quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A PANDEMIA E A REDUÇÃO DOS PROGRAMAS ESCOLARES


Não sou técnico de saúde, mas isso não impede que não esteja preocupado. A consciência de cidadão atento, a partir de alguns elementos que me chegam, levam-me a deduzir que há uma absoluta necessidade de redobrar os cuidados relativamente ao surto pandémico. Não se pode facilitar, mas, pelos relatos, parece-me que há cidadãos e, pior, governantes que talvez pensem que isso do Covid19 não passa por aqui. Passa e existe a probabilidade de tornar-se em uma situação preocupante. Todos em alerta pode constituir a melhor "vacina" enquanto ela não chega. 



O que aqui me traz é a "reabertura" da escola. Ora bem, perante uma situação de pandemia que nos ataca por qualquer lado, por maiores que sejam os cuidados, não entendo que os governantes queiram o melhor dos dois mundos: isto é, compaginar as preocupações da pandemia com o cumprimento dos exaustivos programas escolares, desejando, por extensão um normal funcionamento da escola. Como se nada estivesse a acontecer.

Não é possível tal conjugação, por melhores que sejam os actos de limpeza/desinfecção dos espaços e todas as práticas de segurança pessoal. 

Este momento de "reabertura" da escola, sublinho, no "actual sistema de ensino", implicaria uma substancial redução dos programas, interligando-os ao longo dos anos, de tal forma que o ESSENCIAL fosse separado do ACESSÓRIO. Com isso, o sistema ganharia a dois níveis: primeiro, constituiria um importante passo (experiência) na perspectiva de uma mudança na (da) escola; segundo, permitiria uma menor (mais racional) presença no espaço escolar, horários mais compatíveis (alunos e professores) e possibilidade de menores interacções. Que ninguém se esqueça que existe muita "tralha" programática que poderia e deveria ser evitada.

Ninguém fala disto, face a um quadro absolutamente anormal que todos estamos a viver. Querem, apenas, o regresso à escola para rever a "matéria do último período" (afinal, o ensino a distância foi infrutífero) e cumprir os programas do próximo ano. Sem plano alternativo. E da mesma forma que fomos surpreendidos em Fevereiro/Março, podemos voltar a ter de enfrentar uma situação complexa. Esta situação exigiria um redobrado cuidado.

Estou preocupado em função das últimas notícias. Em Março tudo foi novo; agora, não, já é possível ser preventivo. 

O meu saudoso Professor Fernando Ferreira, um dia disse-me a propósito de uma dada situação: "sabes, há um provérbio português que diz: "quem é burro pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue"...

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

E agora, Escola?


Por António Nóvoa
Professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa
e ex-reitor da mesma universidade


Um novo ambiente educativo

Há muito tempo que a educação escolar revela sinais de fragilidade. Por vezes, ouve-se mesmo dizer que “as escolas do século XIX não servem para educar as crianças do século XXI”. Como reinventar o modelo escolar, tal como o conhecemos nos últimos 150 anos?

Correndo o risco de uma simplificação excessiva, recordo uma série de palestras que fiz no Brasil, há cerca de dez anos, nas quais recorri às metáforas do quadro-negro e do celular para comparar dois ambientes de aprendizagem.

O quadro-negro é um objeto vazio (precisa de ser escrito), fixo (não se pode mover) e vertical (destina-se a uma comunicação unidirecional). O celular é um objeto cheio (contém as enciclopédias do mundo), móvel (desloca-se conosco) e horizontal (facilita uma comunicação multidirecional).

Quer isto dizer que o quadro-negro é inútil? Não. Nada substitui uma boa lição. Quer isto dizer que, a partir de agora, tudo será digital? Não. Nada substitui um bom professor.

Precisamos de construir ambientes educativos favoráveis a uma diversidade de situações e de dinâmicas de aprendizagem, ao estudo, à cooperação, ao conhecimento, à comunicação e à criação. Nesse sentido, a metáfora do celular é mais inspiradora do que a metáfora do quadro-negro.

Reações à pandemia

Em educação, a covid-19 não trouxe nenhum problema novo. Mas revelou as fragilidades dos sistemas de ensino e do modelo escolar. O que era assunto de debate entre especialistas passou a interessar toda a gente, sobretudo as famílias confinadas com os seus filhos que, de repente, se transformaram também em seus “alunos”.

Como têm sido as reações à pandemia?

Os governos têm sido imprudentes e até insensatos. Devemos reconhecer o esforço para manter uma certa “continuidade educativa”, com resultados aceitáveis para as classes médias, mas desfavoráveis para as classes populares. Todos referem que o recurso ao digital provoca ainda mais desigualdades, mas pouco, ou nada, tem sido feito para ultrapassar esta situação.

Muitas instituições, e também universidades, sobretudo públicas, ficaram bloqueadas numa discussão inútil sobre o uso ou desuso do digital e do “ensino remoto”. Outras, sobretudo privadas, transformaram o digital no novo Deus da educação. São dois disparates, do mesmo tamanho, ainda que de sinais contrários.

O melhor foram as reações de muitos professores que, em condições dificílimas, conseguiram inventar respostas úteis e pedagogicamente consistentes, através de dinâmicas de colaboração dentro e fora das escolas. A Unesco identificou e divulgou essas experiências, que constituem uma base importante para repensar o ensino e o trabalho docente.

E agora?

Alguns, advogam um “regresso à normalidade”, opção impossível e indesejável. Libertaram-se energias que não conseguimos colocar de novo dentro da caixa. E, de todas as formas, não seria desejável voltar a rotinas desinteressantes.

Outros, aproveitam a oportunidade para explicar que “tudo vai mudar”, rapidamente, com a desintegração das escolas e a transição para o digital. Na verdade, esta solução já era defendida, pelo menos desde a viragem do século, em discursos de “personalização” das aprendizagens, cientificamente legitimados pelas neurociências e com recurso à inteligência artificial.

