segunda-feira, 30 de março de 2020

Ano arruinado? Nem tanto.


Por
José Crespo de Carvalho
Presidente do ISCTE Executive Education
27 de Março de 2020

Não, o ano letivo não está arruinado. Se as pessoas valorizassem mais o que estão a aprender neste momento e se concentrassem mais em ganhar capacidade de adaptação, skills para a gestão da mudança e performance em tempos difíceis sairiam desta crise com uma preparação superior. Está-lhes a ser proporcionado, pelas piores razões, um cenário dantesco. Por isso, já o tenho dito, se deve aproveitar isto mesmo para crescer. É preciso que cresçamos com estas coisas. Não teremos provavelmente nenhum outro cenário tão duro pela frente nos próximos anos das nossas vidas. Portanto, saibamos aproveitá-lo para construirmos e estruturarmos a nossa resiliência e para ajudarmos outros a construírem-na.


Acho que houve um tremendo abanão em tudo. E mais virão, preparem-se. Passar a funcionar a partir de casa tem aspetos muito negativos, sem dúvida. Limitarmos ou anularmos o ensino presencial, uma vez que somos seres sociais e sociáveis e que queremos a componente relacional e experiencial, é sem dúvida uma perda. Uma sociedade de afastamento humano é uma sociedade sitiada. É uma sociedade que tem pouco de sociedade, pelo menos como a conhecemos.
Mas teremos de ver aspetos positivos. Tivemos uma curva de aprendizagem forçada no online, e num curtíssimo espaço de tempo, como não poderíamos jamais ter noutras circunstâncias. Isso é positivo. A grande capacidade de adaptação, aprendizagem, uso de novas formas de comunicar, de lecionar e aprender e de nos relacionarmos foi um passo muito importante e diria de desenvolvimento crucial. Depois, começámos a valorizar tudo quanto dávamos por adquirido e os modelos que para nós até achávamos, às vezes, menos apelativos passaram a ser profundamente desejados. Esta componente de aprendizagem é também importante, ou seja, a escassez de determinado formato/método levou-nos a idolatrá-lo e a querê-lo. Ah, o que faz a privação…

Agora, nos anos letivos mais baixos, antes de se colocarem questões sérias de exames nacionais ou provas de acesso ao superior, as coisas são recuperáveis e nada está perdido. Nesses anos, onde não se joga o tudo ou nada, será simples recuperar mais à frente. Nos anos de decisão, aí sim, não será fácil para muitos até porque não se podem facilitar os exames, sem mais. Aí pode significar um ano perdido. Mas um ano perdido pode representar também uma oportunidade para crescer, estruturar fundamentais, olhar para o lado dos valores e a dimensão humana. Enfim, há sempre os dois lados da moeda.

Já no ensino universitário, aquele que melhor conheço e onde trabalho, penso que temos coisas boas como coisas menos boas. A capacidade de adaptação, a aprendizagem, o sermos forçados a migrar para o online pode ser considerado profundamente positivo se pensado como alternativa ao que achávamos que seria uma solução quase única. Ao contrário, perde-se na componente relacional e de network e na capacidade de construir aprendizagem pelo coletivo. Para além de que o coletivo, em termos universitários, tem um papel também decisivo na criação de amizades e seu aprofundamento e de relações que ficam para a vida.
Na formação de executivos as coisas têm igualmente lados bons e menos bons. A capacidade de aguentar, a adaptação, a mudança que procuramos transmitir são agora, mais que nunca, para colocar em prática. Para a formação de executivos há duas dimensões que são cruciais mas que nem sempre são audíveis ou percetíveis: adaptação à mudança e, por outro lado, performance. Adaptação à mudança é fundamental. Quem quererá um colaborador sem capacidade de adaptação a um cenário hostil? Provavelmente esta crise fará mudar muito do capital de queixa de novas gerações e fará com que se voltem para os básicos. A vida, as relações, os amigos, aqueles que procuram estar com eles e ajudá-los, aqueles que mostram a importância da sua existência e os valorizam.
A este propósito não posso esquecer a reunião ZOOM que tive com as duas turmas de saúde este fim de semana, uma de um Executive Master e uma outra de uma pós-graduação. Os primeiros, os da linha da frente, os que não dormem, os que dão a vida por muitos outros… ainda assim querem manter o vínculo e procuram na aprendizagem um momento de fuga, uma evasão para o futuro que os espera, lá longe, risonho. E querem falar de futuro. Entre lágrimas, muitas lágrimas, mas querem falar de futuro.
A segunda dimensão é a performance. Em formação de executivos isto é a melhor prova de resistência debaixo de condições adversas. Podíamos encontrar melhor cenário? Acho que não. Mas há quem não esteja bem. Claro que sim. Esses são aqueles que mais tarde ou mais cedo serão descobertos pelas suas empresas como os que pouco importam. São a não investir. Porquê? Porque debaixo de pressão não conseguem mostrar performance.
Tudo isto para dizer que não, o ano letivo não está arruinado. Se as pessoas valorizassem mais o que estão a aprender neste momento e se concentrassem mais em ganhar capacidade de adaptação, skills para a gestão da mudança e performance em tempos difíceis sairiam desta crise com uma preparação superior. Está-lhes a ser proporcionado, pelas piores razões, um cenário dantesco. Por isso, já o tenho dito, se deve aproveitar isto mesmo para crescer. É preciso que cresçamos com estas coisas. Não teremos provavelmente nenhum outro cenário tão duro pela frente nos próximos anos das nossas vidas. Portanto, saibamos aproveitá-lo para construirmos e estruturarmos a nossa resiliência e para ajudarmos outros a construírem-na.

