terça-feira, 31 de maio de 2022

Os tablet e os 30% do secretário


"A indisciplina na sala de aula diminuiu em mais de 30% com a implementação de manuais digitais. (...) em algumas disciplinas o aproveitamento é muito mais significativo" - enalteceu o secretário da Educação da Madeira, numa conferência realizada sob a égide da Porto Editora.



Claro, outra declaração não seria de esperar. O político senta-se numa cadeira, fala e aplaude uma dada iniciativa; tempos depois senta-se na segunda cadeira e aplaude a execução e, agora, sentou-se na terceira e aplaudiu o que foi ou está a ser feito. Há políticos assim! O habitual. Dou de barato porque conheço o processo. O problema, no entanto, não é, definitivamente, esse. É outro e muito mais profundo. Enquanto o "brinquedo" for novidade, ainda assim, alegadamente 70%, dentro deste sistema, continua a "perturbar". O que pode significar que o problema persiste. Porque o que está em causa, no caso da tal "indisciplina" é percebermos onde estão as causas. E é nessas que o secretário devia actuar. E não actua, isoladamente ou no conjunto do governo.

Basta ler o texto, que aplaudo e sugiro a leitura atenta, do Dr. Sandro Nóbrega, na sua página de facebook: (20+) Sandro Nóbrega | Facebook. Começa assim sobre os tais 30%: "Perguntas: onde estão estes dados? De que forma foram obtidos? Qual a amostra? Que tratamento de informação foi feita? A que tipologia de problema disciplinar - em aparente diminuição - nos referimos aqui? Quem tratou e fez o cruzamento de dados e fez uma análise entre causa e efeito, ou seja, como afirmar, com justiça, que a suposta diminuição da indisciplina tem ligação direta com a introdução dos tablets na sala de aula? Já agora, uma palavra aos tablets na aula, uma verdadeira oportunidade que se está a perder. (...)"

Repito aqui aquilo que assumiu Tony Bates, da Microsoft: "Uma boa aprendizagem supera uma escolha tecnológica pobre, mas a tecnologia nunca salvará o mau ensino”. O texto do Professor Sandro Nóbrega vai nesse sentido. Portanto, seria bom que o secretário da Educação tomasse consciência da realidade, isto é, que não é o tablet que esbaterá a indisciplina nem salvará a má aprendizagem, o abandono e o insucesso. O problema está, continuo a dizê-lo, nos currículos, desarticulados ao longo dos anos, nos extensos programas cheios de tralha, está na actual concepção de escola e na verdadeira autonomia que seja distintiva entre estabelecimentos de aprendizagem, está na rejeição da centralização dos processos, na infernal burocracia que não serve o aluno, na obsessão por uma avaliação de sentido único que se aproxima mais da classificação do que da aprendizagem, está no número de alunos por estabelecimento, na ruptura relativamente aos conceitos de aula e de turma, na estúpida avaliação de desempenho dos professores, está nos bloqueios da carreira docente, eu sei lá (!) o que está em causa. Tudo.

O secretário deveria ter em atenção não o tablet mas o sistema. O problema, o erro, reside aí. Eu ando, sofregamente, a ler Edgar Morin. Há tempos dei com uma entrevista que me tocou. São dele estas palavras: "(...) Os saberes não devem assassinar a curiosidade. (...)". Digo eu, a escola mata a curiosidade, porque o que interessa é a resposta, não é a pergunta. O tablet, por si só, em concordância com os programas, mata o talento e o sonho de cada aluno. Ele dá o exemplo da literatura e das artes: "(...) Pegue-se em Guerra e Paz, de Tolstói, por exemplo. O professor de Literatura pode pedir a seu colega de História para ajudá-lo a situar a obra na história da Rússia. Pode solicitar a um psicólogo, da escola ou não, que converse com a classe sobre as características psicológicas dos personagens e as relações entre eles; a um sociólogo que ajude na compreensão da organização social da época. Toda a grande obra de literatura tem a sua dimensão histórica, psicológica, social, filosófica e cada um desses aspectos traz esclarecimentos e informações importantes para o estudante. (...) O professor deve buscar sempre o trabalho interdisciplinar: "(...) Ele deve ter consciência da importância de sua disciplina, mas precisa perceber também que, com a iluminação de outros olhares, vai ficar muito mais interessante. O professor pode procurar ter essa cultura menos especializada, enquanto não existir uma mudança na formação e na organização dos saberes. O professor de Literatura precisa conhecer um pouco de história e de psicologia, assim como o de Matemática e o de Física necessitam de uma formação literária. Hoje existe um abismo entre as humanidades e as ciências, o que é grave para as duas. Somente uma comunicação entre elas vai propiciar o nascimento de uma nova cultura, e essa, sim, deverá perpassar a formação de todos os profissionais."

Não é o tablet, mas o sistema, todo o sistema que está em causa. Depois é que vem o tablet. Não são as disciplinas, cada uma de per si, como se o conhecimento pudesse ser decomposto (tudo está ligado a tudo) que conduzirão à redução da tal indisciplina, mas numa outra forma de olhar e ver a Escola. Já tem uns anos li, no Le Monde Diplomatique, um artigo com o título: "A violência NA Escola e a violência DA escola. Não é, tampouco, uma "carta da convivialidade" que resolve o problema da indisciplina, mas a estrutura da escola, o pensamento e a mentalidade que a constituem. Já é tempo de pensar nisso. Uma viagem por várias escolas talvez fosse importante.

Parabéns Professor Sandro Nóbrega pela sua oportuníssima posição.

Ilustração: Google Imagens

segunda-feira, 30 de maio de 2022

 Nota

Carlos Neto é um Professor notável. Tive o privilégio de ser seu colega de turma. Absorvemos tudo o que era possível naquela memorável Escola. Jubilou-se, mas fica a sua Obra que, naturalmente, terá os seus seguidores. Um abraço meu bom e Distinto Amigo.

Atirada para este ano por causa da pandemia, a última lição de Carlos Neto, o professor e investigador que pôs o direito a brincar das crianças na ordem do dia, aconteceu ontem num pavilhão cheio da Faculdade de Motricidade Humana, na Cruz Quebrada. Na hora da despedida, os reptos foram os que acompanham uma carreira de defesa do espaço e tempo para o “corpo em movimento”, mas também de perspetiva sobre a vida na universidade, desde os primórdios da sua entrada nas lides do desporto em 1970, na altura para fazer o curso de instrutor no Instituto Nacional de Educação Física – a escola que viria a ser, depois do 25 de Abril, o Instituto Superior de Educação Física de Lisboa e hoje é a FMH, integrada na Universidade de Lisboa.



Carlos Neto invocou os mestres – alguns que já partiram, e que abriram os caminhos nesta área em Portugal, como os pedagogos João dos Santos, Noronha Feio e António Paula Brito – e defendeu que a escola que construíram sempre inquietos não poderá ficar parada no tempo perante uma sociedade e tempos desconhecidos e imprevisíveis.