Não me revejo nessas opções. Defender o imobilismo da “normalidade” é o pior serviço que podemos prestar à educação pública. Sustentar o confinamento, para sempre, da educação em espaços domésticos ou familiares seria abdicar de uma das mais importantes missões da escola: aprender a viver com os outros.

Acreditar que nada vai mudar ou que tudo vai mudar rapidamente são duas ilusões igualmente absurdas. Em educação, as mudanças são sempre longas, fruto do trabalho de várias gerações.

O recurso ao digital não é inocente, pois este “meio” influencia o acesso e a organização do conhecimento. Para além disso, o seu uso público é condicionado por ser controlado pelas grandes empresas privadas. Torna-se urgente assegurar o acesso de todos ao digital e valorizar o software livre, universal e gratuito. Mas a questão essencial nunca é sobre os instrumentos, é sempre sobre o sentido da mudança.

O sentido da mudança

Duas perguntas principais marcam o ritmo das interrogações pedagógicas do nosso tempo: como construir um ambiente educativo estimulante? Como entrelaçar o trabalho educativo dentro e fora das escolas?À primeira pergunta responde-se com a metáfora da biblioteca. O novo ambiente escolar será parecido com uma grande biblioteca, na qual os alunos podem estudar, sozinhos ou em grupo, podem aceder e construir o conhecimento com o apoio dos seus professores, podem realizar projetos de trabalho e de pesquisa… A pandemia mostrou que não se aprende apenas através de aulas. À segunda pergunta responde-se com a metáfora da cidade. Há 50 anos, uma geração notável de educadores construiu duas utopias: a educação faz-se em todos os tempos e em todos os espaços. A primeira, deu lugar à educação permanente, à educação ao longo da vida, que se tornou o mantra dos discursos e das políticas. A segunda, ficou largamente por cumprir, até que a pandemia mostrou que não se aprende apenas dentro das escolas. A educação faz-se em todos os espaços, na cidade.

Nas mãos de professores e alunos, com sensibilidade e tato pedagógico, o digital pode ser um instrumento importante para apoiar as mudanças necessárias na educação e no ensino.

E as universidades?

Quando era reitor da Universidade de Lisboa perguntaram-me onde estava o futuro das universidades. Respondi: na educação básica, no reforço de uma educação pública de qualidade para todos. Sem isso, dificilmente teremos boas universidades.

Mas é preciso fazer também a pergunta inversa: onde está o futuro da educação básica? A minha resposta é simples: está, em grande parte, nas universidades, porque são elas que formam os professores, porque são elas que têm a “massa crítica” necessária para reforçar a educação como bem público e bem comum.

Os problemas educativos, agora expostos com nitidez pela pandemia, não são novos. Estamos, sim, a assistir a uma aceleração da história. Os próximos tempos vão ser marcados por mudanças profundas. Hoje, mais do que nunca, precisamos de universidades com grande autonomia e liberdade, com espírito crítico, comprometidas com a inovação pedagógica e o reforço do espaço público da educação. É por aqui que passa grande parte do futuro das sociedades do século XXI.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Não vai correr tudo bem


Mais que o início das aulas, o regresso da escola vai representar um segundo (e mais desafiante) desconfinamento. Porque, “de repente”, haverá dois milhões de crianças que vão alterar o relativo isolamento social em que, desde Março, vinham a viver e passarão a interagir umas com as outras, de forma aberta, em contexto escolar.

Porque o ensino presencial, que vem sido reclamado (e bem!) pelos pais e pelos professores — e dado que as escolas não “esticaram” os metros quadrados que atribuem a cada turma (podendo o número de alunos, nalguns casos, chegar a 30) — passará a decorrer com o recurso a “pelo menos um metro de distância” entre alunos, em sala de aula, o que fará com que as crianças, mesmo com máscara e advertidas para os cuidados de saúde que devem ter, estejam demasiado próximas umas das outras, multiplicando (em muito) as probabilidades de risco de contaminação.

Porque o regresso às aulas se irá dar num contexto em que a relação entre trabalho presencial e teletrabalho dos seus pais estará mais “equilibrada”, o que faz com que, agora, não haja nem um quarto nem um terço dos alunos na escola. E que a tensão de todas as manhãs irá escalar; muito. Porque as horas no trânsito, o tempo para respeitar os procedimentos de entrega das crianças na escola (sobretudo, das mais pequeninas) e as próprias alterações climatéricas irão chocar com as recomendações preventivas que as escolas irão definir para o início do trabalho diário, o que vai ser um factor de “turbulência” para as crianças, para a escola e para a família, levando a que se “facilite” e se arrisque mais vezes.

Porque a contratação de (muitos) mais assistentes operacionais que consigam garantir as medidas de prevenção configuradas “no papel” tarda, e as escolas se vêm, uma vez mais, com a necessidade de pôr em prática medidas suplementares sem que sejam desbloqueados os recursos que o bom senso recomendaria que existissem, o que faz com que haja grandes diferenças entre aquilo que esperamos que aconteça e o que pode vir a acontecer.

Porque a forma como as escolas estão a preparar-se para “poupar” inequivocamente nos tempos de recreio, em nome da protecção das crianças, nos volta a trazer uma fórmula do género: “recomenda-se que, para sua segurança, as crianças não sejam crianças”. Que terá consequências graves na dinâmica das aulas e no aproveitamento escolar. Não ficando muito claro a quem competirá a gestão desta versão confinada de recreios, por mais que a sua consequência se configure muito preocupante. Já não sendo possível o recurso ao ar livre que, tantas vezes, nestes últimos meses foi mais uma sala de aula para muitas crianças mais pequeninas.

E porque as crianças vão, como de costume, saltitar entre actividades curriculares, actividades extra-curriculares, lúdicas, desportivas, etc., circulando por vários grupos, o que fará com que as probabilidades de multiplicarem várias vezes as suas interacções traga aumentos geométricos de riscos de contaminação consigo.