Nota:
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

segunda-feira, 23 de março de 2020

TORNAR A TRAGÉDIA PANDÉMICA EM UMA OPORTUNIDADE DE APRENDIZAGEM


Acabei de ler um artigo assinado por José Pacheco Pereira. Uma delícia. Compaginei-o com o que escrevi no blogue www.gnose.eu e aqui transcrevi, subordinado ao título "A Pandemia e a paranóia escolar". Daí a minha satisfação. Ora bem, vamos ao essencial. Quando os meus netos tiveram a possibilidade de passar uma semana do centro de Nova York, disse-lhes: aproveitem, visitem tudo, vivam e sintam a experiência cultural, porque isso vale mais que três meses de aulas. O "programa" (não curricular) que cumpriram deu-me razão.

Agora, com o Covid-19 e o respectivo confinamento em casa, deveria ser aproveitado para combater a "falta de preparação de muitos portugueses para poderem ter um olhar mais sabedor, ponderado, consciente, eficaz para o que se está a passar", sublinha José Pacheco Pereira. Deveríamos aproveitar este trágico momento para tornar o aluno mais "culto, interessado pelo mundo, curioso, atento, respeitador do saber alheio, e não necessariamente apenas do saber académico. Não é remédio absoluto, mas ajuda", enaltece o autor do artigo. 
E é verdade, de que vale umas quantas páginas dos programas curriculares, debitadas à distância, quando este maldito vírus nos pode transportar para outros patamares do conhecimento? Das ciências epidemiológicas e fisiopatológicas à História do Homem, da Economia à Geografia, das Ciências do Ambiente (a poluição está a diminuir) à organização e responsabilidade social, da Estatística à literatura, poesia e cinema. A este propósito, sintetiza Pacheco Pereira: 

"(...) Quem lê, seja por obrigação, por interesse ou por gosto, está mais preparado para olhar para a pandemia, aprendendo sobre ela mais e melhor. Por exemplo, saber o que é um crescimento exponencial, perceber os gráficos, ler um mapa, ter uma noção sobre os comportamentos humanos em situação de tensão, travar o pânico, entender as informações que recebe, saber distinguir o trigo do joio, conhecer minimamente os mecanismos sensacionalistas da comunicação social e deixar as fábricas de conspiração, intriga e falsidades nos esgotos sociais onde pululam. Como agora se diz, literacias. Não é remédio absoluto, mas ajuda. 

E não se trata apenas de conhecimentos científicos sobre as epidemias, sobre as mutações, sobre os mecanismos de contágio, sobre o que é um vírus e como funciona, trata-se de muito mais. Trata-se daquilo em que ler é único, importar experiência indirecta, viver em si o que o mundo dos livros, ficção, poesia, história, transporta. E na literatura e nos filmes também não se trata de procurar apenas ficções que sejam directamente associadas ao tipo de situações que vivemos, como A Peste, de Camus, ou os contos de Edgar Allan Poe (em ambos os casos, livros que têm tido uma grande procura nestes dias), mas muitos outros, seja o 1984, de George Orwell, seja a Montanha Mágica, de Thomas Mann (onde o lugar da tuberculose, o sanatório, funciona como um microcosmos), sejam as memórias e os contos de Tchekov médico, seja, em bom rigor, tudo. A tese é, para usar um exemplo não-pandémico: quem leu Cesário Verde não vê Lisboa da mesma maneira que se não o tivesse lido. E, por muito vaga que seja essa experiência estética, é provável que defenda melhor a sua cidade pelo voto, pela actividade cívica, pela opinião. Como em tudo, não é regra absoluta, mas mais vale ter lido do que ter passado ao largo. Não é remédio absoluto, mas ajuda. (...)" 
Conclusão: 
Há muito mais para além da "fúria" pelo cumprimento dos programas curriculares e pela doentia obsessão pelos exames. Como se não existisse alternativa, anda o país a despachar capítulos dos manuais, apenas para que os relatórios finais fiquem de acordo com o superiormente estipulado! Lamento, porque a aprendizagem deve estar contextualizada com a vida. E o Covid-19 está aí, na nossa vida.

sábado, 21 de março de 2020

Pandemia e paranóia escolar


Há qualquer coisa de patético entre a pandemia que nos cerca e algumas preocupações que tenho vindo a ler sobre o processo de avaliação dos alunos. Quando nos confrontamos com uma situação que pode colocar um indivíduo entre a vida e a morte, há pessoas, em pleno período de emergência nacional, a questionar, imagine-se, o "drama" da avaliação escolar. Não encontro uma racional explicação para isto, quando as autoridades de saúde enaltecem que o pico da pandemia poderá ser atingido no início de Maio, o que pode significar que, muito para lá desse momento, todos os cuidados na contenção serão poucos. A avaliar pelo que dizem as autoridades de saúde, pressuponho, especulação minha, que não haverá condições para um regresso à normalidade até ao final do ano escolar. A não ser que o prolonguem ou o "Covid-19" seja, por "milagre", completamente eliminado. Se assim acontecer, este texto deixa de ter sentido. 


Neste momento, face ao quadro que temos pela frente, a pergunta que se coloca é se, nesta complexa situação  de saúde pública que todos estamos a viver, onde existem claras prioridades, fará algum sentido algumas almas estarem preocupadas com os exames nacionais do 4º ano, do 9º, do 11º e 12º, bem como as designadas "provas de aferição"? Os de 4º, 9º e 11º anos são, do meu ponto de vista, absolutamente dispensáveis. Se outras fossem as características do sistema educativo, obviamente que nem disto se falaria. O verdadeiro conhecimento portador de futuro tem outros contornos que não se compaginam com o actual sentido organizacional, curricular, programático e pedagógico. Mas, situemo-nos no sistema em vigor.
Ora bem, tenhamos presente que, neste ano escolar, todos os alunos foram avaliados em, pelo menos, dois dos três períodos. No caso das escolas com avaliação semestral, há um registo e, em ambas as opções, uma exaustiva avaliação continua que teve início em Setembro. Com uma ressalva: na dúvida, face às circunstâncias, o aluno não deve ser prejudicado. Portanto, não vejo onde reside o problema. Quanto ao 12º ano e respectiva acessibilidade ao ensino superior, também não creio que seja um incontornável drama. Os alunos de todo o país estão em igualdade. Mesmo sem exames (imaginemos que a situação se prolonga e atravessa os meses de Maio, Junho ou mesmo Julho), apenas espero que exista o bom senso expresso em uma proposta que assegure uma acessibilidade que corresponda às avaliações anteriores e, sobretudo, respeite os interesses e vocações dos candidatos. O que para mim é completamente despropositado é que este assunto constitua um problema, repito, um drama, quando estamos confrontados com uma impiedosa e devastadora epidemia. O drama, esse, está no surto "Covid-19" e não nos exames nacionais. 

