quarta-feira, 13 de março de 2024

As eleições e a Escola

 

Dia 10 de Março. RDP - Madeira, informação das 16:00. A jornalista Celina Faria faz um directo à saída de uma mesa de voto em Santana. Escuto: "Votei à conta de Deus e seja o que Deus quiser". Estava esclarecida e informada sobre as candidaturas? "Para eu votar escusa-me informar, porque sei em quem voto". Conhece alguns candidatos pela Madeira? "Não, não conheço nenhum. Olhe, eu não quero saber dessas coisas, não sei e nem caminho de casa". Mas mesmo assim nunca falta a um acto eleitoral (...) "Nunca faltei um dia. Enquanto puder virei à conta de Deus". Responde outra eleitora à pergunta da jornalista sobre os candidatos pela Madeira: "Não posso dizer o melhor ou o pior. Para mim são todos iguais. Ninguém me está dando de comer". Vem sempre acompanhada da sua filha para votar: "Venho, eu já não posso"!



Desde logo parabéns à jornalista que seleccionou e divulgou aquele que pode ser um retrato da fragilidade cultural de muitos cidadãos. Não é geral, eu sei, porque são milhares os que votam em plena consciência pelos valores que transportam e até distantes de qualquer ligação partidária. Mas, julgo que devemos admitir que existe muito voto sem uma leitura política minimamente elaborada. E este aspecto não está na idade dos eleitores. Passaram-se 50 anos de Abril. Mesmo um eleitor com 90 anos, tinha 40 na altura da Revolução. 

Não está em causa em quem votar, desde que esse voto se enquadre numa permissa de conhecimento, pelo menos básico, do "menu" que o exercício da democracia oferece aos cidadãos eleitores. Inclusive, sobre as figuras que pretendem que os represente. Ora, a sensação que tenho é que a muitos falta esse conhecimento e capacidade de discernir o que os partidos escondem para além do que apresentam na montra. Votam por impulso, por zanga, protesto, pelo massacre dos media e, imagine-se, "à conta de Deus", não por uma capacidade acrescentada consequência da interligação de múltiplos factores e indicadores. E já era tempo do povo demonstrar segurança e adultez nesta e em muitas outras matérias de cidadania. De ter um afinado sentido reflexivo e crítico.

É um problema grave e que se arrasta desde os anos 70. Continuam a persistir resquícios daqueles malvados 48 anos de ditadura. Eles estão aí. E a Escola, neste aspecto, não deu a quem por lá passou, essa capacidade, não partidária, sublinho, de possibilitar a formação global para o exercício da democracia. Há um enorme défice neste espaço, porque o pensamento existente está mais no cumprimento dos extensos programas das disciplinas, com a avaliação e com os exames, e não com a realidade da vida. A Escola ainda não tomou consciência que quando se vota, estamos globalmente a decidir sobre a economia, as finanças, a educação, a saúde, as questões sociais, a cultura, a agricultura, enfim, sobre todos os sectores, áreas e domínios da governação. O voto não deve estar na cor, mas no projecto de sociedade. Referi a Escola, mas dito de uma forma mais incisiva e abrangente, todo o sistema educativo relegou para plano secundário a aprendizagem do que é isto da política e dos actos eleitorais. 

Passei pela escola 40 anos. E continuo a acompanhá-la. Sempre senti que, genericamente, entre os professores, havia medo em provocar determinadas abordagens. A opção partidária de cada um também ali estava percentualmente representada. Medo de serem conotados com este ou aquele partido político, eventualmente, com perseguições e inquéritos disciplinares. Infelizmente é assim, sublinho, quando a cultura da escola devia assumir este e outros temas de uma forma natural, transversalmente aberta e sem rótulos. Senti que havia receio por algum encarregado de educação denunciar a aprendizagem para a vida real. Portanto, há uma iliteracia política, conjugada ao longo de anos, que já não dá para esconder e que nem as tais "aulas" de Cidadania e Desenvolvimento conseguiram disfarçar. Aliás, a vida real demonstra que tais "aulas" foram e são um logro. Curiosamente, ou talvez não, no plano conceptual a intenção programática está lá: "Capacitar para múltiplas literacias que permitam analisar e questionar criticamente a realidade. Avaliar e seleccionar a informação. Formular hipóteses e tomar decisões fundamentadas". Tudo no quadro do "pensamento reflexivo, crítico e criativo". No papel sim, as preocupações estão envoltas em celofane. O problema é a cultura da escola, talvez melhor dizendo, a cultura da sociedade. E se esta está doente a escola não pode estar melhor.

