalidades, de investigadores a pedagogos, de médicos a psicólogos, que ao longo do Século XX e nos vinte e dois que já se passaram deste século, que abordaram e concluíram, com uma irrepreensível profundidade científica, que a escola tradicional, mesmo que remendada nas margens, não responde ao funcionamento que hoje temos do cérebro. "Com temas autoconclusivos e com todas as conexões cortadas", diz-nos o matemático Salman Khan, só podemos esperar, por um lado, respostas únicas que bloqueiam o acto de pensar, de criar e de submeter-se a essa maravilhosa palavra que é a curiosidade, por outro, grosso modo, repito, só podemos gerar seres dóceis, obedientes e limitados. Disse o Professor Miguel Tamen, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, interpretando o sentimento dos empregadores: "ensinem-lhes a pensar, ensinem-lhes coisas diferentes... não fiquem ansiosos com o mundo real porque do mundo real tratamos nós" - disseram-lhe.

Pois, é isso. Não se trata de "inventar", mas seguir os testemunhos sobre o que esta IV Revolução Industrial nos impele. É a própria OCDE que diz que o desafio para Portugal "é educar para as próximas gerações. Educar para o futuro e não para o passado. Isso significa dar às escolas mais protagonismo para alargar o tipo de conhecimentos, aptidões e competências" - Andreias Schleicher, Director da Direcção de Educação e Competências. Mas há quem pense que tudo isto são tretas, que quem assim diz ou escreve desconhece o que de bom e muito bom se faz nas escolas. É isso que me entristece, porque é a forma simplificada e inútil de, por desconhecimento ou comodismo, manter-se nas águas pantanosas do sistema, ao invés de enfrentar, com coragem e desprendimento, o mar revolto, mas também de oportunidades, que temos pela frente. Se a atitude é a de indiferença, ora bem, resta o pântano, o lamaçal, o atoleiro! É aí que se encontra o estado da educação e que muitos, focados no seu pequeno mundo, não conseguem vislumbrar.

Mas porque há sempre uma brisa de esperança, espero que, após esta justa luta que os professores estão a enfrentar no sentido da dignificação da carreira docente, iniciem uma outra de uma enorme grandeza: a da mudança de paradigma que conduza à ruptura estrutural desta falhada Escola, rotineira, previsível, insuportável, burocrática, cansativa para todos e pretensamente inclusiva, na perspectiva de uma outra geradora de espaço para o talento e o sonho de cada um. Continuarei a lutar por isso, no  meu canto de professor aposentado, embora reconheça a existência de muita ausência de conhecimento e de comprometimento.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Os jovens gritam... os adultos assobiam para o lado!


Julgo ser este o principal destaque do dia na edição de hoje do Dnotícias. Um jovem, o André Barreto, de dezasseis anos, presidente da Associação de Estudantes da Escola Básica e Secundária de Machico, assumiu:

"(...) O principal problema é de saúde mental. A cada dia que passa vemos muitas dificuldades em lidar com as pressões diárias (...) vemos muitos casos de sofrimento psicológico nos corredores, associados à pressão causada pelos testes e exames. Todas as semanas há casos de estudantes que recorrem ao centro de saúde por causa de uma crise de ansiedade ou de um ataque de pânico (...) acho que o principal problema da juventude, neste momento, é a crise de saúde mental (...)"



O jovem gritou perante adultos que continuam, de forma cega, a assobiar para o lado. Adultos que são políticos, professores, pais e avós que, genericamente, resumem aquele drama vivido nos corredores, a uma questão de haver mais ou menos psicólogos. Na escola do André, em vez de um, podiam trabalhar dois, cinco, dez ou vinte psicólogos e o problema, porém, permanecerá. Porque a questão é estrutural, é de pensamento sobre o que deve ser a Escola. Porque não se pode tratar com pensos rápidos feridas profundas e infectadas. O sistema educativo, meu Caro André, gangrenou.

A ferida é organizacional, é curricular, é programática e é pedagógica. Os adultos julgam que a escola está pensada em função das necessidades de formação dos alunos (e da sociedade) mas, infelizmente, não está; os adultos consideram que mais escola (currículos e programas extensos) significa melhor escola, e quanto errados estão; os adultos assumiram que se deve segmentar a aprendizagem por disciplinas, quando tudo na vida está integrado e pertence a um todo; os adultos geraram uma ideia obsessiva pela avaliação, quando a aprendizagem é muito mais, repito, muito mais, do que responder a qualquer coisa num folha de teste ou exame, tendencialmente, como está no manual; os adultos meteram na cabeça a necessidade de seriar, em folhas de Exel, como se isso fosse possível, as vocações, os sonhos e os talentos que cada um transporta. Por uma décima pode um aluno estar no quadro do seu sonho como pode enfrentar aquilo que, decididamente, não deseja para a sua vida. Toda a avaliação comporta um elevadíssimo grau de subjectividade. 