Logo, mesmo que o façam movidos por intenções generosas e não o repitam a torto e a direito, não façam com que se continue a presumir que, em relação ao próximo ano lectivo, “vai correr tudo bem”. Não vai! Não há como correr! E não se pressuponha, por favor, que tudo será uma catástrofe. Todos temos esperança que não seja assim! Mas irá haver, sem dúvida, muitos surtos localizados de covid, em contexto escolar. Em função deles, é claro que, temporariamente, muitas escolas terão de suspender a sua actividade lectiva presencial. Mas não está minimamente claro qual será o “plano B” ou o “plano C” das escolas, diante disto. Voltaremos (supõe-se), nesses interregnos, ao ensino à distância, por mais que seja preciso que se pergunte “Como?” e se cada aluno terá, dentro de um mês, um computador e meios digitais a que corresponda a essas necessidades. Não está, também, claro se os pais, mal isso suceda, terão meios e medidas sociais de protecção para acompanharem os seus filhos, porque se depreende que, regra geral, em função da sua idade e do risco que isso representa, os seus avós não o consigam fazer. E, o mais importante deste imenso imbróglio, digam-nos, por favor, o que se espera dos professores. Porque se o seu espírito de missão não se questiona, a sua idade e os factores de risco que possam ter não são aspectos que não nos preocupem e que não venham a trazer consigo muitas ausências forçadas e muitas dores de cabeça para nós, pais.

Acresce que, agora sim, depois de Março, os nossos filhos estão a regressar às aulas. E que os formatos generosos de transmissão de conhecimentos que se tentaram trazer para o seu dia a dia, durante a quarentena, abriram fracturas muito grandes no seu acesso acesso, legítimo, à escola. Na forma como “assimilaram” as matérias escolares e como entrarão neste ano lectivo com as maiores discrepâncias individuais entre alunos com que a educação obrigatória, porventura, já conviveu. E, depois, há às metas educativas. E o mais com que se convive num ano escolar. E, no meio disto tudo, fica a ideia que o Estado — que tem nas mãos uma tarefa duma complexidade inacreditável — parece falar connosco como se todos tivéssemos “necessidades educativas especiais”. E não fôssemos clarividentes e equilibrados. E não aguentássemos a verdade a que temos direito. Por mais que, todos juntos, informados e comprometidos, ajudamos a revolver melhor!

Finalmente, que não se fale da chegada de uma vacina em Dezembro como se a sua chegada diminuísse todos os riscos, de forma imediata, e ela não nos merecesse reserva e os cuidados indispensáveis, num primeiro momento.

Ou seja, o próximo ano lectivo vai ser duro! Para nós. Para as escolas. E, naturalmente, para os nossos filhos. Diante de tudo isto, teremos toda informação, todos os cuidados e (desculpem!) todo o respeito que mereceríamos? Infelizmente, acho que não. Mas ainda estamos a tempo…

Eduardo Sá
Fonte: Observador

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Carta em jeito de desabafo


Meu Caro Amigo Dr. José Júlio,


Li o artigo publicado na edição de hoje do Dnotícias. Assino por baixo, pela lucidez da análise no que concerne às gravíssimas limitações conceptuais sobre a questão central que dá título ao texto: "A tomada de decisão". 

Eu sei que sabes que esta escola está morta há muitos anos e que poucos deram por isso! Continua assente nas traves-mestras da Sociedade Industrial e, entretanto, estamos já a viver a 4ª Revolução, marcada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Este quadro deveria nortear, simultaneamente, a revolução de todo o sistema educativo, onde não se coloca a questão de ensinar, mas a de aprender. 

Ando há quase 50 anos preocupado com isso, comprometido com essa revolução, pelo que fui aprendendo com  os meus professores e analisando de tantos o que sobre estas matérias se debruçaram. Infelizmente os avanços têm sido nulos, para além de algumas mudanças absolutamente marginais que não mexem no âmago dos problemas. Tens razão quando sublinhas:

"Acredito que, se o nosso ensino estivesse estruturado para ensinar a aprender e criar consciência analítica e crítica, a utilização de tais ferramentas tornar-se-ia uma atitude rotineira de fácil e frequente utilização" (...) " Infelizmente, (...) continuamos a fazer mais do mesmo ou "ligeiramente diferente" no que ao sistema de ensino diz respeito. Tendo em conta que "as mesmas causas produzem os mesmos efeitos" não é difícil tirar conclusões...

Pois é, Caro José Júlio, isso compagina-se com uma outra frase de Paulo Freire que, recentemente, deixaste na tua página de facebook: "Seria uma atitude ingénua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica." As injustiças sociais e tudo o que a elas está associado, acrescento. 

Este sistema educativo é aquilo que é porque tem, por um lado, um fundamente ideológico e, por outro, também, de ignorância, por ausência de clarividência de quem tem a responsabilidade de governar. É mais fácil repetir do que ser criativo e inovador com soluções portadoras de futuro. É por isso que continuam a designar as escolas por estabelecimentos de ensino e não por estabelecimentos de aprendizagem; continuam a manter currículos e programas, desarticulados e, pior ainda, desligados da vida real; continuam a manter uma ideia de "aula", de "turma" e de "ciclos" desadequada do que exige uma aprendizagem séria que, simultaneamente, respeite interesses, necessidades e sonhos individuais; continuam a manter uma escola para todos ao invés de uma escola para cada um. Pior, ainda, José Júlio, quando, ao contrário da descentralização e de uma autonomia que desperte interesses nas diversas comunidades educativas, o sistema político coarcta, ao manifestar, em todos os processos, a sua tendência heterónoma. 

Talvez não saibas, mas a propósito disto, um Professor (Licínio Lima) escreveu, resumindo o que se passa: "sejam autónomos nas decisões que já tomámos por vós". Ora, quando assim é, torna-se impossível concretizar o teu desejo de "ensinar a aprender e criar consciência analítica e crítica (...)". Talvez porque essa consciência crítica possa tornar-se perigosa! O curioso é que, mais tarde, só muito mais tarde, depois de uma vida de castração do pensamento, pedem aos jovens para serem inovadores, criativos, prospectivos, empreendedores e que saibam analisar as forças e as fraquezas, as oportunidades e as ameaças, saibam, enfim, navegar nas ondas da incerteza. E até fazem cursos nesse sentido.