“A melhor brincadeira era jogar à pedrada”

"Vim de um mundo diferente, de imaginação, de fantasia, de bem-estar, de busca de prazer, elevação, iluminação e transcendência que é o estado de espírito de uma criança”, começou Carlos Neto, lembrando o percurso que procurou fazer ao longo da carreira, tanto na observação como no ensino. E que partiu da sua própria vivência, recordou.

“Nasci num país pobre, em 1951, numa cidade que após o fim da Segunda Guerra vivia em pobreza, num regime ditatorial. O que eu tinha à minha mão como criança era o jornal O Século que o meu pai comprava todos os dias, um livro que havia em todas as casas que era a Bíblia e a emissora nacional. Tínhamos uma escola, uma escola que era uma igreja e ditatorial também, onde o ensino era replicativo e expositivo, como ainda hoje é. Tínhamos uma segunda escola, que era uma escola da aprendizagem da vida, a escola da rua, que está em vias da extinção. Hoje não vemos crianças na cidade. Infelizmente essa escola acabou”, disse, lembrando os amigos de rua e as partidas de futebol no Sport Clube Leiria e Marrazes, onde jogou.

“A melhor brincadeira que tinha era jogar à pedrada com os meus amigos e às lutas, porque isso ensinava-nos a ser mais fortalecidos, ter mais capacidade de compreender os outros e fairplay”.

Em 1970, entrou na escola de instrutores de Educação Física de Lisboa, em anos de inquietação, que o acompanhou sempre, lembrou o presidente da FMH, Luís Sardinha, que o descreveu como um professor comprometido dentro e fora de aula e uma influência decisiva para o estudo científico da aventura de ser criança.

“Esta escola foi talvez aquela que mais influências teve do Maio de 68. Recordo-me de irmos a Paris só para comprar livros”, lembrou Carlos Neto. Os que mais o marcaram e seriam as novas bases de trabalho foram Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, A Imagem do Corpo, de Paul Schilder, A Formação do Símbolo na Criança, de Jean Piaget e do Do Ato ao Pensamento, de Henri Wallon, recordou. “Nesta escola tínhamos ainda um corpo que era visto ainda apenas na perspetiva da ginástica sueca”.


Começou então a aventura de perceber a busca das crianças pela aventura e de juntar outras dimensões ao desenvolvimento motor, sem esquecer sentimentos e afetos, ao mesmo tempo que a escola e o saber se sistematizava. O primeiro passo foi a Educação Física e as Ciências do Desporto tornarem-se matéria universitária em pé de igualdade com outros saberes, com o instituto a ser reconhecida como instituição de ensino superior em 1975. “Antes do 25 de Abril éramos mal remunerados, não tínhamos lugar nos quadros das escolas, não tínhamos férias, mas éramos muito bem aceites nas escolas pelas crianças, éramos os confidentes, porque somos do movimento, homens do corpo, da aventura, e as crianças buscam isso”, disse, lamentando que a escola ainda não tenha interiorizado o significado dessa integração de cérebro e corpo. “É uma pena que a escola ainda não tenha compreendido que para aprender é preciso ter um corpo ativo e não estar calado, quieto e sentado, em muitos casos ouvindo professores cansados, velhos e chatos.”

À sala cheia, lembrou marcos de cinco décadas, com lembranças como, à falta de material didático, irem a um rio Jamor malcheiroso tirar pneus para servirem de obstáculos ou, ao início, ser preciso ter 1,85m de altura para se ser instrutor de educação física e voz de comando.

“Ser professor leva muito tempo”

“Tenho as mesmas dúvidas hoje nesta lição que tinha na primeira aula que dei (em 1972). Recuperar a espontaneidade e a autenticidade, as duas coisas essenciais para ser professor, leva muito tempo, para sermos capazes de nos compreender”, disse, lembrando que tudo o que aprendeu sobre essa arte teve lugar no externato a Torre, onde começou a dar aulas e nunca mais parou, depois do 25 de Abril uma cooperativa de ensino. “Hoje é uma escola extraordinária, que começou a trabalhar com as técnicas de Freinet ainda antes do 25 de Abril, democrática, ouvindo as crianças. Temos ainda hoje muitas crianças neste país que andam na escola e não são ouvidas, não se lhe dá a voz para dizerem o que pensam e o que sentem que devia ser a escola.”

O protocolo criado entre A Torre e a FHM é um dos legados de que se orgulha, com os estudantes universitário a contactarem com os pequenos alunos durante a sua formação, que defendeu que não se pode fazer apenas de forma “meramente teórica” mas envolvendo os interlocutores futuros.

Invocou ainda ideias que serviram de balizas, como esta de João dos Santos, de que a educação é sempre educação física. “Mesmo quando se está a aprender dinâmicas muito abstratas, como números e letras, estamos a usar o corpo”, disse, considerando obsoleta a linguagem das escolas que separa sala de aula de recreio. “Tem sido das maiores dificuldades, erradicar essa conceção cartesiana de corpo para um lado e cérebro para o outro. Não há corpo em movimento sem imaginação e fantasia. Se não percebermos sentimentos e emoções, não percebemos nada”, atirou, falando já no fim sobre a sua interpretação psicanalítica “mais ousada” sobre o fenómeno do movimento e do desporto, que não deixou de levantar sorrisos na sala, uma tese de que já tinha falado ao i em 2021, explicando a atração por bolas e pela vertigem dos mais novos. “As crianças gostam de orifícios, de buracos. Deem orifícios as crianças para terem oportunidade de ter prazer. Por isso é que os homens gostam de desporto. E quando chegam ao fim da vida passam a vida a meter bolas com um taco num orifício. Provavelmente já não os têm lá em casa.”

Questões que o preocupam, temas dos livros que publicou nos últimos anos, foram reforçadas, como o tempo que as crianças passam na escola e o aumento, já no pós-pandemia, de situações de violência e bullying, que associa ao desinteresse das crianças por uma escola que não as cativa – “A escola está cheia de medo, a sociedade portuguesa está cheia de medo”, alertou.

Pediu ainda uma reflexão séria sobre as políticas de acesso ao ensino superior para libertar as escolas para as crianças viverem. “Temos 30 anos a estudar. Somos o animal com a infância mais longa, para que é preciso aprender tudo à pressa? Tudo em laboratório? Não tem sentido. Vamos voltar a ter espontaneidade para sermos mais felizes. Estamos cá pouco tempo”, disse.
Mas o grito da última lição, em que pediu um “novo contrato social para a educação”, não foi apenas para libertar as crianças, mas também professores e investigadores, lembrando que perante um mundo incerto, em transição ecológica e digital, a universidade “não pode ficar parada no tempo”. As disciplinas estanques tendem a ignorar as fronteiras entre si, disse, deixando um desafio concreto: que cada professor passasse a estar filiado em dois departamentos diferentes. E que a investigação não seja aprisionada pelas hierarquias académicas: “Sempre fui considerado um orientador anárquico. Fi-lo sempre de forma consciente. Sempre quis dar ao meu estudante de licenciatura, mestrado ou doutoralmente liberdade. Não podemos viver uma universidade e sociedade que aparentemente democrática cria modelos subtis de criar no sujeito a sua auto exploração”.