Ainda ontem, o Parlamento da Madeira, acolheu mais uma sessão do "Parlamento dos Jovens", sob o tema "Viver Abril na Educação - Caminhos para uma escola plural e participativa". Pergunto: há quantos anos se realizam iniciativas semelhantes? E quais os resultados? Mais: Abril na Educação? escola plural e participativa? Sejamos claros: cumprir um programa muito embelezado, ao jeito do toca e foge é uma coisa; outra, é escaqueirar mentes formatadas e reconstruí-las em liberdade de pensamento. 

E a liberdade de pensamento NÃO se avalia. É pessoal. "Os Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde, Sexualidade, Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária, Risco, Empreendedorismo, Mundo do Trabalho, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal e Voluntariado", repito, NÃO se avalia, antes investiga-se e debate-se profundamente em todos os momentos da vida escolar, de uma forma transversal que gere uma determinada cultura. Depois, livremente, cada um deve seguir o seu caminho e fará as opções que entender. Se assim não acontecer, uma parte da população continuará a votar "à conta de Deus e que seja o que Deus quiser".

Nos 50 anos de Abril não deixa de ser muito preocupante a sociedade que estamos a construir. 

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 6 de março de 2024

A Educação não é um negócio

 

Não tenho qualquer reserva relativamente à criação de estabelecimentos de aprendizagem de natureza privada. Quem se predisponha a criá-los que cumpra as regras e se responsabilize pelos seus encargos. Criar escolas para, depois, ser o sector público a suportar uma boa parte dos seus custos, isso não. 



Sempre defendi ser uma treta o poder político assumir que os apoios se enquadram no princípio de possibilitar às famílias a livre escolha. Uma total falácia. Todo o orçamento público para a Educação deve ser canalizado para a escola pública que constitui uma responsabilidade prevista na Constituição da República Portuguesa. Por isso, não é admissível que o privado, cobrando mensalidades, receba apoios significativos (na Madeira tem rondado os 30/35 milhões por ano - Dnotícias/ALRAM/15.11.2023), ficando, depois, condicionado às lógicas do sistema público, inclusive na colocação de professores e em muitos outros aspectos organizacionais e até de natureza pedagógica. O financiamento à escola privada só se justifica quando o sistema público não consegue dar resposta adequada às necessidades da procura. Aí sim, podem ser necessárias parcerias de interesse bilateral.

Vem isto a propósito da abertura de uma escola privada, prevista para o próximo mês de Setembro,  a Internacional Sharing School. Vamos por partes:

1. Os promotores adquiriram à Diocese o antigo edifício do Seminário da Encarnação (muito discutível a alienação deste património), estão em curso obras de recuperação e de adaptação a uma aprendizagem assente num pensamento distinto do sistema público e vão realizar uma apresentação do projecto, aberta ao público, no Centro de Congressos da Madeira. No conjunto, estarão em causa, pressuponho, muitos e muitos milhões de euros.

2. Dizem os promotores, segundo li, que a nova escola está projectada para cerca de 500 alunos.

3. Não disponho do valor das propinas, mas numa rápida consulta na internet, os encargos na Internacional Sharing School Taguspark, em Oeiras, para o ano 2024/25, os valores oscilam desde  € 10 980,00 (fora uma taxa única de € 1 200,00) para crianças de um ano e € 25 780,00 no 12º ano (encargos anuais). A publicidade que tem sido feita na Madeira admite "protocolos de propinas especiais para a comunidade local". Portanto, aqueles valores só podem ser interpretadas como valores de referência de uma dada escola. Na Madeira os encargos podem ser diferentes. Certo é que não se trata de uma escola privada acessível. Destina-se, apenas, a alguns. Para os que podem!


Não está em causa o paradigma organizacional e pedagógico seguido pela Internacional Sharing School. Nunca visitei uma escola deste grupo. Em abstracto, apenas pelo que li, trata-se de uma "escola que tem como objetivo desenvolver alunos ao longo da vida inquiridores, conhecedores e de mente aberta que aspiram a construir um futuro melhor, através de um ambiente de apoio, respeito e cuidado que promova a aprendizagem através da partilha (...) proporciona a melhor experiência educacional aos alunos, reconhecendo que cada criança é diferente e única (...)  e que os espaços de aprendizagem são flexíveis e projetados para atender às necessidades individuais de cada aluno (...) e, ainda, que mais do que ter um currículo baseado no aluno, é uma escola baseada no aluno, organicamente pensada para os  alunos, proporcionando uma experiência educacional inovadora para os alunos explorarem a aprendizagem e alimentarem a sua criatividade e imaginação (...)". Sublinha uma professora: "Com este ambiente de aprendizagem inovador, reconheço que os meus alunos são mais capazes de serem eles próprios, alunos descontraídos e de mente aberta." 