Sabes, Caro José Júlio, a escola está cheia de tralha e ninguém tem consciência disso. Ou, então, sabem, mas denunciam medo da ruptura.

Parabéns José Júlio, às vezes parece que estamos sós, mas isso não é verdade. 
Um abraço de Amizade e obrigado pelo texto.

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 23 de agosto de 2020

A mais baixa proporção do ensino público situa-se no pré-escolar


O Instituto Nacional de Estatísticas dá a conhecer alguns detalhes do sistema educativo em Portugal. Através dos números ficamos a saber quantos alunos estudam no ensino público, como se distribuem os professores pelos diferentes níveis de ensino e qual o investimento do Estado em Educação. O EDUCARE.PT passou em revista a informação sobre o setor da educação coletada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) no Anuário Estatístico de Portugal 2019.


Em 2017/2018, o ano letivo de referência das estatísticas relacionadas com o setor da educação, contavam-se 1,6 milhões de alunos matriculados no ensino não superior, ou seja do pré-escolar ao secundário. A distribuição pelos diferentes níveis de escolaridade fazia-se assim: 240 231 alunos no pré-escolar, 987 704 no ensino básico ( 1.°, 2.° e 3.° ciclos), 401 050 no ensino secundário e 4 741 no ensino pós-secundário não superior.

Ensino público prevalece

Separando ensino público e privado, os dados do INE mostram que ensino público mantém a preponderância nos diversos níveis de educação no que toca ao número de alunos matriculados. Do pré-escolar até ao ensino secundário, 80,1% do total de alunos a estudar em Portugal fá-lo na escola pública. A rede de ensino público abarca 72,5% do total dos estabelecimentos de ensino e emprega 86,4% do pessoal docente.

Num cenário em que a frequência do ensino público prevalece, de forma clara, sobre o privado há apenas uma exceção. O pré-escolar público representa a mais baixa proporção de ensino público: 53,1%. “Não se afastando muito da linha média da década”, refere a 111.ª edição do anuário do INE.

Ainda no pré-escolar, o ano letivo de 2017/2018 caracterizou-se por uma diminuição de 5,4% do número de crianças matriculadas. Acompanhada também por uma diminuição de 0,5% do pessoal docente. Isto, relativamente ao ano de 2016/2017. Também o ensino básico registou uma diminuição do número de alunos matriculados no 1.°, 2.° e 3.° ciclo, na ordem dos 0,6%, 2,5% e 1,1%, respetivamente. Contra a corrente, no ensino secundário observou-se um aumento de 0,3% no número de matriculados comparativamente ao ano letivo anterior.

De modo geral, há ainda mais professores no sistema educativo português. De acordo com os dados do anuário, o pessoal docente aumentou 0,4% no 1.º e 2.º ciclos do ensino básico e 1,5% no 3.º ciclo e ensino secundário.

Mudanças nas últimas décadas

Recuando à década de 90, o Anuário Estatístico de Portugal 2019 mostra grandes mudanças quanto ao número de alunos a frequentar o sistema educativo. Comparativamente ao ano letivo de 1990/1991 o número de alunos matriculados aumentou 40% no pré-escolar e 15,3% no ensino secundário. Já no ensino básico diminuiu nos três ciclos: 40%, 38,2% e 20,1% para os 1.°, 2.° e 3.° ciclos, respetivamente.

Mudanças que também se refletiram no corpo docente. Assim, o pessoal docente do pré-escolar aumentou 71,7%, enquanto o do 3.° ciclo e secundário aumentou apenas 18,9% e o do 1.° e 2.° ciclos diminuiu 26,9% e 23%.

Contas feitas pelo INE, existem 146 830 docentes do ensino não superior distribuídos deste modo: 16 065 no ensino pré-escolar, 29 979 no 1.° ciclo, 24 064 no 2.° ciclo, 76 722 no 3.° ciclo e secundário.

O anuário mostra ainda que em 2017/2018, a taxa de retenção e desistência no ensino básico era de 5,1% e a taxa de transição/conclusão no ensino secundário era de 86,1%.

Mais alunos no superior

Olhando para os números do ensino superior, dados mais recentes apontam para 385,2 mil alunos inscritos no ano letivo de 2018/2019, mas por questões de coerência com os restantes indicadores o INE considera no anuário os dados de 2017/2018.

Assim, nesse ano letivo inscreveram-se 372,8 mil estudantes nas 290 instituições existentes. Isto significa mais 3% de inscritos do que no ano letivo anterior, a maioria nas universidades e politécnicos públicos (82,8%).

A taxa de escolarização no ensino superior situou-se nos 35,6%, representando um aumento de 1,3 pontos percentuais em relação a 2016/2017. Sendo que as mulheres representam 53,8% do total de inscritos. Comparando 2018/2019 ao ano letivo de 1990/1991, o número de inscritos praticamente duplicou, tendo aumentando 99,6%.

Quem terminou o curso? O INE contabiliza 79,8 mil alunos diplomados no ano letivo 2017/2018. Ora, um aumento de 3,7% em relação ao ano anterior. As áreas de estudo com maior número de diplomados foram as "ciências empresariais, administração e direito" contabilizando 20,3% do total, a "engenharia, indústrias transformadoras e construção" com 19,6% e a "saúde e proteção social" com 17,5%.

O INE refere ainda que o Estado investiu no setor da educação 4,5% do produto interno bruto (PIB) em 2018 e que a despesa pública em Educação foi de 9 266 milhões de euros.

Estes são alguns dos números que constam do Anuário Estatístico de Portugal 2019, divulgado em julho pelo INE e que reúne não apenas informação sobre educação, mas sobre cultura, rendimento, condições de vida e mercado de trabalho.