Sol

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Ponto e Vírgula

 

Há muitos anos, sobretudo nos estabelecimentos de aprendizagem, faziam-se os designados "Jornal de Parede". É natural que ainda os façam. Uma ou mais folhas de cartolina, um título, uns textos dos alunos, manuscritos ou dactilografados, umas fotografias de visitas de estudo e pronto, era afixado em local de fácil acesso e visualização pelos alunos. Mais tarde, poucos são os casos, passou-se para a impressão em formato de jornal. Estive ligado a vários, entre os quais um dos escoteiros, da responsabilidade editorial do meu Amigo Rui Marote. Dizem que este foi o primeiro totalmente a cores. Foi idealizado e esquematizado no antigo bar-café que, se bem me lembro, se chamava "Lua Azul", na Rua do Aljube. Inesquecível.



Este tipo de iniciativas partia dos jovens (sem professores de permeio) e, pessoalmente, enriqueceu-me a vários níveis porque constituíram uma antecâmara do jornalismo e de tudo ao que a ele está ligado. Aprendíamos com os erros. Um mundo fascinante. Mas não é destas experiências pessoais que aqui venho tecer algumas considerações. A questão é outra. É o "ponto e vírgula" que aqui me trás. Aquelas oito ou doze páginas produzidas pela Secretaria da Educação em parceria com o La Vie e incluídas como suplemento do Dnotícias. 

Não quero debruçar-me sobre os conteúdos. Tem aquele formato e é o que é. De uma perspectiva pessoal, sinceramente, não nutro simpatia pelo formato. Mas esta minha apreciação vale o que vale. Preferia que os estabelecimentos de aprendizagem tomassem iniciativas próprias susceptíveis de conduzirem a uma outra participação e enriquecimento das crianças e jovens. A todos os níveis. Sem necessidade de financiamentos e distante de qualquer folclore político. Mas, enfim, essa é uma outra história.

Mais interessante seria, sustento eu, que os responsáveis políticos, ao contrário da dinâmica mediática que os caracteriza, aproveitassem o tempo para debater a questão essencial, isto é, como alterar, profundamente, o sistema educativo que caracteriza a escola que vivemos. Sem qualquer ideia pejorativa, "Ponto e Vírgula" significa uma pausa maior que a vírgula e menor que o ponto. Exactamente o que caracteriza o actual sistema educativo: está em pausa, envolvido numa teia que só permite que o período continue a caminho do ponto final. É assim e nada há a fazer. 


Não aprecio o "jornal de parede" agora impresso. Há, pois, muito por fazer, inclusive na aprendizagem na elaboração de jornais, porque ali se aprende a Cidadania e a Democracia mais profunda, através do texto livre, dos temas políticos, económicos, financeiros, sociais e culturais. Os temas que interessam à juventude, analisados e debatidos segundo os seus olhares. Até onde a aprendizagem poderia ir, interrogo-me. E os decisores políticos sabem-no, falta-lhes porém coragem para enfrentar o desconhecido. Ficam-se pelo conhecido! É mais fácil e mais controlável. Parece que o interesse político se sobrepõe à vivência pedagógica. 

Penso assim porque detesto a superficialidade, as generalidades e quando vejo cair na banalidade, pior ainda. O número político fica feito, é certo, mas só engana os distraídos. Qualquer pessoa que pense um pouco a Educação tem dificuldades em aceitar "pausas e pontos". Tal como uma publicidade que anda por aí na televisão, "se não sabe não invente".

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Visão micro - Visão macro


Começo desta forma: ainda bem!
Após a minha intervenção no II Seminário de Educação, organizado pela Câmara Municipal de Machico, concluídos os trabalhos da tarde, uma colega aproximou-se e, com alguma cordialidade, disparou mais ou menos com estas palavras: discordo do que disse. Repliquei com aquelas duas palavras: ainda bem. E continuei dizendo-lhe que não sou portador de qualquer verdade e que é sempre boa a existência da discordância. Ponto e contraponto devem andar a par, porque só assim podemos melhorar. A conversa ficou por aí ou com mais qualquer coisita do tipo… sabe, nós trabalhamos muito na minha escola!



De regresso a casa, num percurso sereno na condução, passando em revista tudo quanto abordei, fiquei obviamente a pensar: trabalham até demais, pois organizam, dedicam-se, preenchem toda a burocracia, aceleram para cumprir os programas, atendem os pais, respondem a todas as solicitações do vértice estratégico, das autarquias e de outras instituições que, a propósito do dia ou da semana disto e daquilo, solicitam a participação dos alunos, lutam, até, contra todas as incompreensões da hierarquia, vivem as angústias da pobreza, eu sei lá… ai trabalham, trabalham, exclamei para mim próprio! Só que o problema não esse, não é o do trabalho nem o da dedicação. É muito mais profundo. O problema não é o de ver a “escolinha”, mas de analisar e propor um sistema educativo que defenda o princípio de uma escola para cada um, ao contrário de uma escola igual para todos. Trata-se da visão micro face a uma leitura macro do processo.

Situar-se no domínio da “escolinha” equivale encostar-se às traves-mestras de um pensamento do passado que não responde às exigências do tempo que estamos a viver, tampouco relativamente ao futuro. E a minha intervenção, a par de outras, assentes e fundamentadas na ideia de mudança, foi no sentido de provocar uma ruptura com aquilo que as nossas crianças e jovens estão a viver e que as leva a assumir, tarde ou cedo, uma feroz crítica à escola que lhes oferecem. Dei exemplos bastantes. De resto, são tantos os investigadores, autores, filósofos, psicólogos e empresários que convergem na necessidade de buscar um novo sentido para a Educação do Século XXI. Não se trata do trabalho de mérito, dentro deste sistema, claro, que muitos ou todos realizam, mas para que serve o trabalho que fazem. A “escolinha” equivale a uma “visão do sapo” que capta e reage automaticamente o básico, mas não sai do espaço que habita. Uma nova predisposição implica aceitar que existe mais mundo para além da “escolinha”. Foi isso que, por exemplo, o Professor José Pacheco trouxe à consciência de cada um, contando histórias de vida e de talentos, e que pode circunscrever-se a uma só palavra: ruptura; foi isso que o meu distinto Colega Carlos Neto veio propor, quando, em diálogo comigo, assumiu o aprisionamento de que as crianças e jovens são vítimas na escola. Eles, certamente, não estão preocupados com a “escolinha”, mas com a Escola fonte de prazer, de felicidade, de conhecimento, de desenvolvimento motor, respeitadora do sonho e do talento, eu diria de vida e para a vida.

São duas posturas distintas. Uma remete-nos para o passado; a outra indica-nos o caminho adequado para milhares de perguntas. Uma visão de escola-resposta aos intermináveis itens dos programas e dos correspondentes manuais é passado; uma outra que espero esteja a nascer (embora com mais de 100 anos de atraso) preocupa-se, essencialmente, com a pergunta persistente que enriquece e consolida o conhecimento.