Repito, em abstracto, nada a dizer. Há muitos anos que defendo que a escola pública, como ainda a concebemos, tem de mudar radicalmente. Assino por baixo os princípios orientadores, pois, mesmo sem conhecer o processo pedagógico e as limitações impostas pelos currículos e programas, agrada-me quem assim pense, isto é, quem veja a escola como espaço de aprendizagem para a vida e não como edifício que massacra, condiciona e não concede espaço ao talento e ao sonho. 

Porém, num outro nível de análise, outras questões sugerem-me dúvidas. Desde logo:

1. A Madeira é uma região com uma altíssima taxa de pobreza, onde milhares de alunos contam com o apoio da acção social educativa.

2. Tem sido, infelizmente, negativo o saldo entre a natalidade e a mortalidade. E por aí, explicam os decisores políticos (embora discorde desta justificação), tem havido a necessidade de encerrar estabelecimentos de aprendizagem. 

3. Ora, conjugando estas duas variáveis, a pobreza e o saldo natalidade/mortalidade, com o nível médio/alto dos salários, pode-se concluir que a capacidade de recrutamento, na Madeira, de interessados na frequência daquela escola seja limitada. Porém, ressalvo, sendo uma escola internacional, provavelmente, o recrutamento ultrapassará a esfera da região. Aliás, presumo que, antes de se lançarem nesta escola, terão feito os necessários estudos de viabilidade nesta região. Ainda na edição de ontem do Dnotícias, li: "Escolas privadas sufocam e públicas com dívidas. Formadores, alunos e fornecedores sem receber".

4. Em síntese, para além dos princípios que norteiam a escola, coexistem dois aspectos que destaco: por um lado, se esta escola, pelas suas características, entrará no rol dos beneficiários de apoios públicos da região. Pessoalmente, repito, não aceito que uma fatia do Orçamento Regional seja destinado ao sector educativo privado. Que faça o seu "negócio" é uma coisa, outra, é a Região comparticipar no "negócio". Porque a missão da Região é outra. Não faz sentido que um cidadão pague impostos para que se cumpra a Constituição e volte a pagar para que uma minoria tenha acesso a uma aprendizagem assente em um paradigma distintivo; por outro, e isto para mim é de uma relevância maior, é-me incompreensível que o sistema público, paulatinamente, não caminhe no sentido de uma "escola que tenha como objetivo desenvolver alunos (...) inquiridores, conhecedores e de mente aberta que aspiram a construir um futuro melhor, através de um ambiente de apoio, respeito e cuidado que promova a aprendizagem através da partilha (...)". É preciso, senhores governantes, que o privado venha a assumir isto, quando tantos, de investigadores a autores, desde há muitos anos, já o disseram até à exaustão? Então, a escola pública não tem de ser aquilo que um privado vem dizer?

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Será que alguém estaria à espera de outro resultado?


56% dos estudantes da Universidade da Madeira "acham que o percurso académico não os preparou para o ensino superior" - edição de hoje do Dnotícias, página 3. No ano anterior a percentagem tinha sido de 60,2%.



Este novo estudo da Académica da Universidade da Madeira é muito interessante, pois as percentagens apuradas em muitos domínios permitem importantes reflexões. Fixei-me, apenas, na preparação dos estudantes nos primeiros doze anos. 

Não me foi nada surpreendente. Estimo que, numa análise mais fina e dirigida a todo o universo dos estudantes, aquela percentagem possa ser superior. Certo e sem a minha leitura subjectiva, mais de metade dos alunos são hoje peremptórios relativamente às dificuldades que experimentam na frequência universitária. 

Nada de novo. Quando lá leccionei os meus alunos diziam o mesmo. Buscando as causas, independentemente das variáveis serem muitas, a questão central está, desde logo, na ausência de compaginação entre a formação inicial e a universitária. A propósito, o Henrique, o meu neto mais velho, hoje a finalizar Economia, no dia que terminou o 12º ano, e ao meu pedido: resume-me estes primeiros doze anos de escola. Respondeu-me: "eu servi a escola; a escola não me serviu". Ora bem, a escola fê-lo cumprir currículos, extensos programas, testes de avaliação e exames; possibilitou trabalho aos professores, auxiliares e administrativos, porém, não lhe serviu enquanto lastro e asas preparatórias de abertura ao mundo do conhecimento.


Pensar, ou melhor, exercitar de forma contínua o pensamento, o acto de reflectir, raciocinar, imaginar, conceber, duvidar, comparar e transferir, sendo, desde as primeiras idades, condicionados pelo espartilho curricular e programático, só podia redundar no desajustamento sentido pelos estudantes, quando, no superior, se exigem competências de investigação científica e adequada formação técnica para a vida profissional. No superior "a papinha" não está feita! 