Fonte: Educare

domingo, 16 de agosto de 2020

A Escola contribuiu para a desigualdade social

 

A estatística aponta para cerca de 32% de pobres, o que equivale, aproximadamente, a 75.000 pobres na Região da Madeira. Ora, os 724 agregados familiares em dificuldade não constituem novidade. Existem muitos milhares que vão vivendo. Não morrem de fome, isso não, sobrevivem conjugando, diariamente, o verbo esticar. Enquanto, entre outras instituições, o Banco Alimentar, a Cáritas, a Cruz Vermelha, as paróquias, a agricultura de sobrevivência e muitas pessoas de enorme coração atenuarem os dramas, a situação manter-se-á disfarçada. Mas eles existem.

Independentemente de não ter sido "construída" e, já agora,"inaugurada" uma sociedade mais justa e equilibrada, o que dependeria do estabelecimento de rigorosas prioridades no exercício da política de investimentos, indo directamente à questão da pobreza, essa, só se resolve(rá), todos o saberão, com um sistema educativo sério, inclusivo e de qualidade. Só através da Educação é possível romper com o círculo vicioso da pobreza. Não existe outra forma. A subsidiodependência, a distribuição de alimentos e as atitudes caritativas, só eternizam o drama. Podem e devem ser pontuais (necessárias) em função de um determinado quadro social, mas nunca deverão constituir a solução. A solução tem um nome: EDUCAÇÃO.

Politicamente, ninguém assume que há fome na Madeira. Nem se assume que este sistema educativo é, conceptualmente, uma fraude. Há fomes diversas, porque não dispusemos, no tempo certo, de estadistas, mas de meros políticos. Foi sempre mais fácil pensar na eleição seguinte do que nas gerações seguintes. E daí a inversão de prioridades que veio acentuar a existência de três grupos sociais: os ricos e muito ricos; uma classe média sucessivamente despojada do essencial, eu diria, espoliada; e um vastíssimo grupo de pobres. Os pobres (75.000) tornaram-se paisagem na Madeira. 

Os ricos ou muito ricos serviram-se no banquete montado na lógica das "obras", fossem importantes ou rigorosamente dispensáveis; sentaram-se à mesa do orçamento e impuseram uma economia ao seu serviço; porque lhes permitiram, saciaram-se, marimbando-se para o resto da sociedade. No meio de um repasto de quase cinco dezenas de anos, de grandes interesses e de muito blá bla, a escola acabou por servir de décor, de cumprimento de um direito constitucional, mas distante de uma formação individual e colectivamente emancipadora. O sistema educativo contribuiu para a desigualdade social. Infelizmente, basta olhar em redor e analisar o grosso da sociedade, sector a sector, área por área, para constatar as graves limitações a múltiplos níveis. 

A ausência de consistentes políticas de família e a insistência nas respostas sociais sem atender às causas dos problemas, conjugado com um sistema educativo assente em uma narrativa balofa, só poderia redundar no fracasso global da sociedade. Quem a estruturou sabia o que estava a edificar, até pela insistência naquela frase que, politicamente, significa(va) exactamente o seu contrário: "os madeirenses são um povo superior". Superior, em quê? Talvez, na pobreza!

A verdadeira História está por ser feita. Não a dos "cinco séculos de exploração", mas as das cinco décadas de escravização da mentalidade.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Henrique Afonso - o "Pirata da Madeira" e António Barroso Cruz o "Cidadão do Mundo"

 

Não sei velejar mas gosto do mar. Delicio-me quando nado em águas calmas e nutro um enorme respeito por aqueles que o enfrentam, entregues a si próprios, com aquela coragem e determinação que não tenho. Segui a aventura do velejador Miguel Sá e tenho acompanhado com interesse a volta ao mundo de Henrique Afonso, carinhosamente conhecido pelo "Pirata da Madeira". Não o conheço no plano pessoal, mas tenho por ele uma enorme admiração.

Ao ver este vídeo, recordei o que li de um outro navegador solitário, o Ricardo Dinis: 

"(...) sofri muito quando percebi que o mar não era aquele ser absoluto e romântico que imaginava, mas consegui uma frieza que me ajuda melhor a sobreviver quando estou a navegar durante tanto tempo (...) aprendi a ser indiferente às temperaturas, deixei de me compadecer com as debilidades (...) sou um ser humano normal, que tem sentimentos e tirita quando tem frio mas, ali, no meio do oceano, consigo ser um bicho estranhíssimo que desliga as emoções e toca a fazer o trabalho. Vem aí uma tempestade? Que venha ela!" 

Digo eu, só com coragem! Ao longo do testemunho de Henrique Afonso recordei-me do que, em tempos, escrevi sobre Miguel Sá, ao mesmo tempo que fui compaginando as suas experiências no mar e junto dos povos, com as de António Barroso Cruz um cidadão do Mundo. Tal como as significativas experiências de João Rodrigues, outro que conhece todos os continentes e com seis presenças em Jogos Olímpicos, ou, então, do meu velho Amigo Rui Marote, fotógrafo, viajante compulsivo por inimagináveis lugares. E fui-me interrogando sobre o quanto figuras como estas poderiam e deveriam ser aproveitadas no sector educativo!

Curiosamente, um pouco antes de ler as peripécias de Henrique Afonso, desde Timor-Leste até à ilha da Reunião, durante 32 dias ao longo do Índico, onde muitas vezes se sentiu dentro de uma "máquina de lavar" no seu "Sofia do Mar", tinha seguido mais um excelente vídeo de António Barroso Cruz sobre o Butão, pequeno reino budista no extremo leste do Himalaia, um país que dispõe, curiosamente, tenhamos presente o significado, um Ministério da Felicidade. E fiquei a imaginar as riquíssimas experiências destes dois cidadãos, entre outros, transformadas em enriquecimento cultural de quem vive aprisionado na ilha.