São duas posições distintas, uma de comodidade e rotina apesar de sofredora, outra que impele ao debate que coloca em causa presunções tidas por imutáveis. Desde há 50 anos que manifesto o desejo de ver o passado metido na gaveta da História e, quando muito, indo lá buscar as experiências que se tornaram inspiradoras. Porque o tempo é outro e porque a ciência veio ditar novas atitudes. Tenho presente as palavras de Edgar Morin: “A educação deve ser um despertar para a filosofia, para a literatura, para a música, para as artes. É isso que preenche a vida. Esse é o seu verdadeiro papel.”

Não é o cumprimento de currículos e de programas que são mãos cheias de nada ou de muito pouco, sobretudo pela desarticulação ou, de outra forma, distantes de apropriadas conexões, que se atinge o conhecimento profundo e portador de futuro. Diz Morin: “As disciplinas como estão estruturadas só servem para isolar os objetos do seu meio e isolar partes de um todo. Eliminam a desordem e as contradições existentes, para dar uma falsa sensação de arrumação. A educação deveria romper com isso (…)”

Ainda bem que a colega discordou!

sexta-feira, 20 de maio de 2022

II SEMINÁRIO DE EDUCAÇÃO - MACHICO 2022


Nota
A intervenção da minha autoria, esta tarde, no II Seminário de Educação, da responsabilidade da Câmara Municipal de Machico.


Quero agradecer ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Machico e ao Departamento de Educação, na pessoa da Senhora Vereadora e Professora Mónica Vieira o facto de me terem dirigido um convite para participar neste seminário. Muito obrigado.

Convicção e teimosia são duas palavras que fundamentam a minha busca por uma Escola que respeite o sonho, a curiosidade e os direitos das crianças e jovens. Disse Fernando Pessoa que “O Homem é do tamanho do seu sonho. Matar o sonho é matarmo-nos”. E sendo assim, desde logo entendamo-nos: 

“Se queremos algo novo, temos de parar de fazer algo velho”. Peter Drucker


E nós temos persistido em algo velho. Há 50 anos li um livro do filósofo Georges Gusdorf que a páginas tantas sublinhava: “(…) o mais alto ensinamento do mestre não está no que diz, mas no que não diz”. E há dias, o que me atenuou as angústias, dei com as palavras de um administrador e consultor de empresas, de 33 anos, de nome Saulo, que assumiu: “Pobre daquele que pensa que ensina algo a alguém, por si só. O indivíduo aprende se quiser, traz para sua experiência de vida aquilo que entende que pode lhe agregar de forma positiva e vantajosa, caso contrário, de nada adianta falar aos outros. Se não houver vontade e disposição da outra parte, da vossa parte, as palavras não passam de palavras ao vento…”. E ouvi também, há cinquenta e três anos, do saudoso Professor Paula Brito, a pergunta cada vez mais actual: 

“Como pode uma escola sempre igual competir com a vida que é sempre diferente”


Ora bem, venho aqui com um tema que me preocupa: a formação que vá ao encontro das preocupações que acabo de enunciar. Dirijo-me à consciência de cada um sentado nesta plateia. Não em tom crítico, mas humildemente, para extravasar e partilhar o que sinto em função de um quadro geral que a todos nos devia inquietar.

Confesso-vos o meu desencanto pelo que vivo em várias situações ligadas à formação. O desencanto por sentir que, depois da inicial, ela estar muito ligada à obtenção de um certo número de horas para ascender na carreira e quase nunca a um processo de transformação da escola. Não do edifício, mas das pessoas que lá habitam.

São centenas as acções de formação para professores produzidas ao longo dos anos e com painéis de ilustres convidados. Há quem tenha 4-5 formações em Excel, por exemplo, e há quem opte, sem qualquer menosprezo, por uma formação visando a “colocação da voz”, quando, hoje, o professor deve ser mais um mediador da aprendizagem do que um pregador do manual. Mas apesar dos apelativos títulos a maioria delas não serve para transformar seja o que for. E o drama eterniza-se.

E a palavra transformar constitui o fermento da Educação. Durante um, dois dias, escutam-se pensamentos diversos que fazem, por momentos, acreditar que é possível uma escola com vida e para a vida, mas logo sua excelência a rotina regressa e, subtilmente, as normas esmagam numa espécie de tecla de computador que apaga os registos em memória. O entusiasmo gerado pela audição de quem conduz a repensar a escola que temos e a escola que deveríamos dispor, tem tido vida curta. A formação, mor das vezes morre na casca. O político enaltece a iniciativa, fala de robotização dando um ar de preocupação, a plateia aplaude os oradores e, na Segunda-feira seguinte, há como que um apagão dos entusiasmos criados e a maldita rotina manda prosseguir o vaivém inconsequente, que mata a curiosidade e de caminho esmaga alunos e professores.

Indo um pouco mais atrás, tantas vezes fico perplexo, quando me questiono, por onde andarão as aturadas leituras noite adentro, as extensas revisões bibliográficas, vertidas em monografias, dissertações, teses, acções científico-pedagógicas no quadro dos estágios pedagógicos, documentos elaborados no sentido de uma aprendizagem transformadora! Parece que tudo foi esquecido porque tudo serviu aquele momento. Ininteligível.

A própria Lei, por vezes vem enfeitada de excelentes propósitos, parece aberta ao mundo, à liberdade das escolas, à protecção da sua autonomia, à defesa dos grandes princípios orientadores que devem enformar a aprendizagem de qualidade para este tempo de incerteza, de paradoxo e até de irracionalidade, um tempo que diz não ao enciclopedismo e que exige ousadia que coloque em prática o direito individual ao sonho. As linhas da Lei parecem transformadoras, mas apenas parecem. Na prática, ressalvo aqui muitas e boas excepções, o facto é que a hierarquia continua a dormir, ressonando intensamente na almofada dos princípios orientadores da I Sociedade Industrial que Alvin Tofller tão bem sintetizou: 

“A maximização, concentração, centralização, padronização, sincronização e especialização”



Olhamos para estas palavras e vemos ali espelhada a escola dos nossos dias. E isso conduz, inevitavelmente, a uma sequência de procedimentos que coarctam a oferta de um sistema de superior qualidade, mata qualquer obsessão para o conseguir, assassina os rasgos criativos, destrói os afectos e o amor pelo outro, arruína a originalidade, os valores e a mudança. E assim surge o Burnout, a paixão pela nobreza de ser professor amolece e faz adoecer, surge o desencanto, o abandono e o silencioso conflito entre pares, por via, também, de uma ridícula e competitiva avaliação de desempenho, geradora de uma atmosfera de desconfiança e hostilidade entre pares. É cada um por si. E surgem as reuniões, sufocantes e improdutivas, que não só repetem os problemas há muito identificados como sustentam a burocracia desnecessária, a promoção de centenas de projectos disto e daquilo (bastaria um) que ajudam a enfeitar os relatórios e a tranquilizar as consciências de professores, gestores e políticos. Documentos e vivências que, tarde ou cedo, se destinam ao arquivo morto.