Talvez, por isso, os adultos prefiram continuar a designar as escolas por estabelecimentos de ensino e não de aprendizagem. Um estabelecimento de aprendizagem vive o aluno e fá-lo crescer em todas as dimensões da vida e onde tudo pode ser aprendido, desde os assuntos mais comezinhos aos de enorme complexidade; um estabelecimento de ensino, grosso modo, preocupa-se com uma pressuposta transmissão de conteúdos, os quais, genericamente, em 30 dias, 90% são esquecidos.

Ora, neste contexto, a escola alegria e prazer pelo conhecimento, a escola do integral respeito pelo sonho, está a dar lugar à escola do sofrimento, da angústia, enfim, da doença. Não apenas para os alunos, mas também para os professores: 70% estão em exaustão emocional, 22 000 confessam que tomam medicação a mais e 84% desejam reformar-se antecipadamente. E surgem assim os desencantos com a vida, os comportamentos inadequados e as desistências entre tantas situações muito graves geradoras de infelicidade. Aliás, várias têm sido as intervenções da OMS sobre a saúde mental dos jovens.

E no meio disto, o sistema, que assobia para o lado, baba-se com os resultados ditos fantásticos, atribui prémios de mérito e ignora os milhares que ficam pelo caminho, porque lhes roubaram o sonho: 20 é uma coisa e 19,8 é outra! Como eu te entendo André Barreto. Tu que desejas ser licenciado em Medicina ou em Direito, tocaste no problema que aqueles que têm três ou quatro vezes a tua idade não conseguem ver ou não querem ver. André, só mais esta mensagem: enquanto estudante, não permitas que as taras da sociedade entrem na tua escola, tampouco que outros determinem o teu futuro. Obrigado pela tua consciência. Mas não tenhas grandes dúvidas que a tua luta é a solo. Talvez os teus filhos ou netos possam viver uma escola distante dos problemas que denunciaste.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 1 de abril de 2023

O grande teste ao fim dos exames nacionais em papel


Mais de 500 mil provas de aferição no 2º, 5º e 8º anos serão feitas este ano em suporte digital. Em 2025 serão todos os exames nacionais


TEXTO 
ISABEL LEIRIA 
ILUSTRAÇÃO HELDER OLIVEIRA
Expresso



O primeiro grande teste acontece às 10h de 24 de maio, quando metade dos alunos do 8º ano (cerca de 45 mil) se sentarem em frente ao computador, inserirem as suas credenciais e começarem a realizar as primeiras provas nacionais em formato digital. Uma hora depois, os restantes 45 mil estudantes deste nível serão chamados a fazer o mesmo.

Se fosse como nos anos anteriores, todos deveriam começar a realizar a prova de aferição, neste caso de Ciências Naturais e Físico-Química, à mesma hora e com os enunciados em papel pousados na secretária, de costas para cima, até à indicação para serem virados. Mas a estreia do processo de “desmaterialização” das provas obriga a precauções redobradas. E se tudo correr como planeado, em 2025 já não haverá provas nacionais a realizarem-se em papel, o que colocará Portugal numa situação singular na Europa.

Neste primeiro teste, é preciso garantir que cada aluno tem um computador à sua disposição e que o acesso à prova não falha. A meio deste mês, depois de ouvidos os receios dos diretores, o Ministério da Educação decidiu que as provas de aferição deste ano se iam realizar em dois turnos, evitando uma grande concentração de alunos ligados à mesma hora e diminuindo o stresse para as escolas.

“O grande desafio deste ano é escalar o teste-piloto que fizemos em 2022, com cerca de 6 mil alunos, para 90 mil ao mesmo tempo. Estávamos preparados para isso. Mas como há escolas que podem ter dificuldade de disponibilidade de equipamentos e é a primeira vez, não quisemos correr riscos. Os turnos serão consecutivos e os alunos não se vão cruzar”, explica Luís Santos, presidente do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), organismo responsável pela realização das provas nacionais.


E para evitar que problemas na ligação à internet ponham em causa a realização dos testes, as escolas poderão optar por fazê-las em modo online — o que implica ter uma boa banda larga — ou offline, usando a rede da escola e a ligação a um servidor local ou ainda descarregando para cada PC a prova. O programa está desenhado de forma a bloquear o acesso a outras páginas ou aplicações enquanto os alunos fazem a prova.

Outra interrogação associada a este processo tem a ver com o desempenho dos alunos do 2º ano, com 7 e 8 anos, e que vão ter de responder digitando as palavras no computador. Durante a experiência-piloto não foram reportadas dificuldades pelas escolas, mas a amostra era reduzida e não permite antecipar conclusões, reconhece Luís Santos.