"Mais de 850 milhões de crianças e jovens em todo o mundo, quase metade da população escolar mundial, estão sem aulas devido às medidas de contenção para travar a propagação do novo coronavírus, anunciou ontem a UNESCO."

Mas há quem assim não pense e considere. Com os alunos retidos em casa, a paranóia da preparação para os exames (e não só) anda por aí. Li, no DN, um trabalho interessante subordinado ao título: "Escolas fechadas. Pais a trabalhar em casa desesperam com exagero de TPC". O texto começa assim: "Gravar um vídeo diário a praticar piano, flauta ou guitarra; resmas de exercícios que ultrapassam largamente os 50 minutos de uma aula; trabalhos que os alunos estranham, como um poema sobre conteúdos de Físico-Química; pais que recebem vários vídeos diários da professora do pré-escolar com atividades físicas e desafios, e depois devem devolver vídeos ou fotos para mostrar como as crianças praticaram... Passaram poucos dias do encerramento das escolas decretado pelo governo para combater o novo coronavírus, mas já há pais a dar em loucos. E os desabafos, em tom de desespero, nas redes sociais são prova disso - estão eles próprios a adaptar-se ao teletrabalho e sem a disponibilidade necessária para acompanhar os filhos 24 horas por dia e, ao mesmo tempo, fazerem o papel de professores. (...) "Para nós já é o quinto dia e começa a ficar difícil. Os trabalhos de casa, a falta de braços e de paciência. Acho que se entrou numa onda de loucura porque se está a pensar que os pais estão de férias e têm todo o tempo do mundo para acompanhar as crianças", diz Vítor Jorge, jornalista de publicações especializadas, que está fechado em casa desde sexta-feira com os dois filhos, um rapaz de 9 anos e uma menina de 4. (...) "Passou-se do 8 não para 80, mas para 800. Hoje a professora deve ter feito scanner do livro e mandou fichas até ao final do ano, sem timings. Temos de ver que os tempos não são fáceis e que os pais que estão em teletrabalho não estão no sofá a ver séries e filmes." (...) Crianças na idade das do Vítor exigem acompanhamento constante, ainda mais quando estão fechadas em casa, estão sempre a interromper, pedem ajuda para os exercícios. Depois há a questão logística: se antes da quarentena os pais deixavam as crianças na escola de manhã e iam buscá-las ao fim do dia, agora têm de lhes fazer o almoço, garantir que comem, dar lanches, sempre a interromper o trabalho - a adaptação é difícil." 

"(...) Essa é a vertente da nova realidade escolar trazida pelo coronavírus que Leonor Santos enfatiza. "Não podem partir do princípio de que toda a gente tem computador, nem todos têm, nem têm de ter." Na sua casa, por exemplo, há apenas um - para Leonor trabalhar em casa e para os dois filhos, António (16 anos) e Pedro (11). Nesta terça-feira, o mais velho teve de fazer o TPC de Português antes de a mãe se sentar e iniciar o seu dia de teletrabalho. Da escola do Pedro pediram-lhe que se inscrevesse na Escola Virtual e no Google Classroom - Leonor ainda não tinha tido tempo para isso, mas o rapaz já sabia que teria de entregar trabalhos nesta quarta-feira. A questão é: como vai ser quando todos precisarem de usar o computador ao mesmo tempo?

"(...) Desde que as escolas fecharam na segunda-feira que Alice, aluna do 9.º ano, recebe na plataforma digital Inovar os trabalhos que devem ser realizados todos os dias, como se estivesse na escola. Está a cumprir-se o horário semanal. Ela concorda que os alunos tenham de continuar a aprender, mas discorda da "quantidade exagerada de exercícios, alguns completamente despropositados", que lhe estão a ser pedidos pelos docentes. "Seria bom se os professores nos mandassem ler umas páginas, uma pequena parte da matéria, e mandassem perguntas de consolidação. Mas o que estão a fazer é a pedir trabalhos como se tivéssemos todo o tempo disponível para a escola. Mandam mais trabalhos do que iríamos efetivamente realizar na aula. Quarentena não são férias, mas temos de ter tempo para fazer outras coisas, tal como tínhamos quando estávamos em aulas", diz a jovem.

Estamos, portanto, a viver um tempo de exageros. Uns preocupados com os exames, outros preocupados em despachar matéria. Ora, o tempo passado em casa, obviamente, deverá ser aproveitado para mais e melhor conhecimento. Esse é ponto assente, porque este não é um tempo de férias ou de pausa escolar. Mesmo que fosse! Deverá ser um tempo para ler, ler muito, tempo de aprender outros importantes domínios, tempo para escrever e ir ao encontro do que é estruturalmente importante. Se alguém julga que cumprir os "programas", mesmo que à distância, terá resultados no futuro, desengane-se. Ficará nos relatórios a apresentar, mais tarde despachados para o arquivo morto. Apenas isso. Haja bom senso. Lembrem-se do Professor José Pacheco que, olhando para uma extensa plateia de professores que o escutava, a páginas tantas, perguntou: todos os que aqui estão aprenderam a fazer a "raiz quadrada". Levante o braço quem ainda se lembra de a saber fazer! Levantaram uns poucos que leccionavam Matemática. Partamos, então, para o essencial.
Ilustração: Google Imagens.