E essa “formação” continua cega e distante do rol das exigências do ser humano. A verdadeira formação só tem sentido quando não existe hipocrisia, isto é, quando de permeio não se verificam comportamentos contraditórios que colocam em causa a nobreza do pensamento. Só existe formação quando ela se transforma no embrião da mudança, quando, no plano pedagógico se interioriza e aplica ao encontro das necessidades daqueles que são a razão da existência do professor. No centenário do eterno Paulo Freire, a quem uma triste figurinha chamada Bolsonaro chamou de “energúmeno”, trago em memória duas sínteses: 

“Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre” (…) porque “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”.


Há uma falência do velho e há um medo colectivo em enfrentar os novos saberes. E a formação continua ensopada em palavras e conceitos não transformadores.

Reparem: a primeira Revolução Industrial foi mecânica; a segunda, eletromecânica; a terceira teve uma característica eletromecânica e electrónica e, hoje, atravessamos uma quarta Revolução marcada pela convergência de tecnologias digitais, físicas, biológicas e ambientais, a qual, em relação ao futuro só apenas temos os vestígios. Naturalmente, a quinta surgirá porque toda a ciência rola, desenfreadamente, à nossa frente. Perante isto, a formação, a dos professores, denuncia ausência de sentido prospectivo. Há palavras, conceitos e histórias que, momentaneamente, nos inebriam, mas a rotina advinda do passado tem acabado por se impor. Tanto assim é que o investigador Joaquim Azevedo sublinhou: 

“(…) os adolescentes mudaram muito e a escola mudou pouco.”


Nós somos, simultaneamente, actores e espectadores, mas teimamos, na formação pessoal e na prática, em manter as traves-mestres dos primórdios da 1ª Revolução Industrial. O desencontro instalou-se. Não aprendemos com o filósofo Gaston Bachelard que falou da primazia conferida ao erro, à rectificação, ao invés da verdade, na construção do conhecimento científico. O nosso problema é esse: poucos identificam os erros, refiro-me aos decisores, preferindo que sejam considerados erros de percurso, ou, então, verdades imutáveis. Não se assiste à formação compaginada com os pressupostos do que deve ser uma escola de aprendizagem para a vida.

Trago em memória Merlí, professor de filosofia, carismática personagem de uma notável série televisiva catalã, que disse: 

“Há qualquer coisa de podre na Educação”


O diagnóstico feito pelo Ministério da Educação sublinha que: “(…) até 2030, é preciso contratar 34 mil professores para o ensino público. Do lado das instituições de ensino superior há capacidade instalada para mais de 4200 vagas. O grande problema está em atrair os estudantes (…)”. Há mestrados de formação de professores onde só entraram cinco alunos neste ano lectivo”.

Desde logo, não se sabe para onde caminhamos, porque talvez não saibam onde estão, mas sublinha-se a necessidade de 34.000 docentes. Este número só pode estar alinhado com as características do actual sistema. Dá assim mostras de não querer reinventar-se.

Há aqui dois aspectos que se conjugam: por um lado, a carreira docente que deixou de ser atractiva. Quando com vinte e mais anos de trabalho nem a meio da carreira os professores chegam no estatuto remuneratório, quando com 62 anos se anda à procura de um lugar com estabilidade, quando estabelecem percentis, quando milhares andam com a casa às costas, convenhamos que não é atractivo ser professor. Junta-se a isto, a vergonhosa parafernália burocrática. Papéis e relatórios que aos alunos não interessam. Esta formação, grosso modo, não garante, na prática, uma escola verdadeiramente autónoma, distintiva, de trabalho colectivo e adequada ao tempo que estamos a viver. 

“A Escola é, há década e meia, um laboratório de exclusão de professores”


Pergunto: porquê?

Verdade também seja dita que os professores se acomodaram, quando precisavam de… Diapositivo 9

“(…) sair das suas disciplinas para dialogar com outros campos do conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu”.

Os professores precisam, tal como me disse o meu Amigo Filósofo, Manuel Sérgio, de se deixar fecundar pelos outros sectores e áreas do conhecimento, digo eu agora, estabelecendo conexões de tal forma que percebam e ultrapassem a ideia comezinha da sala de aula, do horário, do currículo, do programa e de que só existe uma forma de aprender. Tenhamos presente, parafraseando o Dr. Abel Salazar, Patrono do Instituto de Ciências Biomédicas, que: 

“Professor que só sabe da sua disciplina, nem da sua disciplina sabe”.


Há dias, estava a tomar o pequeno-almoço e o som de fundo levou-me a escutar uma conversa de uma autora que tinha acabado de publicar o livro “Destralhe a sua casa”. Relacionei este título com o nosso sistema educativo.

A Escola está cheia de tralha


Bom seria que a destralhássemos, mandando fora tanto que inferniza professores e alunos. Mas não, continuamos a encher os currículos, os programas, impomos e exigimos o que não interessa convencidos que tudo é importante, ao ponto das crianças, diz e bem o Juiz Conselheiro Laborinho Lúcio, que elas já sentem que têm um adulto dentro de si.

Retirámos as crianças do trabalho e hoje empanturramo-las de escola, que se tornou num novo trabalho infantil, escreveu o Psicólogo Eduardo Sá. Nós, os adultos, exigimos 40 ou 36 horas por semana de trabalho e a semana de quatro dias está aí ao virar da esquina, pelo menos para alguns sectores, mas, paradoxalmente, exigimos que as crianças, em média, estejam envolvidas em 56 horas semanais de actividade. Um paradoxo.

Há dias segui um diálogo muito interessante, publicado no Expresso, entre o Cardeal Tolentino Mendonça e o Professor José Mourinho, treinador de futebol. Disse o Cardeal Tolentino Mendonça, nascido aqui em Machico: 

“(…) não podemos parar de ajudar cada um a nascer, a descobrir-se, a amadurecer, a desenvolver o seu talento... Uma das parábolas de Jesus é efetivamente sobre o tema dos talentos: esta necessidade da parte de cada um de nós em não soterrar o seu talento, em amadurecer a sua própria vocação. Cada um de nós nasceu com uma bagagem de atitudes e de competências e pode transformar a sua vida”.


Ora, isto é o que a Escola não faz: permitir a realização dos sonhos através do desenvolvimento da curiosidade. O que temos é uma escola igual para todos, quando deveríamos ter uma escola à medida de cada um!

E o exercício da política e a formação continuam alheias a tudo isto. E se não estão alheias, é lógico que se pergunte, se à excepção de muitas e interessantes experiências por todo o país, de escolas que trabalham, atenção, nos limites da legislação para que não advenham problemas disciplinares, genericamente, o panorama seja de um enorme desencanto?