Se a escola dos primeiros doze anos continua a basear-se na segmentação das disciplinas curriculares e não numa visão sistémica; se a escola, infelizmente, continua a ser transmissiva (debitadora), directiva e uniformizadora, seguindo os manuais, não dando espaço ao pensamento; se a escola permanece, obcecadamente, preocupada com a "classificação" e não com a avaliação que possibilita ao aluno e ao professor aprenderem; se a escola prefere a rotina e não consegue sair do conceito de turma, de aula e horário; se a escola secundariza a formação cultural; se a escola escolhe o beco e não a avenida do conhecimento; se a escola não desafia e inspira; se a escola inicial prefere especialistas em exames e não a formação de pensadores; se a escola está apostada em vegetar na bolha que os adultos construíram, parece-me óbvio que os 56% tenderão a crescer, os tais que assumem que não foram preparados para o ensino superior. 


Os primeiros doze anos de aprendizagem (não devia ser de ensino) necessitam de uma reformulação total. Não é coarctando a cooperação, não é impedindo o acto de fazer pensar, não é sujeitando os estudantes aos traços de uma escola do passado que resolveremos os nossos problemas com o futuro. 

Deixo aqui uma passagem do meu livro "A Escola é uma seca", página 58. Tenhamos presente as palavras da Professora Maria de Assis, Promotora de Práticas Colaborativas - Arte, Cultura, Educação:

"(...) Nós só aprendemos o que queremos, porque quero ou porque sou levado por alguém que me inspire. Mas, depois, aprendo por mim mesmo. O conhecimento é uma construção própria. Não é algo que eu fixei e que não sei aplicar em diferentes contextos. Portanto, esta coisa que há um especialista que transmite conhecimento é uma falácia. É fantástico que exista o especialista (...) mas o conhecimento constrói-se por cada um".

Retorno a Merlí:

“(...) Estou fartinho de pessoas que dizem que a Filosofia não serve para nada. Parece que o sistema educativo esqueceu as perguntas: quem somos, de onde vimos e para onde vamos. O que interessa é que empresa criaremos e quanto dinheiro ganharemos. A Filosofia serve para reflectir sobre a vida e sobre o ser humano. E para questionar as coisas. A Filosofia e o poder têm uma tensão sexual não resolvida. A Filosofia é virar do avesso tudo quanto damos por sabido. (...) quero-vos acordados, com as antenas ligadas ao que se passa à vossa volta. Preparados para assumir as contradições e as dúvidas criadas pela vida e para enfrentar as adversidades e aprender com as derrotas (…)”.

Ai se escutassem os alunos, os professores e os qualificados no quadro de uma visão sistémica e de futuro! Desde logo perceberiam o tempo que andam a perder nas caraterísticas deste ensino presencial por ausência de um pensamento estruturante. O que se assiste não é "estudar com autonomia", mas matar a autonomia e o interesse pelo conhecimento.

Tão distantes que estamos dessa Escola portadora de futuro!

Ilustração: Google Imagens

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A corrida aos € 20,00 e a realidade



FACTO

A Câmara Municipal do Funchal veio dar conta de um apoio de € 20,00 por cada atleta inscrito nos clubes cujas idades não ultrapassem os 15 anos. A autarquia calcula serem 5 000 os abrangidos o que perfaz um encargo do município de € 100 000,00. 

COMENTÁRIO 

Primeiro
Tenho, como é óbvio, o maior apreço pelos clubes e pelas suas dinâmicas realizadas através de dirigentes e treinadores que os vivem intensamente. Curvo-me perante o seu trabalho com muitos resultados nos planos nacional e internacional. Não é isso que está em causa. Em síntese, não me conformo é com as políticas de base que não têm em conta a realidade. 

Se consultarmos o Eurobarómetro, relativamente aos dados da prática física e desportiva de 2022, publicados em 2023, página 10, conclui-se que, em Portugal (incluindo as Regiões Autónomas), à pergunta: "com que frequência se exercita ou pratica desporto? Por "exercício" entende-se qualquer forma de atividade física (...)", 73% da população assumiu que "NUNCA"; 4% afirmaram praticar de "forma regular"; 18% com "alguma regularidade" e 5% "raramente". Portugal é o pior do ranking dos países europeus, seguido da Grécia (68%) e Polónia (65%). No lado oposto está a Dinamarca com 20%, a Suécia com 12% e a Finlândia com 8%, repito, os que assumem "nunca" praticarem qualquer actividade.

Nota
Entende-se por taxa de participação a relação entre o número de praticantes desportivos e uma dada população total considerada. 


Segundo
Deduz-se daqueles resultados do Eurobarómetro, que a estrutura organizacional de suporte à actividade física e desportiva está completamente errada. Não é função primeira dos clubes o crescimento do número de praticantes. É à Escola que pertence tal finalidade. A Escola deve ser a referência maior da quantidade, competindo ao clube a preocupação pela qualidade. 