Ora, quando bastas vezes tenho defendido a existência de uma escola de aprendizagem vista pelo ângulo da cultura, encontro nestas figuras o sobressalto de consciência necessário para romper com o pensamento estagnado e resignado aos manuais escolares. No essencial, o que elas teriam para transmitir sobre as múltiplas culturas, sobre os espaços geográficos, históricos, os das ciências naturais, das artes, da poesia, da literatura, das ciências sociais e culturais dos povos, enfim, sobre uma imensidão de aspectos, que ultrapassam, em muito, a desarticulação dos programas! 

Esta, para mim, seria a escola da verdadeira aprendizagem, porque aquela que temos é a escola do ensino, onde muito se "estuda" para esquecer.


Apesar da minha idade, estou certo que ficaria horas a ouvir o Henrique Afonso, como ficaria outras tantas a escutar o António Barroso Cruz sobre as centenas de viagens, algumas aos sítios mais recônditos do planeta.

Ficaria horas a escutar o "Pirata" que, em Timor, fez amizade com o Prémio Nobel da Paz, Ramos Horta, sobre toda a arte de navegar, sobre a coragem, os riscos, as angústias e o estar só no meio da tormenta; ficaria horas a ouvir o António Barroso Cruz, em uma outra vertente, cruzando experiências e particularidades culturais na vastidão do mundo. 

Se eu fosse criança ficaria a olhar e a beber aquele sumo que 
nem os manuais nem os professores conseguem oferecer. Quantas perguntas faria...

O problema que se coloca é que o sistema educativo não está para aí voltado. A ordem é para cumprir o programa, mesmo que seja para esquecer. A ordem é para consumir os livros das editoras. A ordem é que o professor "dê aula", escreva o sumário, avalie e cumpra o ritual. A ordem é de obediência cega à hierarquia, mesmo que, muito do que na escola acontece, nenhuma relação tenha com a vida.  

E naquelas viagens estão todas as disciplinas curriculares. Basta a inteligência de cruzá-las e integrá-las no que é essencial, daí partindo para o conhecimento mais específico, sempre de acordo com os sonhos e interesses de cada um. Tudo pode ser aprendido, tudo, o processo é que não pode ser aquele que predomina com a matriz de há duzentos anos!

Ilustração: Google Imagens / Youtube

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

As notas do contentamento e as respostas às exigências do mundo


Constatei a pública satisfação política da secretaria da Educação e, já agora, de um grupo juvenil partidário, colando-se aos resultados dos exames nacionais. Se foram 78% de notas positivas, tal pouco me diz ou alegra. No âmbito deste sistema educativo até considero que aquela percentagem fica distante do que seria expectável. Simplesmente porque a nota é consequência de uma dedicação, é certo, mas da repetição até à exaustão, na escola, em casa e nas explicações privadas, sobre aquilo que, segundo os programas, é previsível. Muito mais do que essa "medição", preocupa-me a APRENDIZAGEM, a que gera aptidão para ver longe, ser prospectivo, criativo e inovador. Inquieta-me os que ficam para trás (desses não se fala) e reflicto sobre a existência ou não de um repertório multi-vivencial, de um largo conjunto de factores que deveriam se cruzar ao longo dos anos. A nota, convenhamos, dá resposta cabal ao actual sistema, satisfaz o próprio, os pais, os avós e engrandece o momento; a competência extrapola, tem efeitos multiplicadores e torna-se portadora de futuro. Prefiro a competência.


Portanto, muito mais que vintes, dezanoves ou dezoitos a questão é saber-se para que é que eles servem? Apenas para a acessibilidade ao ensino superior? É redutor. Mais cedo que tarde o acesso percorrerá outros caminhos que não os actuais. Aliás, já constitui matéria de preocupação por parte de muitos académicos. No mundo que estamos a viver ou no mundo que está aí a despontar ao virar da esquina, mais do que a nota do pontual contentamento, está ou estará o alicerce que permitirá erguer os pilares onde assentarão os conhecimentos que permitirão enfrentar o próximo "admirável mundo novo". Isto para dizer que é ténue ou quase imperceptível a correspondência entre resultados e as desejáveis competências. As exigências do presente, muito menos as do futuro, não se compadecerão face ao actual pensamento estrutural que se mantém quase inalterável. Um trabalho para 20 a 30  anos que há muitos anos deveria ter começado. 

Falam de ensino quando deveriam falar de aprendizagem; falam de notas quando deveriam falar de competências. E assim, a rotina e a ausência de  pensamento crítico acabam por constituir a marca do actual sistema, que bloqueia o transfere, a aplicação, a criatividade e a inovação. Torna-se pobre um modelo que utiliza o aluno para gáudio dos adultos, políticos ou professores. Torna-se ineficaz quando se ignora o repertório do aluno e não contextualiza a aprendizagem com a vida. Torna-se insuficiente quando se olha para um currículo como um conjunto diversificado e fragmentado de disciplinas fechadas e não como espaço de projecto transversal e integrador.  Torna-se indigente um sistema que não respeita as diferenças, as culturas e o permanente questionamento. 

É evidente que os resultados, analisados no quadro do actual sistema, geram satisfação. Daí os parabéns a quem os obteve. Mas o que está em causa, como se depreende da posição que aqui assumo, é muito mais vasto, porque se baseia na aprendizagem contextualizada no tempo, aquela que integra múltiplas vivências, sentido de responsabilidade, rigor e, repito, capacidade de análise crítica que permita colocar tudo em causa, procurando o novo todos os dias.

Difícil? Sim, muito. Porque o processo educativo, inclusivo, socialmente produzido, não se compagina com acertos marginais ditados pela hierarquia. Exige rupturas profundas no quadro de um dos princípios do desenvolvimento: o da transformação graduada. Leva anos e só é possível quando nasce na escola; quando a escola decide quebrar os imensos muros e estabelecer-se como parceiro dos restantes sistemas sociais; quando os professores se "calam" tornando-se mediadores de uma aprendizagem consistente.