Caros Colegas, a escola está doente porque a sociedade também está. No livro que recentemente editei, “A Escola é uma seca”, refiro o que escreveu a minha Amiga Doutora Ana Benavente: “A Escola é socialmente produzida, logo é socialmente transformável”. E só se transforma a partir de nós, da nossa formação e do desejo de mudar a mentalidade que nos tem conduzido. A mudança, repito, é de mentalidade, é de cultura. Eu só entendo a escola como fonte de cultura. Essa cultura transversal que nos torna melhores pessoas, mais capazes, disponíveis, adaptáveis, criativas, inovadoras, felizes e com melhor conhecimento. Não é aos 23/24 anos que se pede que os jovens sejam inovadores, criativos e que saibam trabalhar em grupo. Não é nessas idades que se pede para serem empreendedores, quando andámos uma vida a castrar o pensamento livre, cada um a lutar por si e sobretudo, nós professores, a limitar esta palavra mágica que deve estruturar o pensamento de escola enquanto espaço de pessoas: a CURIOSIDADE. 

“Precisamos de professores que não ensinem, mas que façam aprender”


A Vida é muito mais que currículos e programas de natureza abstracta. Conhecem, certamente, o que escreveu o grande pedagogo Rubem Alves: “A memória é um escorredor de macarrão. O escorredor de macarrão existe para deixar passar o que não vai ser usado: passa a água, fica o macarrão. Essa é a razão por que os estudantes esquecem logo o que são forçados a estudar. Não por falta de memória. Mas porque a sua memória funciona bem: não sei para que isto serve, logo, deixo passar...”

Li em Luís Cardoso que os tempos já “não são de manufactura, mas de mentefactura”, o que implica que os alunos sejam considerados sujeitos e não objectos. Neste momento são, genericamente, objectos. Andam ao sabor das ondas provocadas pelos adultos. Exemplo: essa história das salas de aula do futuro não passa de uma mistificação. O futuro já foi ontem e o futuro é hoje, apenas temos o dever de antecipá-lo. É óbvio o poder da tecnologia, mas não é pela existência de uma sala por escola com tecnologia, cadeiras móveis e quadros interactivos que a aprendizagem terá sucesso; da mesma forma que não é carregando os manuais para dentro do tablet, que se conseguirá o milagre de ter taxas residuais de abandono e de insucesso. Tenham presente o que disse Tony Bates da Microsoft: 

“Uma boa aprendizagem supera uma escolha tecnológica pobre, mas a tecnologia nunca salvará o mau ensino”


Não estou com isto a querer dizer que todos os equipamentos de natureza tecnológica não devam ser aproveitados. A questão é outra, é a mistificação que está a fazer acreditar que só por ali se chegará ao conhecimento. As crianças sabem mais de tecnologia do que muitos de nós. Na aprendizagem coexistem outros problemas. Entre vários, a pobreza, que torna a escola remediadora social (na Madeira 32,9% são pobres ou estão em risco de pobreza); está, por isso, na mudança de mentalidade de como fazer aprender; está na verdadeira autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem; está nos currículos, programas, numa nova concepção organizacional de escola; está nessa obsessão por uma avaliação de sentido único, alienada com a pretensão de classificar, entendida como um fim de etapa, quando o foco deverá ser uma avaliação que permita ao aluno aprender mais e melhor; está no estabelecimento de uma meritocracia balofa, transferindo para dentro da escola as taras da sociedade, onde já se entregam prémios pecuniários a crianças do 1º ciclo (aqui, em Machico, ainda há poucos dias foram entregues prémios de € 500,00); o problema está, ao invés de pensarmos no perfil do aluno à saída do sistema educativo, estarmos muito atentos ao perfil do aluno à entrada do sistema.

E tudo isto faz parte da formação do professor. Eu passei pela escola 40 anos. Desempenhei funções de gestão, políticas e sindicais. A escola que dirigi mandaram fechar. A vida tem-me dito que os professores não precisam de mais propostas didáctico-pedagógicas. Precisam de arejamento conceptual, de liberdade para pensar, de não se circunscreverem a papaguear o manual de forma repetitiva (li algures que o maior problema é fazer calar os professores), os professores precisam de se libertar da indiscritível burocracia, e de, obcecadamente, trabalharem para os exames nacionais e aferições. Pensemos nisto: 

“(…) fará algum sentido um exame igual para todos, quando todos somos diferentes e únicos?”


Os professores precisam de se juntar e de estudar as conexões do sistema educativo com todos os outros sistemas: o económico, o financeiro, o social, o cultural, o de saúde, o empresarial, o religioso, enfim, todos os sistemas que estão ligados à profissão pela qual se apaixonaram. É com essa visão globalizante que temos de ser professores. O trabalho não é individual, é colectivo.

Caros Colegas, a formação tem de constituir-se como uma grande mesa de diálogo onde tudo possa ser, livre e de forma contínua, debatido. Estou a referir-me, inclusive, à arquitectura dos estabelecimentos (há muitas paredes para deitar abaixo), à necessidade de criação de espaços de aprendizagem com uma concepção aberta à vida e ao mundo; precisamos de debater o número de alunos por escola – uma escola com 1000/2000 alunos é uma fábrica não é uma escola -, temos de debater os currículos, programas, conceitos de aula e de turma, a aprendizagem segmentada por disciplinas que “separa artificialmente os conhecimentos”, estou também a referir-me ao porquê de 1º, 2º, 3º ciclos e secundário quando a aprendizagem é um continuum e ao longo da vida. Mais. Temos de colocar em causa os exames e os seus formatos que conduzem ao ensino superior. Em síntese, tal como enalteceu a Filósofa Viviane Mosé… 

“Precisamos de uma mudança conceptual. Precisamos de reaprender a ver, a ouvir e a pensar”


Reparem que nem este sistema consegue dar resposta, quando, há pouco, cerca de 20.000 alunos não estavam abrangidos pela totalidade de professores considerados necessários!

Os professores estão entre uma opção pela doença ou serem felizes no que fazem. Fazendo felizes os que estão na escola. Tenham em atenção o estudo da Doutora Raquel Varela, coordenadora do “Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal”.

“Os docentes falam em ensino em linha de montagem. Sobrevém daqui que cerca de 70% dos professores se encontrem em exaustão emocional (Burnout), “praticamente metade demonstra sinais preocupantes e 24% têm sinais críticos ou extremos de desgaste. Quarenta e dois e meio por cento não se sentem realizados profissionalmente. Quase 22 mil confessam que tomam medicação a mais e cerca de nove mil falam em consumo excessivo de drogas e álcool para enfrentar o ritmo de trabalho e fazer face às exigências do sistema. Oitenta e quatro por cento deseja reformar-se antecipadamente sem penalizações”. 