Além dos alunos do ensino básico que realizarão um total de cerca de 500 mil provas de aferição no computador (com exceção de Educação Física e Educação Artística), este ano será também a vez de uma amostra de alunos do 9º testarem a transição dos exames nacionais de Matemática e Português. A ideia é generalizar o processo neste nível de ensino em 2024, ano em que se inicia o piloto para os exames do secundário. Mas aqui, a experiência terá de ser feita noutros moldes, dado o peso decisivo que têm para a entrada no Ensino Superior. Ao contrário das provas de aferição, que não contam para nota.

“No caso do Secundário, não podemos pôr parte dos alunos a fazer os exames em suporte eletrónico e outros em papel, porque isso podia levantar questões de equidade. O que vamos fazer é escolher duas ou três disciplinas, nem com muitos estudantes inscritos, nem com poucos. Será um teste-piloto abrangendo algumas provas, mas em que todos os alunos farão no computador”, antecipa Luís Santos.

TESTAR E EXPERIMENTAR

Ter todos os exames nacionais feitos em suporte digital pode parecer estranho num país onde são conhecidas as fragilidades das escolas em equipamento informático e acesso à Internet, mas os €559 milhões do PRR alocados ao programa “Escola Digital” garantem uma nova vaga de investimentos. Logo à partida, permitiram a distribuição de um milhão de computadores pelos alunos de todas as escolas públicas do continente.

O problema é que um número considerável de famílias rejeitou a entrega de portáteis, algumas por já os terem, outras por não quererem assumir a responsabilidade de pagar por eventuais estragos no equipamento. Segundo a Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, no final de 2022 estavam por entregar 30% dos computadores. No dia das provas, os alunos poderão levar o seu próprio PC e a escola terá de garantir que há equipamentos para quem não os tem, explica o presidente do IAVE.

O sucesso da operação depende de planeamento e testagem. “É importante que as escolas testem procedimentos e que ponham os miúdos a fazer os exercícios no computador, para que não seja tudo novo no dia da prova”, recomenda Luís Santos. No site do IAVE é possível ter acesso e realizar exercícios de disciplinas que serão este ano testadas em provas de aferição (Português, Matemática e Estudo do Meio no 2º ano; Português e História e Geografia no 5º; Matemática e Ciências Naturais e Físico-Química no 8º).

POUPAR TONELADAS DE PAPEL

Há várias vantagens em trocar a avaliação em papel por provas em suporte digital, identifica o presidente do IAVE. Por exemplo, em termos de sustentabilidade: “A pegada de carbono associada não é despicienda. São toneladas de papel, milhares de sacos de plástico, deslocações dos carros das forças de segurança que fazem o transporte dos exames até às escolas”, naquela que é a maior operação policial realizada no país.

Se se somar todos os testes nacionais feitos num ano letivo, o número aproxima-se de um milhão, entre provas de aferição e exames do 9º e do Secundário. E cada enunciado tem várias folhas de papel. “Só com a impressão e distribuição gastamos mais de €1,5 milhões por ano”, conta Luís Santos.

O responsável identifica ainda vantagens relativa à correção das provas: além de ser automática no caso das perguntas de seleção (de escola múltipla, por exemplo), os professores classificadores vão deixar de corrigir provas inteiras, para passarem a olhar para grupos específicos de itens, o que fará diminuir a subjetividade na aplicação dos critérios entre corretores. E há ainda potencialidades associadas ao recurso ao digital, já que podem ser usados gráficos interativos, vídeos e simulações.

Outra questão que se coloca com a digitalização das provas é a de saber se acentuará a tendência para reforçar os chamados itens de seleção, ou seja, perguntas dicotómicas em que o aluno ou acerta ou não (perguntas de escolha múltipla ou preenchimento de espaços em brancos com respostas sugeridas, por exemplo). O diretor do IAVE garante que tal não irá acontecer e que o modelo de prova se vai manter. Mas a tendência já vem de trás.

No caso de História, por exemplo, foi a partir de 2014 que surgiram as primeiras perguntas de escolha múltipla nos exames do Secundário. E de então para cá, cresceram em número e em peso relativo, com perguntas de seleção a valerem quase tanto como as que exigem uma construção mais complexa, lamenta Elisabete Jesus, professora de História, que vê nesta opção um caminho no sentido de um “facilitismo” que não devia existir neste nível de ensino. “Até porque a capacidade de raciocinar e elaborar um texto escrito é algo que lhes vai ser pedido no Superior”, justifica.

Para o presidente do IAVE, o importante é garantir a diversidade de itens, ter provas equilibradas para “todo o tipo de alunos” e desfazer o “mito de que não é possível avaliar competências complexas através de perguntas de seleção”.