Finalmente, ninguém fala nem é pública a relação entre o número de estudantes matriculados e os que se submetem a exames. E daqueles que os fizeram, quantos não atingiram o patamar mínimo e porquê. Seria interessante perceber quantos ficam para trás e os motivos. Mas isso, neste sistema, pretensamente meritocrático, pouco interesse tem. Convicto estou que não interessa saber, porque, por aí, se compreenderia muito daquilo que é obscuro.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

As crianças estão sujeitas a stress crónico


FACTO

Crianças que passam dez a doze horas em jardins de infância estão sujeitas a stress crónico que pode originar doenças em adultos como a hipertensão, avc, diabetes ou o cancro (...) Portugal é um dos países da União Europeia que mais horas por dia os bebés passam, em situação de grupo, cuidados por outros, em creches (...) o mesmo ocorre com crianças acima dos três anos (...) há estudos ligados ao stress crónico que mostram que esta exposição ao stress é tóxica para o cérebro (...) - Síntese de declarações do Pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva.

COMENTÁRIO

Há muitos relatórios sobre esta matéria e todos convergentes. O próprio Conselho Nacional da Educação já se pronunciou em pertinentes alertas. Porém, no plano político, ninguém assume a necessidade de uma profunda reflexão sobre uma reorganização estrutural do funcionamento da sociedade. Que deveria ter sido motivo de preocupação quando, paulatina, previsível e definitivamente, a mulher entrou no mundo do trabalho. Por ausência de políticas nesse sentido, de forma crescente, a escola veio então tornar-se uma espécie de "armazém de crianças" enquanto os pais trabalham. E hoje estamos confrontados, enquanto resposta, com uma escola a tempo inteiro, mas com pais a meio tempo. E esse tempo inteiro começa na creche! Compaginada com esta situação os políticos, manietados pelas dinâmicas económicas, fazem por esquecer-se que "mais trabalho não significa nem melhor trabalho nem maior produção". Tal qual mais escola não significa melhor escola.

Não deixa de ser interessante que as crianças finlandesas (apenas um exemplo) passam na escola menos 40% do tempo relativamente a Portugal e, em Portugal, os resultados são piores.

Em Outubro de 2010, na minha passagem pela Assembleia Legislativa da Madeira, apresentei um Projecto de Decreto Legislativo Regional sobre a Escola a Tempo Inteiro na Região Autónoma da Madeira. O diploma visava o estudo das causas e consequências de tal opção. Foi literalmente chumbado pela maioria política. Continuo a lamentar, porque, o tempo deu-me razão. Um perfeito disparate sejam quais forem as circunstâncias. É caso para dizer, pensem, já agora, na possibilidade dos alunos e professores levarem a cama para a escola, porque a FAMÍLIA parece ser dispensável. 

Deixo aqui a nota introdutória da proposta que foi chumbada e que nem mereceu a possibilidade de um estudo sério e profundo em sede de Comissão Especializada. (transcrição do meu blogue www.comqueentao.blogspot.com)


"A Escola a Tempo Inteiro constitui uma boa solução para um problema errado. Muitos têm sido os investigadores que sobre este tema se têm debruçado. O Professor Doutor Santana Castilho, da Escola Superior de Educação de Santarém, investigador, sublinhou, recentemente, que as Escolas a Tempo Inteiro são uma “aberração pedagógica e social que nacionalizou crianças e legitimou a escravização dos pais”. Por seu turno, o Dr. Eduardo Sá, Psicólogo Clínico, salientou em uma entrevista publicada na Revista Focus: "As crianças estão em vias de extinção (...) cada vez mais as crianças estão a passar por um conjunto de situações que não são muito razoáveis (...) Cada vez mais as crianças não são crianças. As crianças têm hoje uma relação com o brincar que é cada vez mais uma relação de fim-de-semana e brincar é uma actividade muito séria para que seja feita apenas ao fim de semana. Passam cada vez mais horas na escola, o que não é adequado... aquilo que me preocupa é que mais escola, sobretudo como ela está a ser vivida, signifique menos infância e quanto menos infância, mais nos arriscamos a construir pessoas magoadas com a vida. Quanto mais longa e mais rica for a infância mais saudável será a adultez (...) os pais estão muito enganados ao pensarem que mais escola significa mais educação (...) neste momento a infância começa a ser perigosamente a escola e, de repente, há toda uma vertente tecnocrática como se o que estivesse em primeiro lugar fosse toda a formação e depois viver a vida. Isto é um absurdo". O Dr. Daniel Sampaio, psiquiatra e estudioso das questões educativas, sublinhou em um dos artigos: “(…) não estaremos a remediar à pressa um mal-estar civilizacional, pedindo aos professores (mais uma vez) que substituam a família? Se os pais têm maus horários, não deveriam reivindicar melhores condições de trabalho, que passassem, por exemplo, pelo encurtamento da hora de almoço, de modo a poderem chegar mais cedo, a tempo de estar com os filhos? Não deveria ser esse um projecto de luta das associações de pais? (…) Gostaria, pois, que os pais se unissem para reivindicar mais tempo junto dos filhos depois do seu nascimento, que fizessem pressão nas autarquias para a organização de uma rede eficiente de transportes escolares, ou que sensibilizassem o mundo empresarial para horários com a necessária rentabilidade, mas mais compatíveis com a educação dos filhos e com a vida em família". O Doutor Paulo Guinote, clarifica: "(...) Por isso, a Escola a Tempo Inteiro é apenas algo que se destina a apaziguar as “famílias” que, cada vez mais, são obrigadas a trabalhar em condições mais precárias e vulneráveis. Que não podem faltar, sob pena de perda do posto de trabalho no final do contrato. Que são obrigadas a cumprir horários incompatíveis com uma vida familiar harmoniosas. Numa altura em que, cada vez mais, as famílias são menos do que nucleares. A Escola a Tempo Inteiro é um óptimo contributo para todos os empresários e empregadores que defendem a desregulação - pelo abuso - do horário de trabalho dos seus empregados. Se é isso que vai desenvolver o país? Abrindo mais umas dezenas de centros comerciais para as “famílias” tentarem desaguar as frustrações ao fim de semana? Quem defende as “famílias” deveria defender, em coerência com os seus princípios, que o Estado protegesse a vida das ditas “famílias” a partir da melhoria das suas condições de vida. A defesa da Escola a Tempo Inteiro é a admissão de um fracasso, de uma derrota e não o seu contrário (...)". Finalmente, o Frei Fernando Ventura, numa entrevista à SIC, sobre a sociedade hoje, assumiu: “(…) estamos a pagar facturas altíssimas (…) estamos a criar gerações de “monstros”. Estamos a criar gerações de jovens sem memória. Estamos a criar gerações de pessoas sem história. E quando a memória e a história não se encontram, nós temos os cataclismos sociais. As nossas crianças desde os três meses estão nos berçários, nos infantários, porque têm de estar porque os pais precisam, desesperadamente, de ter dois e três empregos para sobreviverem (…) a história dos novos e dos velhos não se encontra, as crianças não têm voz, as crianças não têm sequer pais, porque têm de trabalhar “25 horas por dia” se for preciso. (…) É esta estrutura por dentro que precisa de mudar (…)”.