E agora oiçam o que dizem os alunos: "O sistema olha para o aluno como um simples recipiente onde se introduz conhecimento (...) as pessoas ali não pensam, as pessoas ali decoram (...) estamos a estudar para ranking's não para o conhecimento (...) a escola está desenhada em torno da matéria e em torno das necessidades dos professores (...) os alunos têm muito pouca importância (...) gosto de um ensino estimulante, que dê responsabilidade sobre o que queremos aprender, maior valorização da oralidade, da criatividade, menos débito de matéria numa folha de exame e mais exploração das diferentes áreas do conhecimento (...) o mundo mudou, menos a escola, a sala de aula, a forma como está organizada é a mesma (...) o sistema educativo foca-se em coisas que não são fundamentais para a vida (...). – Geração 15/25 - SIC.

Ora, compaginando as duas partes, o que pensam os alunos e o estado em que se encontram os professores, eu diria que estamos perante um cocktail explosivo. Só resta um caminho que é o da formação que reflicta sobre tudo quanto está a colocar em causa a importância da instituição Escola. Disse a investigadora Ilídia Cabral: 

“As Escolas têm de aprender a ensinar no Século XXI, sob pena de se tornarem dispensáveis”

E tantas vezes se ouve que é sensível a indisciplina, que os alunos são malcriados e que há “bullyng” que se manifesta de várias formas. Pois… já tem uns anos, li um artigo no Le Monde Diplomatique com o título: 

“A violência NA escola ou a violência DA escola”


Um título com muito espaço para pensarmos nas causas e de uma forma profunda e transversal.

Portanto, o foco deve ser a pessoa e a vida! Parafraseando o título da obra de Claudius Ceccon, há que trazer a “escola da vida para a vida da escola”. De resto, só entendo o processo educativo, a partir de nós, com rigor, exigência, sentido crítico, disciplina conquistada pela compreensão, muito estudo, cultura de participação, sentido de pertença, sentido de escuta e de aprendizagem com os alunos e capacidade para nos colocarmos distantes de fanatismos pedagógicos ocos. A nossa prática pedagógica tem de ser libertadora. Leva alguns anos, pois leva, mas parece-me que esse é o caminho.

E não se esqueçam… 

“Se quer algo novo, terá de parar de fazer algo velho”.


Muito obrigado por terem feito o favor de me escutar.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Uma urgência não justifica uma canalhice


Um professor menos graduado, que tenha rejeitado um lugar antes da RR32, pode, a partir de agora, beneficiar de vantagens futuras, que não estão ao alcance de outro, mais graduado, que aceitou uma colocação miserável, para não ser penalizado.



Os governos do PS não foram os únicos a falhar na gestão dos professores. Mas foram os que mais mal infligiram à classe e os primeiros promotores das medidas que causaram a falta de docentes. O actual ministro age agora como se a situação o tivesse colhido de surpresa, como se não fosse por ela parcialmente responsável, há seis anos. Subliminarmente, tenta apresentá-la como algo não previsível, uma emergência a que é preciso acudir com medidas de excepção.

Para salvar o fim de um ano marcado por milhares de alunos sem professores, João Costa anunciou que iria revogar as penalizações aplicadas a cerca de 5 mil docentes, que recusaram os lugares que lhes foram atribuídos em concurso, para que pudessem voltar a concorrer a horários incompletos, que seriam convertidos em horários completos e anuais. Por defensável e positiva que fosse, face aos milhares de alunos sem aulas nesta altura do ano, a medida em análise só colheria se acompanhada, em nome da justiça mínima, de outra que compensasse os professores que aceitaram contratos de poucas horas, para acumular tempo de serviço, sujeitando-se às regras antigas. E teria sempre que ser concretizada por alteração do quadro legal que rege os concursos, que não por proclamação ministerial, em ambiente de bagunça normativa. Com efeito, quando João Costa anunciou a medida, circunscreveu-a às regiões mais críticas. Quando a Direcção-Geral da Administração Escolar (DGAE) a transmitiu às escolas, já ia generalizada a todos os lugares postos a concurso. Com efeito, o email dirigido aos docentes pela DGAE, para além de não ter qualquer valor legal, é uma missiva trapalhona, que cita passagens inexistentes de um decreto-lei, que só seria aplicável se tivesse sido alterado.

Esta medida discricionária veio deturpar completamente o concurso feito por milhares de professores contratados, que teriam concorrido com opções bem diferentes no momento da manifestação das suas preferências iniciais. Os professores colocados antes da Reserva de Recrutamento (RR) 32 ficaram, a partir de agora, inaceitavelmente prejudicados: em remuneração e em tempo de serviço. Um professor menos graduado, que tenha rejeitado um lugar antes da RR32, pode, a partir de agora, beneficiar de vantagens futuras, que não estão ao alcance de outro, mais graduado, que aceitou uma colocação miserável, para não ser penalizado.

Que dizer aos professores prisioneiros de horários de substituição, não transformáveis em horários anuais, que fizeram opções no âmbito de um quadro legal, que agora muda, ilegalmente, sem os compensar?

Que dizer a docentes colocados desde o início do ano lectivo em horários incompletos, e que assim continuarão, quando quem ontem aceitou um horário de seis horas o tem convertido em completo? Que sentirão estes docentes, cujo tempo de serviço não conta no quadro da “norma-travão”? Que dizer aos directores, proibidos de completarem os horários dos primeiros, agora coagidos a completarem os horários dos segundos? Que pensarão os detentores de horários inferiores a 16 horas, vítimas continuadas da anacrónica contabilização do tempo para a segurança social?

De início, só os detentores de colocações obtidas até ao começo das aulas, em horários completos, poderiam ver a sua colocação renovada no ano seguinte. Agora, o ministério está a preparar-se para permitir que os horários incompletos, convertidos em completos a partir da RR32, possam permitir a renovação da colocação dos seus titulares. Como dizer a um professor contratado com 19 horas, antes da RR32, que não poderá ter o seu contrato automaticamente renovado no próximo ano, quando um colega, que agora aceitou um horário de seis horas, administrativamente convertidas em 22, pode ver o seu contrato renovado automaticamente? Que conceito de justiça suporta os atropelos que daqui resultam?

Confrontado com tudo isto no Parlamento, João Costa respondeu: “Não nos preocupa que as regras sejam diferentes. O que interessa é que alunos tenham aulas”. Como se uma urgência justificasse uma canalhice.

O que o escuteiro/ministro promoveu é inaceitável: o céu para os ungidos da 32, o inferno para os colocados nos oito meses anteriores

O que a RR32 expôs é um padrão comportamental de trapalhice e iniquidade. O que o escuteiro/ministro promoveu é inaceitável: o céu para os ungidos da 32, o inferno para os colocados nos oito meses anteriores. Tivéssemos uma classe profissional com uma réstia de união e o dito voltaria, em breve, no dizer do próprio, à praia dele: os lobitos.

O autor é colunista do PÚBLICO

segunda-feira, 9 de maio de 2022

A importância da Escola para o pensamento crítico


A “caneta” fortalece-se através de um ingrediente que é tudo menos secreto, a educação. Quanto mais educação, menos “espada”. Assim interpreto o artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): “A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.”