Nota: 
Texto publicado no blogue: www.gnose.eu

quinta-feira, 19 de março de 2020

Escolas fechadas. Pais a trabalhar em casa desesperam com exagero de TPC


Gravar um vídeo diário a praticar piano, flauta ou guitarra; resmas de exercícios que ultrapassam largamente os 50 minutos de uma aula; trabalhos que os alunos estranham, como um poema sobre conteúdos de Fisico-Química; pais que recebem vários vídeos diários da professora do pré-escolar com atividades físicas e desafios, e depois devem devolver vídeos ou fotos para mostrar como as crianças praticaram... Passaram poucos dias do encerramento das escolas decretado pelo governo para combater o novo coronavírus, mas já há pais a dar em loucos. E os desabafos, em tom de desespero, nas redes sociais são prova disso - estão eles próprios a adaptar-se ao teletrabalho e sem a disponibilidade necessária para acompanhar os filhos 24 horas por dia e, ao mesmo tempo, fazerem o papel de professores.


"Para nós já é o quinto dia e começa a ficar difícil. Os trabalhos de casa, a falta de braços e de paciência. Acho que se entrou numa onda de loucura porque se está a pensar que os pais estão de férias e têm todo o tempo do mundo para acompanhar as crianças", diz Vítor Jorge, jornalista de publicações especializadas, que está fechado em casa desde sexta-feira com os dois filhos, um rapaz de 9 anos e uma menina de 4.
Na segunda-feira à noite, conta, um grupo de pais entrou em contacto com a professora do filho - aluno do 3.º ano - a dizer que era importante as crianças terem algumas tarefas. "Passou-se do 8 não para 80, mas para 800. Hoje a professora deve ter feito scanner do livro e mandou fichas até ao final do ano, sem timings. Temos de ver que os tempos não são fáceis e que os pais que estão em teletrabalho não estão no sofá a ver séries e filmes."
Crianças na idade das de Vítor exigem acompanhamento constante, ainda mais quando estão fechadas em casa, estão sempre a interromper, pedem ajuda para os exercícios. Depois há a questão logística: se antes da quarentena os pais deixavam as crianças na escola de manhã e iam buscá-las ao fim do dia, agora têm de lhes fazer o almoço, garantir que comem, dar lanches, sempre a interromper o trabalho - a adaptação é difícil.

E há a questão de pura e simplesmente não se ter conhecimento das matérias para poder ajudar os filhos - quem é da área de letras desespera com a matemática, há quem fique com os cabelos em pé com as artes plásticas. "O meu filho está no 3.º ano e alguns exercícios que ele tem de fazer são de matérias que eu só dei no 6.º ou no 7.º ano. Vejo-me obrigado a ter o computador ao lado para fazer pesquisa no Google."

(...) Os pedidos de trabalhos chegam por via eletrónica, por WhatsApp, pelas várias plataformas, como o Inovar ou o Moodle. E isso levanta outra questão: a existência de tecnologias em casa. Se é certo que praticamente toda a gente as tem, também é verdade que quem está em teletrabalho não pode dispensar o computador aos filhos a qualquer hora.
Essa é a vertente da nova realidade escolar trazida pelo coronavírus que Leonor Santos enfatiza. "Não podem partir do princípio de que toda a gente tem computador, nem todos têm, nem têm de ter."
Na sua casa, por exemplo, há apenas um - para Leonor trabalhar em casa e para os dois filhos, António (16 anos) e Pedro (11). Nesta terça-feira, o mais velho teve de fazer o TPC de Português antes de a mãe se sentar e iniciar o seu dia de teletrabalho. Da escola do Pedro pediram-lhe que se inscrevesse na Escola Virtual e no Google Classroom - Leonor ainda não tinha tido tempo para isso, mas o rapaz já sabia que teria de entregar trabalhos nesta quarta-feira. A questão é: como vai ser quando todos precisarem de usar o computador ao mesmo tempo?

"É uma medida que estimula a desigualdade"

Leonor faz questão de frisar que não está contra as aulas à distância depois do encerramento das escolas - o que defende é que o processo seja feito faseadamente. "Tem de se garantir que todos têm acesso, têm tecnologia, para serem autónomos."
E isso leva-a a apontar o que considera ser o segundo problema desta questão: "É uma medida que estimula a desigualdade e a discriminação, é elitista. O elo mais fraco são sempre os mesmos." Lembra ainda que "é preciso que os professores percebam que os pais não estão a viver a sua vida normal". "Fui de manhã ao supermercado e passei uma hora em filas, depois tive de fazer o almoço", o que não acontece quando está no seu local de trabalho e os filhos na escola.
O presidente da Associação de Diretores de Agrupamentos entende que esta é igualmente uma oportunidade para se perceber que crianças e adultos têm de ter instrumentos e rede wi-fi nas suas casas. "É uma questão social a que o governo tem de estar atento, e as juntas de freguesia também", diz, não deixando de referir que a maioria dos alunos do escalão A têm excelentes telemóveis.
Na casa de Vítor Jorge existem dois portáteis, mas quando o filho precisar, ou ele ou a mulher terão de parar o trabalho. Os TPC que a professora enviou por e-mail - e ainda não começaram as videoconferências - vai ainda obrigá-lo a sair de casa para imprimir as folhas de exercício porque não tem impressora. "Isto quando toda a gente está a sugerir que não se vá à rua."

Mais matéria do que nas aulas

Desde que as escolas fecharam na segunda-feira que Alice, aluna do 9.º ano, recebe na plataforma digital Inovar os trabalhos que devem ser realizados todos os dias, como se estivesse na escola. Está a cumprir-se o horário semanal. Ela concorda que os alunos tenham de continuar a aprender, mas discorda da "quantidade exagerada de exercícios, alguns completamente despropositados", que lhe estão a ser pedidos pelos docentes.