Estas cinco posições devem ser assumidas como reflexões importantes, oportunas e de necessidade absoluta de estudo e debate aberto. É absolutamente inacreditável que uma creche, recentemente inaugurada na Madeira, disponibilize serviços até às 23 horas e temos presente a reivindicação da Confederação Nacional das Associações de Pais que sugeriu que as escolas estivessem abertas 12 horas por dia. Trata-se de uma resposta social à desorganização da sociedade, mas que reflecte a mais completa desumanização do processo educativo e responsabilidade dos pais e encarregados de educação. Não deixa de ser curioso que uma Dissertação de Mestrado concluiu, recentemente, “que a escola a tempo inteiro é a grande culpada do aumento de casos disciplinares. Impor oito horas de permanência no mesmo espaço escolar, em actividades de ensino formal, é um abuso”, concluiu a mestranda no seu estudo.

É evidente que reverter todos os sistemas implicados e a mentalidade que lhe está subjacente não constitui tarefa simples. Pelo contrário, é muito complexo e, por isso mesmo, exige uma profunda reflexão, até porque são múltiplas as variáveis que estão em jogo: da organização familiar, à organização do trabalho, passando pela co-responsabilização de toda a sociedade no processo educativo.

Dir-se-á que a Escola não conseguiu se assumir como o motor da sociedade, não puxou por ela, não soube colocar-se na dianteira estruturante, pelo que hoje é a sociedade que lhe exige e impõe o comportamento de resposta às dinâmicas que ela, por contágio, gerou. As causas são, obviamente múltiplas: permitiu-se que o sistema social e de valores resvalasse; aceitou-se a desregulamentação do mundo do trabalho, a pressão no local de trabalho directamente relacionado com o aumento do suicídio; seguiu-se a lógica atraente mas falaciosa de "nada mais certo no futuro que o emprego incerto"; espremeu-se o trabalhador; o Homem esqueceu as lutas de Chicago, desorganizou e aplaudiu as regras laborais de base; não foi considerada a entrada e consolidação da mulher no mundo do trabalho e a respectiva alteração do rendimento familiar que altera a própria organização familiar e, agora, baseado no facto consumado, o capitalismo selvagem, à boleia dessa desregulação e da fraqueza das pessoas, incapazes de lutarem pelos seus direitos, na Região, transformaram a escola, na palavra do Dr. Daniel Sampaio, em um “armazém de crianças”, enquanto lá fora os pais labutam por uns euros.

Desta forma estão a crescer as famílias a meio tempo, em contraponto à Escola a Tempo Inteiro! E os mesmos que a implementaram enquanto resposta possível, são os mesmos capazes de dizer que as famílias são as células da sociedade, que elas constituem a base da aprendizagem, o alicerce dos princípios e dos valores sociais, da Educação geral e específica. Pergunta-se, mas como? Com pais a recolherem os filhos tardiamente que mal dá, em muitos casos, para o banho, os "deveres da escola" (outra coisa a rever), o jantar e cama? Como é que se pode educar neste completo divórcio entre filhos e pais ou vice-versa? Pais que o são, muitas vezes, apenas ao fim-de-semana! Que construção familiar é possível? Safam-se, neste processo, aqueles que dispõem de Avós a Tempo Inteiro, que ajudam, mas, atenção, não substituem.

Deduz-se que os políticos apresentam um défice de conhecimento sobre estas matérias. Deveriam visitar outros espaços, ler um pouco mais a profundidade destas questões que, sublinhamos, são muito mais complexas. Há uma absoluta necessidade de tomar consciência da necessidade de uma nova (re)organização social capaz de uma maior produção e distribuição da riqueza, mas que salvaguarde os aspectos determinantes na construção equilibrada do edifício humano. Países há que não embarcam na “benesse social” das ETI por constituírem um ataque aos direitos das crianças e das famílias.

A investigadora Maria José Araújo, que lançou o livro "Crianças Ocupadas… Como algumas opções erradas estão a prejudicar os nossos filhos", questiona: "(…) Fará sentido que, na sociedade contemporânea, as crianças trabalhem mais do que as 40 horas que achamos razoáveis para os adultos? Fará sentido prolongar de tal modo as suas ocupações que não lhes deixamos tempo para brincar e descansar? Será que temos o direito de ocupar e condicionar o tempo livre das crianças depois de um dia de Escola?" (…) "A angústia dos pais para que as crianças trabalhem muito para serem alguém, como se as crianças não fossem já hoje alguém, pode comprometer tanto o seu presente como o seu futuro", sublinha.
Ora, em todo este processo existem engenharias que nem sociais são, como se as crianças fossem números ou meros materiais de construção. Daí a necessidade de um estudo que clarifique as causas e consequências da Escola a Tempo Inteiro. Entretanto, passaram-se 10 ANOS...

O texto da proposta de diploma pode ser lido AQUI.

Nota
Inicialmente publicado no blogue:
www.gnose.eu