Sendo assim, por princípio, não deve competir ao clube resolver o problema da formação em larga escala, ainda que a possa fazer atendendo a algumas especificidades. Genericamente, essa deve ser a responsabilidade da Escola.

A confusão desde sempre instalada, onde os vários actores se atropelam, baseia-se no facto de não existir uma assumida interface (complementaridade) entre a escola e o clube. Pagar aos clubes (como muitas autarquias fazem) para atenuarem um problema de pensamento e organização estrutural da escola, não me parece aconselhável. Os dois sistemas, o educativo e o desportivo, estão, claramente, de costas voltadas e sem norte, pela incapacidade de entendimento do que a um e a outro deve, estruturalmente, competir.

Vou mais longe. A Educação Física já teve o seu tempo (ver infografia e nota 1). Desde há muitos anos que se deveria falar, da base ao topo, de Educação Desportiva. Porém, a mentalidade que continua a prevalecer, baseada em programas curriculares e exigências completamente desfasadas do tempo que estamos a viver, só conduz(iu) à triste realidade de 73% assumirem que "nunca" desenvolvem qualquer prática. E se analisarmos ao pormenor, a taxa de participação fica-se pelos 22%, isto é, 4% regulares e 18% com alguma regularidade. Perante os dados do Eurobarómetro (e não outras estatísticas normalmente marteladas por duvidosos critérios), poderá ficar a pergunta: o que é que a Educação Física tem contribuído para uma prática física e ou desportiva portadora de futuro? Para vida quero eu dizer? Não é, seguramente, fechada na sua torre de marfim, impondo lógicas programáticas, testes, avaliações e exames que Portugal atingirá os patamares de uma excelência ao nível de uma prática entendida como bem cultural e de resultados que não necessitem da importação de estrangeiros.

Ora bem, impõe-se uma revisão completa desta mentalidade que atira dinheiro para cima de um problema, quando essa "estratégia" nada tem resolvido no plano do pensamento estrutural do funcionamento da sociedade em geral e da prática física e desportiva em particular. Diz-nos a História que não resolverá! Por outro lado é preciso ter consciência que os clubes já são apoiados pela entidade governamental (Plano Regional de Apoio ao Desporto - € 12.742.861,71 em 2023/2024). De acordo com a Demografia Federada, "na época desportiva 2021/2022 foram contabilizados 21 760 atletas federados, distribuídos por 70 modalidades desportivas, pertencentes a 143 clubes desportivos regionais​/sociedades anónimas desportivas (SAD) e a 29 associações regionais de modalidade e multidesportivas". Dos 21 760 praticantes (pressupõe-se regulares) 11 114 pertencem ao concelho do Funchal (51.1%). O resto é fazer as contas para se perceber, em média, o que significa o apoio de € 20,00 a menos de metade (5 000) dos praticantes do Funchal. Sendo assim, o que a autarquia, neste caso a do Funchal, devia assumir como responsabilidade e visão de futuro, mesmo contra a corrente de pensamento, era a da promoção da actividade física junto da população. E há tantas formas de a promover com os tais € 100 000,00 sem ter de recorrer a um ginásio em cada esquina. (Ver nota 2)

Posto isto, caro leitor, são 17:30 e está na hora de ir correr 40' (quase diários) e de complementar com mais uns minutos de musculação. Quero continuar a pertencer aos 4%, pela saúde e pelo desejo de contribuir para que essa percentagem aumente significativamente!

Nota 1
No livro Da Educação Física à Motricidade Humana (2002), editado pelo O Desporto Madeira, pode ler-se, na pág. 36, a seguinte passagem do Doutor Olímpio Bento: “(…) é, portanto, curial reconstruir esta área à luz de um lema como este: “escolarizar o desporto – desportivizar a escola e a vida”. Mas atenção, como também salienta o Doutor Manuel Sérgio, desportivizar a escola e a vida num projecto que combata uma prática que constitui “uma das grandes alienações do nosso tempo”. Isto é, “para além do desenvolvimento desportivo, é preciso criar um desporto ao serviço do desenvolvimento”. E a Escola, neste aspecto, é determinante essencialmente porque é futuro.

Nota 2
Complementarmente, em 2008, numa conferência no Funchal escutei as seguintes frases:
"Se a sociedade está errada o desporto não pode estar certo" - Doutor Manuel Sérgio.
"Um desporto ao serviço da mudança" - Doutor Gustavo Pires


Ilustração
Google Imagens e Proposta de um modelo organizacional do Professor Catedrático Jubilado Gustavo Pires, reproduzido no meu livro "Ano Europeu da Educação pelo Desporto", publicado em 2004.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Aos governantes: leiam, pensem um pouco e definam um projecto portador de futuro


Por 
Rui Correia
SIC

A escola em Portugal atravessa uma encruzilhada de que parece não querer sair. Os alunos acham que não estão a aprender nada. Os professores acham que não estão a ensinar nada. Os pais acham que a escola não lhes pertence. A esmagadora maioria dos agentes educativos deixou de acreditar num futuro viável para o sistema de ensino.