Nota:
Excertos de um artigo hoje publicado no Jornal Público



A educação para o pensamento crítico e autónomo permite aos estudantes compreender que um povo, uma cultura não se esgota numa decisão política ou militar dos seus governantes.

Por estes dias – e sempre –, os professores são peças-chave no desenvolvimento holístico do pensamento dos estudantes, e as estratégias pedagógicas que aqueles desenvolvem podem fazer a diferença hoje mas, sobretudo, no amanhã: como bons exemplos, a aprendizagem cooperativa, planificada para destacar e promover a valorização da diversidade cultural na sala de aula (e em qualquer lugar); o debate, muito facilitador do ensino da História mas não só, em que os estudantes podem, e devem, ser desafiados a assumirem o lado contrário à sua interpretação do problema em debate, assim desenvolvendo uma visão empática sobre as duas faces que existem em qualquer moeda – o impacto desta estratégia pode ser muito potenciado através da participação nas simulações dos debates da ONU e do Parlamento Europeu, os ainda relativamente pouco conhecidos em Portugal, Model United Nations e Model European Parliament, que as escolas portuguesas podem organizar.

Importa, pois, cada vez mais, que a educação conduza os líderes do futuro a fazerem tudo quanto lhes seja possível pela “caneta” e não deem uso à “espada”.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Edgar Morin, o arquiteto da complexidade


Sociólogo francês propõe a religação dos saberes com novas concepções sobre o conhecimento e a educação


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Mudanças profundas ocorreram em escala mundial nas últimas décadas do século 20, entre elas o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização ideológica entre capitalismo e comunismo nas relações internacionais. Diante desse cenário, o sociólogo francês Edgar Morin, hoje com 87 anos, percebeu que a maior urgência no campo das idéias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, Morin propõe o conceito de complexidade.

Ela é a idéia-chave de O Método, a obra principal do sociólogo, que se compõe de seis volumes, publicados a partir de 1977. A palavra é tomada em seu sentido etimológico latino, "aquilo que é tecido em conjunto". O pensamento complexo, segundo Morin, tem como fundamento formulações surgidas no campo das ciências exatas e naturais, como as teorias da informação e dos sistemas e a cibernética, que evidenciaram a necessidade de superar as fronteiras entre as disciplinas. "Ele considera a incerteza e as contradições como parte da vida e da condição humana e, ao mesmo tempo, sugere a solidariedade e a ética como caminho para a religação dos seres e dos saberes", diz Izabel Cristina Petraglia, professora do Centro Universitário Nove de Julho, em São Paulo.

Para o pensador, os saberes tradicionais foram submetidos a um processo reducionista que acarretou a perda das noções de multiplicidade e diversidade. A simplificação, de acordo com Morin, está a serviço de uma falsa racionalidade, que passa por cima da desordem e das contradições existentes em todos os fenômenos e nas relações entre eles.

Pré-história do saber

Acima de tudo, o sociólogo francês defende a introdução da incerteza e da falibilidade na rigidez cultural do Ocidente. As limitações causadas pela compartimentação do conhecimento, de acordo com o educador, são responsáveis por manter o espírito humano em sua pré-história. Além disso, a tendência de aplicar conceitos abstratos vindos das ciências exatas e naturais ao universo humano resulta em desconsideração por aspectos como o ambiente, a história e a psicologia, entre outros. Um exemplo, diz o pensador, é a economia, a mais avançada das ciências sociais em termos matemáticos e a menos capaz de trabalhar com regularidades e previsões.

Para recuperar a complexidade da vida nas ciências e nas atividades humanas, Morin recomenda um pensamento crítico sobre o próprio pensar e seus métodos, o que implica sempre voltar ao começo. Não se trata de círculo vicioso, mas de um procedimento em espiral, que amplia o conhecimento a cada retorno e, assim, se coaduna com o fato de o homem ser sempre incompleto - o aprendizado é para toda a vida. "A reforma do pensamento pressupõe a consciência de si e do mundo", diz Izabel Cristina. "Ela decorre da reforma das instituições e vice-versa."

Nos processos em espiral, é necessário conhecer os conceitos de ordem, desordem e organização. Do ponto de vista da complexidade, ordem e desordem convivem nos sistemas. O que diferencia o todo da soma das partes é o que Morin denomina comportamento emergente. Nos seres humanos, a dinâmica entre ordem e desordem se subordina à idéia de auto-eco-organização: a transformação extrapola o indivíduo, se estendendo ao ambiente circundante. Uma vez que tudo está interligado, a solidariedade é tida pelo sociólogo como peça fundamental para superar aquilo que denomina crise planetária - uma situação de impotência diante de incertezas que se acumulam.

Ouvir os jovens

Não há espaço em que a fragmentação do conhecimento esteja tão explícita quanto na escola, com sua estrutura tradicional de parcelamento do tempo em função de disciplinas estanques. Por outro lado, a diversidade de sujeitos e objetos em busca de conexões fazem da sala de aula um fenômeno complexo, ideal para iniciar o processo de mudança de mentalidades defendida por Morin. A meta é a transdisciplinaridade. "Só convencido de que tudo se liga a tudo e de que é urgente aprender a aprender, o educador adquirirá uma nova postura diante da realidade, necessária para uma prática pedagógica libertadora", observa Izabel Cristina.


Contra a idéia arraigada de que a decomposição do conhecimento responde à suposta limitação intelectual das crianças, o pensador afirma que elas têm as mesmas inquietações dos adultos. Ouvir os alunos, naturalmente sintonizados com o presente, é a melhor maneira de o professor investir na própria formação. Esse também é o caminho para construir um programa de ensino focado no próprio estudante e suas referências culturais, porque as grandes metas da educação deveriam ser o desenvolvimento da compreensão e da condição humana. Segundo Morin, o profissional mais preparado para operar essa mudança de enfoque é o professor generalista dos primeiros anos do Ensino Fundamental, por ter uma visão ampla do processo.

Sete Saberes Indispensáveis

Tecnologia na escola: tópico para lidar com a fartura de informações.
Em sua defesa da religação dos saberes, Morin tocou numa inquietação disseminada nos dias atuais, quando a tecnologia permite um acesso inédito às informações. Por isso a Organização das Nações Unidas pediu a ele uma relação dos temas que não poderiam faltar para formar o cidadão do século 21. Assim nasceu o texto Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. A lista começa com o estudo do próprio conhecimento. O segundo ponto é a pertinência dos conteúdos, para que levem a "apreender problemas globais e fundamentais". Em seguida vem o estudo da condição humana, entendida como unidade complexa da natureza dos indivíduos. Ensinar a identidade terrena é o quarto ponto e refere-se a abordar as relações humanas de um ponto de vista global. O tópico seguinte é enfrentar as incertezas com base nos aportes recentes das ciências. O aprendizado da compreensão, sexto item, pede uma reforma de mentalidades para superar males como o racismo. Finalmente, uma ética global, baseada na consciência do ser humano como indivíduo e parte da sociedade e da espécie.

Nota~s
1. O texto é de 01.10.2008, mas vale a pena reler.
2. Transcrito do original.