"Seria bom se os professores nos mandassem ler umas páginas, uma pequena parte da matéria, e mandassem perguntas de consolidação. Mas o que estão a fazer é a pedir trabalhos como se tivéssemos todo o tempo disponível para a escola. Mandam mais trabalhos do que iríamos efetivamente realizar na aula. Quarentena não são férias, mas temos de ter tempo para fazer outras coisas, tal como tínhamos quando estávamos em aulas", diz a jovem.
Por exemplo, para a aula de Francês desta terça-feira teria de fazer dois exercícios do livro e vários outros - ouvir duas músicas e responder a questões sobre as mesmas e ainda visualizar um vídeo na internet para responder a outras três perguntas. "É óbvio que em 50 minutos de aula - e não são 50 minutos porque entre sentar e começarmos a trabalhar perdemos 15 minutos - nunca conseguiríamos fazer isto. Mesmo em casa, sem a confusão da turma, levei mais de uma hora."

O que custa alterar rotinas

Quando os trabalhos pedidos pelos professores começaram a chegar, Inês Malhão precisou de ajudar o filho, aluno do 8.º ano, a organizar-se. Chegaram apenas exercícios de cinco disciplinas, mas dado o volume - e até porque o filho é um pouco desorganizado - teve de ser ela a pôr ordem nas coisas. "Ele estava completamente assoberbado com tanta coisa."
A solução foi estabelecerem um horário por disciplina para que o rapaz trabalhe como se estivesse na escola que frequenta, a Padre António Vieira, em Lisboa. Inês não tem do que se queixar, considera que aquilo que está a ser pedido pelos professores é equilibrado. Ao contrário do que pensa Vítor, Leonor e a aluna Alice e tantos pais que desesperam nas redes sociais. E até o representante dos diretores de turma, que admite alguns exageros nestes primeiros dias.

A cambalhota na rotina das famílias com filhos em idade escolar ilustra bem como as vidas se alteraram de um dia para o outro. "É uma aprendizagem para as famílias, que devem encontrar estratégias para diminuir a pressão de ter as crianças em casa e estarem em teletrabalho, mas não deixa de ser difícil", diz Cláudia Vieira, psicóloga educacional.
Aconselha, contudo, a que as famílias se organizem no sentido de estabelecer horários, porque o teletrabalho exige muita disciplina e é interrompido pelos pequenos-almoços, almoços, lanches... Mas alerta os pais que os miúdos precisam de monitorização, mas têm de ter alguma autonomia na realização dos trabalhos, tal como na escola. Outra dica é estimular a interação entre os irmãos.

A psicóloga educacional entende que, quando as crianças são obrigadas a passar tanto tempo em casa, deve-se trabalhar para o seu desenvolvimento integral e não apenas os conteúdos escolares. "É a oportunidade para, por exemplo, realizar um trabalho-projeto com a família, em várias áreas - se for sobre uma borboleta, pode ter uma abordagem de Biologia ou um poema para Português. Não estamos preparados para a flexibilidade de conteúdos."
O vídeo, com Margarida Pinto Correia, sublinha que o primeiro passo é garantir que os horários são cumpridos e a verificação de que todos os trabalhos preparados foram realizados. E incentiva os pais a participar e a ajudar a identificar dúvidas.
A Direção-Geral da Educação diz ainda que os pais devem manter o contacto com os professores e os diretores de turma porque os alunos não estão de férias. Mas também faz questão de lembrar que as crianças precisam de tempos livres e que se deve incentivar a leitura.
Fonte: DN

sábado, 14 de março de 2020

"Sejam autónomos nas decisões que já tomámos por vós"


Faz hoje quatro meses. Li na edição do JM de 14 de Novembro de 2019: “(...) Já que estamos no início de um novo mandato, queria assumir, junto da comunidade educativa desta escola, toda a disponibilidade, por parte da tutela, para continuarmos a colaborar e a apoiar aqueles que são os projetos educativos de cada escola e, neste particular, o projeto educativo da Escola Dr. Ângelo Augusto da Silva (...)” - Dr. Jorge Carvalho, secretário Regional da Educação.


E li mais: "(...) Nós entendemos que só assim, respeitando as especificidades, os diferentes contextos e os diferentes ambientes de aprendizagem é que é possível conseguirmos dar resposta letiva, mas também uma resposta individual” (...) “Ou seja, termos a capacidade de proporcionarmos as condições para que cada um, à sua medida, possa atingir o sucesso (...)". 
Guardei o documento e, serenamente, aguardei. Passaram-se quatro meses e regressei ao arquivo para tomar o pulso a tão extraordinárias preocupações. De um fatinho de tamanho único para todos, característica do sistema educativo desde a Revolução Industrial, finalmente, o secretário desejava e apontava para um fatinho à medida de cada um. No essencial, uma resposta individual de acordo com os interesses e expectativas de cada jovem. Por outras palavras, o que ele quis dizer é que o "sonho comanda a vida" e que é o sistema que tem de se adaptar às novas circunstâncias e não o aluno à imposição vertical que determina tipos de organização, de currículos, de programas e de toda a zona pedagógica. O que ele, naturalmente, quis dizer é que a noção de estabelecimento de ensino seria alterada para um conceito de estabelecimento de aprendizagem. E o que ele, deduzo, ainda quis transmitir aos professores é que, sendo o aluno prioritário, iria tomar medidas para acabar com a excessiva burocracia que monopoliza e inferniza os docentes.

Cheguei a pensar que o secretário, finalmente, seguiria o que tantos investigadores e autores de diversos sectores e áreas do conhecimento há muito têm vindo a salientar. E pensei mesmo que aquela esclarecida posição vinha na sequência de um qualquer roteiro sobre o que de bom vem sendo realizado em vários países, mesmo em muitas escolas de Portugal, na sequência, até, dos alertas de tantas instituições. Mas não, erro meu. Passados quatro meses, aqui sentado frente ao teclado, perpassa-me, uma vez mais, as palavras do Professor Doutor Licínio Lima "sejam autónomos nas decisões que já tomámos por vós". 
O resto é paleio circunstancial para entreter incautos.