A Rita odeia a escola e é recíproco© Canva

Não andaremos muito longe da verdade se concluirmos que, em grande medida, esta desacreditação voluntária e voluntarista do sistema (porque tornou-se um desporto nacional rebaixar a escola pública) prende-se com a crescente inadaptação da escola ao tempo e ao mundo que a rodeia.

Mais professores para menos alunos


Toda a gente concorda que os tempos mudaram. O mundo mudou. Ninguém parece discordar que os miúdos são hoje completamente diferentes dos de há vinte ou trinta anos. É discutível. Mas é um facto que a voracidade da tecnologia e da semiologia mediática transformaram completamente os formatos e as ambições de conhecimento dos nossos jovens. Dos adultos também. Todos queremos aprender outras coisas e queremos conhecê-las de um modo completamente diferente daquele a que todos nos habituámos. A miudagem mais ainda.

Uma das muitas evidências desta transformação é que não há quem não exija – e bem - uma urgente redução do número de alunos por turma. Um horizonte que se torna cada vez mais mirífico por causa dessa cegueira antipatriótica que foi proibir durante anos a admissão de novos professores na carreira.

Turmas bastante mais pequenas do que as que temos são uma imprescindibilidade óbvia para todos os que alguma coisa conhecem do universo escolar actual. Este mundo em mutação provou-nos que não é pedagogicamente sustentável acreditar no sucesso escolar sem atender mais imediatamente aos interesses de cada indivíduo que deseje aprender coisas.

Mude-se os alunos


Diz-se que os miúdos estão menos respeitadores e mais desobedientes, menos interessados e mais agitados. Diz-se também que os professores não sabem manter a disciplina nas suas salas de aula. Diz-se ainda que os pais se converteram em vassalos dos egoísmos dos seus filhos. E, saltitando de frase feita em frase feita, tudo vai valendo e nada se altera, porque não se saberia por onde começar.

Há quem diga, sem rir, que é muito difícil “mantê-los calados e quietos durante 90 minutos”. E todos anuem. Como se estar “caladinho e quietinho” fosse o propósito de uma educação que se pretende “crítica e criativa”, como agora se diz muito que a escola deve ser.

A realidade é que estes pseudo-argumentos funcionam e proliferam como álibis da mediocridade. Enquanto os culpados desta era de decadência forem os alunos ou essa bugiganga chamada “sociedade”, então os demais livram-se de todo o mal. De toda a responsabilidade. A espada de Dâmocles impende sobre outrem e isso é suficiente para que se acomode na sua poltrona todo o cinismo e toda a hipocrisia. Parafraseando o poema do velho Brecht: se os alunos são o povo das escolas, dissolva-se o povo e eleja-se outro.

O Titanic escolar


A questão é que por todo o lado salta à vista que a escola perdeu o seu pé. A escola embateu num iceberg, de cujo tamanho nem suspeita, sente-se a si mesma como náufraga em mar alto, e insiste em tocar violino. Não aceita o mundo em que vive e anseia por desistir a tempo. O último que apague a luz. É iniludível que os modos de fazer aprender têm de reencontrar-se com o mundo lá fora.

A um mundo empolgado, criativo e provocante, responde a escola com uma obstinação academista, categórica e protocolar. Existem múltiplos formatos pragmáticos e envolventes que instigam efectivamente ao apreço pelo acto voluntário de querer saber.

Há enxames de profissionais sérios a estudar e aplicar estes novos formatos. Por todo o lado se divulgam práticas objectivas, concretas de tornar o estudo apetecível e congruente. É mesmo verosímil trazer a miudagem para o mundo lógico e sensorial do conhecimento. São aos milhões os professores, os alunos, os pais que tudo fazem para que as coisas caminhem nesse sentido. Mas deparam-se com a oposição obstinada de quem nada faz, nem quer que se faça. Instalou-se nas escolas um fingimento e um pretensiosismo educativo que busca a uniformização de tudo, a inflexibilidade nos modos e nos conteúdos; há uma escola jacente e apavorada pela mudança que impõe o seu autoritarismo sobre todos e que se entregou a um impasse anímico.


Uma greve existencial


Esta inércia instituída leva muitos professores e alunos à frustração, à solidão e à resignação. Num mundo que cresce a olhos vistos, sustentado na adaptabilidade e na elasticidade de todo o conhecimento, a escola parece viver numa espécie de greve existencial, de onde só se vê aquilo que já antes foi visto. É imprescindível não comer gato por lebre – e reconheça-se que, pedagogicamente, não faltam por aí gatos escondidos com o rabo de fora. Mas a prudência, indispensável em educação, não se confunde com a mais elementar renúncia de tudo o que fuja ao instituído. Existe um activo e incansável imobilismo nas nossas escolas que amesquinha e esboroa qualquer entusiasmo, qualquer prática didáctica que tenha o mais leve aroma a mudança.

O desânimo e o faz de conta são colossais. As estatísticas, os rankings e as “boas práticas” tornaram-se a sobremesa favorita da educação. Enquanto são servidas em bandejas cintilantes, continuamos na mesma.

Nos conselhos de turma ouve-se constantemente que “A Rita tem “potencial” mas parece que não quer saber de nada”. Depois segue-se um arrazoado sobre a família da Rita. É tudo verdade. Mas, ao mesmo tempo, é tão óbvio que os miúdos não se revêem minimamente nas orientações tradicionais das metodologias de ensino que incidem ainda poderosamente na ideia de uma prática de reprodução acrítica de conteúdos definidos de modo centralizado, sincronizado e uniformizado.

Sem uma resposta clara, plural, responsável e pragmática, para os desafios que os miúdos, os seus pais e os nossos dias nos colocam a todos, não há forma profissional de trazê-los para a luz que de nós esperam. Precisamos de uma escola eclética, híbrida, elástica, dobradiça e mais ansiosa por aprender do que por ensinar.

SIC Notícias

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

DESPERTAR A PULSÃO CÍVICA NA ESCOLA


"Professor Rui Duarte
A Página da Educação / Dezembro 2023



"Só com crianças e jovens mentalmente fortes, informados, vigilantes, assertivos e solidários, poderemos aspirar a um desejado e necessário envolvimento cívico, individual e colectivo nas mais variadas causas que inquietam a humanidade (...)"


Infelizmente, a Escola não é nada disto!



sábado, 13 de janeiro de 2024

Professores a menos ou Escola a mais?

 

Não se trata, apenas, de um conceito advindo, julgo eu, do desenho arquitectónico. Ludwig Mies (1886/1969) assumiu que "menos é mais", isto é, coisas simples são melhores que as complexas, presumo eu, porque atraem, motivam, geram a curiosidade, não significando isso que não tragam no seu bojo a própria complexidade de serem simples. É um princípio que a Escola devia assumir como fundamental no processo de aprendizagem. Mas não é isso que se verifica. Desde os primeiros momentos há uma impaciente tentação para tudo complexificar, com extensos currículos e densos programas, quando o menos pode transformar a aprendizagem na essência do mais. Tudo está interligado e quando, excessivamente, se decompõe em unidades (disciplinas) corre-se o risco de perder-se a noção da complexidade do global. 



Ora, se "menos pode ser mais", desde logo, a eliminação da tralha metida, sucessivamente, a martelo, no processo de aprendizagem, devia constituir o embrião para um conhecimento mais vasto, duradouro e multiplicador em todas as situações da vida real. O enciclopedismo da escola, que em muitos casos para nada serve, não significa cultura, na perspectiva de pessoas capazes de interligar e transferir pressupostos conhecimentos.

É nesta perspectiva que se trata de uma falsa questão a reclamada "falta de professores" para enquadrar as turmas, os currículos, os programas e a lógica dos exames onde tudo acaba. Não existem professores a menos, estamos sim confrontados com escola a mais. O pensamento sobre a instituição Escola é que tem de ser (re)pensado. Com um outro sentido de escola, não segmentada por disciplinas, o menos tornar-se-á mais. Esta escola não parte de coisas simples para gerar a curiosidade que conduz à complexidade. Ela está aferrolhada, há muitas dezenas de anos, numa caixa bloqueadora que não permite desabrochar o talento, respeitar o sonho, a criatividade, a inovação, o sentido crítico e o gosto pelo saber animado por uma busca própria. De resto, o professor é um mediador, jamais deve ser a autoridade intelectual num mundo onde tudo está à mercê de instantâneas procuras. E sendo assim, esta escola deixou de fazer sentido.

Ora bem, a luta dos professores por melhores salários face à sua imprescindível responsabilidade na sociedade é, para mim, óbvia e necessária. Em simultâneo gostaria de vê-los lutar, e isso, grosso modo, não acontece, por uma aprendizagem para o nosso tempo, contra uma escola excessivamente burocratizada, contra uma escola heterónoma, ditada por políticos acéfalos sem noção da responsabilidade que lhes incumbe, uma escola que afaste a rotina de anos, uma escola que se tornou sacrifício e não prazer para alunos e profesSores. Salvo as excepções, plantadas contracorrente e sempre vigiadas, a escola é hoje uma instituição morta na sua essência. Ao correr do pensamento que vou digitando, trago em memória a pergunta do Mestre e notável Pedagogo José Pacheco: "O que uma criança em idade escolar aprende dentro do edifício da escola que não pode aprender fora dela? Não perca muito tempo pensando. Nada".