As rotinas mantêm-se e a escola continua a ser aquilo que, por um lado, a ausência de pensamento determina, por outro, o espelho de uma centralização que evita ou mesmo bloqueia diferentes formatos organizacionais e concomitante pedagogia diferenciada. E nisto, lamento, há um ruidoso silêncio, uma submissão irritante, uma abdicação do pensamento, perseguições e mensagens subliminares nesse sentido, o condicionamento e o medo de uma qualquer mudança, um incentivo à desconfiança nos e dos professores, agravada pela avaliação do desempenho docente que tem gerado muitas incompatibilidades. 
Eu diria que a engrenagem é perfeita. No mau sentido, mas é! Até sob a capa da democracia muitos eternizam-se nos executivos dos estabelecimentos, como se fossem "correias de transmissão", incapazes de assumir que tudo tem um tempo, que "uma escola sem pensamento crítico não é escola" e que tantos outros poderiam fazer muito mais e melhor do que aqueles que, ilusoriamente, julgam ser os portadores de uma escola com futuro. 
Há dias dizia-me uma pessoa por quem nutro uma enorme consideração: há especialistas em "juntar palavras". E isso não chega. É preciso ser consequente. Passados quatro meses tudo continua enervantemente igual. E continuará, certamente.
Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 4 de março de 2020

A cidadania vive-se, não se aprende por discursos ou a estudar


Professor por inteiro e diretor da escola Tangerina todos os dias, Manuel Rangel nunca deixou de dar aulas desde que concluiu o curso do Magistério Primário, no Porto. Da formação de educadores e professores ao 1o Ciclo, ser professor foi o seu “múnus” e a Tangerina o projeto central da sua vida – que terminou apenas algum tempo depois desta entrevista, que seria a última. Recebeu a PÁGINA com o sorriso que era marca da sua imagem, e como tal irá perdurar na memória de tantos que com ele partilharam a construção de saberes. Até sempre! [1956 / 2015]

A Tangerina é um projeto que nasceu em condições muito especiais.

Sim. Era um projeto já antigo, de algumas pessoas. Há cerca de 20 anos, quando a escola foi fundada, não havia um espaço com um projeto educativo que, do ponto de vista da filosofia de base, fosse realmente diferente. O projeto acabou por nascer de uma forma um bocadinho diferente do que é costume, a partir dos próprios pais. Um grupo de professores estava a trabalhar numa escola, também privada, onde se começou a aplicar um programa de Matemática que acabou por ser um êxito, o Comprehensive School Mathematics Program. Os pais organizaram-se para avançar com uma escola onde se desse continuidade a esse programa, que é o que ainda usamos. Teve o lado bom de ter partido dos pais, mais ainda por ter começado pelo lado da Pedagogia, da Educação.

O que é que distingue esta escola das outras?

Isto não tem nada de especialmente novo. O que seguimos aqui são os princípios que há cento e tal anos se anda a dizer que deviam orientar a chamada Escola Nova. A grande questão é traduzir isso em mais do que declarações de intenção. Foram criados os chamados projetos educativos e aquilo é papel do princípio ao fim… Ou seja, são princípios, objetivos, intenções, e depois burocracia, caracterização pseudossociológica dos meios, mas não tem influência nenhuma sobre a ação. Costumo dizer que não temos nada de novo, a não ser tentar fazer o que está dito nesses princípios. O que tem sido difícil para a instituição Escola é encontrar em cada uma das disciplinas, em cada um dos conteúdos, e até na forma de estar, a tradução prática desses mesmos princípios no dia-a-dia, gesto a gesto. Acho que, em geral, as pessoas acreditam neles, mas depois vão trabalhar a Matemática e nem a Matemática é posta daquela maneira, nem os professores se colocam daquela maneira. Mas isto em tudo, mesmo na centralidade que é dada à criança. 

Vivemos anos quase disparatadamente pedocêntricos; a criança tornou-se a ‘rainha’, mas nas partes mais inúteis, fúteis e perigosas. As crianças têm tudo, é-lhes dado tudo, é-lhes proporcionado tudo. Não digo que seja universal, mas com frequência tornam-se chantagistas, birrentas... E os pais acabam por ceder. Mas depois, no essencial, e isso é muito nítido na Escola, elas não ocupam o centro, porque não lhes é reconhecido o estatuto de pessoa, de cidadania, de quem tem opinião.

Nas escolas, o foco pedagógico não está ‘bem direcionado’?

Não. Diz-se que a criança tem de ter opinião, mas depois isso não se traduz, sobretudo nas matérias. A Escola continua a querer as coisas fechadas e padronizadas. Por exemplo, o Português é dado com respostas fechadas e aquilo que no fundo se ensina às crianças é a responder ao que o professor quer. A criança preocupa-se mais em saber o que o professor quer que ela responda do que aquilo que ela acha. Não se lhe dá o estatuto de maioridade no pensamento. É evidente que não é de maturidade, mas é de maioridade. As crianças são pertinentes naquilo que dizem, têm um pensamento válido, são capazes de discutir entre elas. Nós vamos aplicando aqui esse programa da filosofia para crianças. No fundo, a intenção de explorar questões a partir do grupo. E com a convicção de que as crianças são capazes de fazer perguntas pertinentes, de discutir, de argumentar. Mas isto é uma aprendizagem que se faz. E o programa de Matemática é isto, também.

Como é ensinada-aprendida a Matemática?

No fundo, trabalhamos os mesmos conteúdos previstos no programa oficial do 1o Ciclo do Ensino Básico, mas com uma metodologia totalmente diferente, mais assente em conceitos do que em técnicas. A Escola em geral preocupa-se em ensinar rapidamente truques e técnicas às crianças, como se o 1o Ciclo fosse o fim da escolaridade obrigatória. Este programa é mais centrado em conceitos e, sendo da área da Matemática, reclama-se um programa socrático. Temos uns manuais que seguimos, onde os professores têm o que devem fazer aula a aula. E a coisa mais espantosa, que até assusta um bocadinho, é que, parecendo que o professor vai ter de estar condicionado àquilo, ao fim de algum tempo, percebemos que esses manuais são em si um instrumento de formação dos próprios professores, porque não há fala do professor que não acabe com um ponto de interrogação. Portanto, o que nós aprendemos com este programa é que até na Matemática, que parece distante, tudo pode ser tirado das próprias crianças.

O programa não dá margem aos professores?

A princípio é um bocadinho condicionante, porque os professores têm ali toda a aula, as situações e até as respostas possíveis dos alunos. Mas, no fundo, para condicionar o professor a que continue a fazer perguntas. O que acontece é que, ao fim de uns meses, ele vai-se libertando daquilo, vai adaptando aquela estrutura ao grupo, vai mudando a situação e o contexto, vai suprimindo aulas ou juntando aulas... Os professores são todos diferentes, mas todos usam o mesmo programa.

E os resultados?

De facto, o que é espantoso é o resultado. Porque ao fim destes anos, todos os dias temos dúvidas: se é este o caminho, se estamos a fazer bem, se podíamos ir mais longe... Acho que ter dúvidas é o que nos torna vivos. E nessa vigilância quotidiana nunca estamos muito seguros de que chegamos ao modelo final, mas o que nos dá mais gosto – e talvez seja a nossa maior vitória – é termos demonstrado nestes já quase 20 anos que é possível manter todos os princípios e ter bons resultados. O que se tem dito muito nos últimos anos é que nas escolas onde os alunos estão contentes, alegres, felizes, não se aprende e os resultados baixam. Parece que para haver bons resultados é preciso ser tudo uma chatice. E eu acho que aqui na escola o mais gratificante para nós é o feedback dado pelos pais, de que os alunos vivem bem aqui dentro, têm um grande à-vontade e depois têm muito bons resultados.

Não estamos aqui a trabalhar para o exame. A nossa preocupação vai muito mais longe...

Portanto, a escola segue os currículos e o que muda é o método?

Não diria que seguimos, mas temos como referência final os conteúdos. Por exemplo, em Estudo do Meio praticamente não seguimos o programa; trabalhamos por projetos e, portanto, é o que aparecer. Partimos do princípio inverso. Os conteúdos de Estudo do Meio nos quatro primeiros anos são, e bem, as coisas mais próximas da vida das crianças: elas próprias, o meio onde vivem, a família, o bairro… Os programas tentam dar uma visão enciclopédica do mundo que cerca as crianças. Nós chegamos lá de outra maneira, fazemos um bocadinho ao contrário: em vez de darmos no primeiro ano um bocadinho do corpo humano, da família, do bairro e das instituições, e no segundo ano outro bocadinho do corpo humano, um bocadinho do espaço, do meio... Deixamos que as coisas fluam, que eles peguem nos temas que lhes interessem e vão trabalhando e estudando, confiando que na maior parte das vezes vão ao encontro do que é pretendido. E o que nós, professores, temos de fazer é a leitura oposta, ou seja, eles já trabalharam isto, isto e isto. É certo que há coisas importantes a que não se chega, acontece muito no 4o ano, mas então nós acrescentamos isso. É isto que eu distingo entre ter como referência ou seguir o programa. E na Matemática é um bocado a mesma coisa.

E vão cumprindo as metas...

Temos de cumprir, até porque os nossos alunos são sujeitos a exame. Mas fazemos o nosso programa normalmente. Temos é de fazer um levantamento daquilo que está nas metas e não está no nosso programa e de chegar ao 3o e 4o anos e, consideremos absurdos ou não, acrescentar os pontos em falta. Temos essa preocupação, mas não deixamos que a pressão exterior estrague as nossas perspetivas. Uma coisa muito frequente – e é um dos problemas dos exames – é as pessoas estarem sempre a desculpar-se por não fazerem isto ou aquilo porque têm exames, porque têm muito programa para dar... O que nós temos vindo a provar é que podemos fazer aquilo em que acreditamos e que consideramos mais importante: que eles tenham a cabeça bem estruturada, que saibam pensar nas coisas. O resto torna-se mais fácil.

Valorizam muito os verbos “aprender” e “divertir”.

Sim. Uma coisa e outra não são inconciliáveis, pelo contrário.

E acham que essa conjugação se tem perdido nas escolas?

Sim. Sobretudo agora, com a competição que existe na entrada para as faculdades, as pessoas acham que tudo é decisivo desde os primeiros anos. E a história dos rankings veio agravar isso. As pessoas preferem os bons resultados académicos, embora isso, às vezes, nem traduza exatamente o bem-estar e o contentamento das crianças. Tenho dito a vários pais que talvez esta não seja a escola que procuram. Nem toda a gente educa da mesma maneira: há pessoas que são, de facto, rígidas, centradas no estritamente académico, nos resultados, e há outras que pensam um bocadinho mais longe. 

O que acontece muitas vezes é que os resultados são conseguidos a partir de sistemas muito estreitos, muito forçados, em vez de se pensar em alunos mais autónomos, mais interessados, capazes de se governarem a si próprios. Essa é a nossa preocupação. Nós não estamos aqui a trabalhar para o exame; a nossa preocupação vai muito mais longe. Para nós, é mais importante que eles se submetam a exame sem demasiado nervosismo, com alguma segurança, que façam o seu melhor e que percebam que quatro anos da sua vida não se resumem a um exame. Para nós, é muito mais importante que estejam emocionalmente bem, que gostem de vir à escola, que gostem de aprender, que sejam interessados por questões culturais. Gratifica-me mais saber que os nossos alunos são fabulosos num museu, enquanto outros acham uma seca. Para mim, o interesse cultural, o saber discutir um tema, é muito mais importante do que uma boa nota nos exames.

Eles são desafiados e estimulados para isso?

Uma criança com a cabeça bem organizada faz a parte escolar, que é a mais simples. O resto é muito mais complicado: estudar, saber procurar, levantar questões, ir mais longe... A parte escolar é como os algoritmos na Matemática: se souberem os conceitos, os algoritmos são mais simples; se não perceberem o que estão a fazer, falham sistematicamente. E este é o erro do ensino mais tradicional, estar tão preocupado com um certo tipo de eficiência que queima etapas e portanto não lhes dá as armas para que percebam o que estão a fazer. Portanto, quando os pais põem aqui as crianças, têm de ter muito claro que o nosso trabalho não é para bons resultados traduzidos em questões académicas. Mas temos a segurança das notas dos nossos alunos serem muito boas no 5o ano, e tanto faz irem para o setor público ou continuarem no privado.

Há uma boa integração?

Há um choque na forma de estar, sobretudo. Uma mãe contou-me que há tempos foi chamada à escola e todas as queixas que lhe fizeram eram coisas que ela considerava boas: que o filho fazia muitas perguntas, que estava sempre a responder às questões, que tratava os professores com uma proximidade muito grande – tudo o que essa mãe sempre quis. Existe esse choque relativamente à forma de estar, mas as crianças têm uma grande capacidade de se adaptarem e de perceberem quais são as novas regras. E a verdade é que têm sucesso escolar, e isso dá-nos gozo. Embora não trabalhemos para a nota académica, é bom saber que aquilo que elas aprenderam aqui funciona como um bom suporte, mesmo no ensino mais tradicional. Acreditamos que, no fundo, estamos aqui para perceber o mundo e para colocar questões sobre o mundo. Nós estamos muito mais interessados nas perguntas dos miúdos do que nas respostas, e o ensino preocupa-se muito mais com o contrário: a resposta, o fechado, o tipificado, o estereotipado, o não questionar. É triste que a Escola se preocupe sempre mais com a avaliação do que com o ensino. Aliás, pouco se ensina para se avaliar imenso. A Escola devia estimular a linguagem, a expressão, o conhecimento, o contacto, a experiência.

A escola deve servir para as crianças perceberem o mundo e expressarem ideias e sentimentos sobre ele.

É necessário mais espaço para as expressões?

Os nossos dois pilares são as expressões e os projetos; são as nossas opções metodológicas instrumentais. A expressão é o que nos permite respeitar as crianças e dar um sentido correto ao trabalho que fazemos com elas; é pensar que toda a escola deve servir para as crianças entenderem o mundo e expressarem ideias e sentimentos sobre ele. E só podemos fazer isto se dermos uma importância grande à expressão. As pessoas reduzem as expressões a umas pinturinhas, a uns ‘macacos’ expostos na parede. Não é isso! É a centralidade da expressão efetiva das crianças! A primeira coisa que uma criança faz é exprimir-se por desenho, por gestos. E o que temos é de dar abertura e espaço para ela se exprimir, porque aos três, quatro anos é isso que ela tem de fazer: exprimir as suas preocupações, os seus medos, as suas ideias… Por outro lado, trabalhar as expressões é trabalhar diferentes linguagens. Aqui, as expressões são centrais e atravessam todas as áreas. São o reflexo do nosso olhar sobre o papel da escola, que é tornar a criança capaz de entender o mundo através de múltiplas linguagens, para depois saber exprimir o seu pensamento, as suas ideias e os seus sentimentos sobre o próprio mundo. Por isso, uma das nossas linhas é a Educação pela Arte. Esta é uma escola geral, mas a Arte é um instrumento fundamental, que valorizamos muito.

E relativamente aos projetos?

Os projetos são um instrumento que nos permite dar às crianças a noção do que é a escola, onde elas podem estudar o que quiserem saber. Esta é a diferença em relação ao Estudo do Meio – não é dar-lhes 20 aulas sobre o corpo humano, mais cinco sobre o espaço ou mais sete sobre História. Há coisas que nós sabemos, que são o nosso património cultural e histórico, que é importante passar, mas isso que venha delas, que venha a propósito das suas inquietações. Há algum tempo, entrei na sala dos quatro anos e vi que estavam a estudar Matisse. Estranhei, mas a educadora explicou-me que um dia estavam a fazer colagens e, ao ver um dos trabalhos, comentou que parecia um quadro de Matisse. Um dos miúdos perguntou quem era e ela explicou que era um pintor que trabalhou muito com recorte e colagem. E uma das crianças disse que esse podia ser um assunto a estudar. Isto é um pequeno exemplo. Aos 4 anos eles já tinham percebido para que deve ser a escola, que é para estudar aquilo que nos despertar a curiosidade.

Falemos da proximidade entre alunos e professores. Eles almoçam juntos nas salas de aula...

Sim. Nós temos, oficialmente, um espaço de cantina, mas este acaba por ser mais um momento de convívio muito importante. Cria responsabilidade e envolvimento. E para nós faz parte da educação. Em cada sala, temos equipas responsáveis por limpar a sala depois de trabalharem, ir buscar a louça e pôr a mesa e limpar no fim. Isto trabalha muito a questão dos papéis. Todos estamos ali, todos temos obrigação de fazer; se sujamos, temos de limpar. É a tal educação para a cidadania, uma expressão que, sinceramente, até me incomoda, porque não se traduz em nada. Há escolas que têm aulas de Educação para a Cidadania, mas depois estão organizadas de forma anti-cidadã. É mais um conteúdo que os alunos têm de decorar para ‘papaguearem e vomitarem’ nos testes. A cidadania não se aprende por discursos, por se dizer ou por estudar. A cidadania vive-se e só se aprende se se viver.

A Tangerina é o projeto da sua vida?

É um projeto central na minha vida. E continua a dar-me gozo vir para aqui todos os dias, reencontrar as crianças, e pensar no que fazemos. Tenho sempre uma grande inquietação, nunca estou satisfeito. Mas tenho um grande gozo nisto!

Maria João Leite (entrevista)
Ana Alvim (fotografia)

NOTA
Com a devida vénia, transcrito da Página da Educação.