Quando assisto a um professor a lamentar-se que trabalha cem horas por semana ou inquéritos que dão conta que, em média, trabalham cinquenta e que, individualmente, são responsáveis por mais de 200 alunos, não fico a lamuriar-me, cheio de pena. Fico a pensar nas causas e nos silêncios que permitem que assim aconteça. Contrariem, pois, o pensamento atribuído a Mark Twain (1835/1910): "para quem tem apenas um martelo por instrumento, todos os problemas parecem pregos". O respeito pela função docente começa aí. Jamais pela lealdade aos loucos! Ademais, a aprendizagem deve assentar numa construção social!

Ilustração: Google Imagens/José Pacheco-FB

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Uma coisa é ser secretário, outra, sectário!


Miguel Esteves Cardoso escreveu, já tem um certo tempo, que "Aprender é ficar vazio. Para aprender, é preciso estar-se insatisfeito. É preciso estar-se à procura de mais. É preciso estar-se aborrecido. Em suma: é preciso estar-se desiludido com tudo aquilo que se aprendeu. (...) Aprender é uma coisa que és tu que fazes. Não é o que acontece quando alguém te ensina. És tu que engoles o pistacho. Não é a pessoa que te diz que o pistacho faz bem, ou que todos temos de comer. (...) Para aprender, nem sequer podes pensar que é só com as pessoas que se pode aprender. Pode-se aprender com os animais. Pode-se aprender com as árvores. Porque aprender é apanhar, aprender é aproveitar, aprender é tirar partido, aprender é transformar, aprender é estar atento, aprender é jogar com aquilo que se tem. 



(...) 
Para aprender, também não podes pensar que tudo se aprende nas aulas e nos livros. Não é só com os que sabem muito que podes aprender. (...)"

As perguntas que coloco, pela enésima vez, são estas: neste contexto, o que seria expectável esperar da Escola, enquanto centro de verdadeira aprendizagem para a vida? E dos decisores políticos? Tenho consciência que os governantes não sabem. Talvez nem queiram saber, porque instalaram-se na doentia e centralista rotina governativa. O que mais gostam é da cadeira, dos salamaleques tolos de quem os rodeia e não da construção de uma sociedade culturalmente robusta. 

O que Miguel Esteves Cardoso enuncia não constitui uma novidade, tantos são aqueles que estudaram e divulgaram a complexidade do processo de aprendizagem, mas uma lúcida chamada de atenção àqueles que pensam que "aprender é acumular", é cumprir currículos e programas, ao contrário de "preencher, trocar uma coisa aprendida, que já não presta, por outra coisa que se aprende". Neste pressuposto, a Escola está a léguas da perspectiva enunciada pelo escritor, porque, infelizmente, continua a matar a curiosidade, a preferir respostas do que perguntas, continua a ter preferência pela avaliação e não pelo conhecimento, continua cega na transmissão enciclopédica que não respeita vocações e sonhos, continua embriagada na busca do "mérito" de uns quantos para promoção pessoal, enquanto deixam milhares no vazio que o crescente desinteresse demonstra. 

Porque a sociedade o exigirá, estou em crer que os políticos amorfos e sem visão, os centralistas no pensamento e na acção, acabarão por ser substituídos por outros que transportem aquilo que Paulo Freire, pedagogo de referência mundial, um dia sublinhou: "eu tenho um gosto em respeitar a diferença que me abre ao mundo (...) jamais me sectarizei e jamais fui intolerante". Ora aí está, o respeito pela diferença no pensamento constitui a "pedra de toque" do desenvolvimento. Só por aí existe abertura ao mundo. Portanto, uma coisa é ser secretário, outra é ser sectário! Miguel Esteves Cardoso complementa: "(...) Para aprender, é preciso revelarmos a nossa ignorância (...)". Nem mais.

Por outro lado, penso ser pertinente a questão: que pensarão os professores e os sindicatos de professores de tudo isto? Pessoalmente parto do princípio que a curiosidade "é uma fome, e para ter fome aquilo que se comeu durante toda a vida já não conta, porque já foi há mais de 24 horas". É por isso que questiono os professores, porque encontro aqui uma convergência com Richard Feynman, Nobel da Física em 1965, quando destacou dois tipos de conhecimento: o que se foca em conhecer o nome que se dá à "coisa" e o conhecimento sobre a "coisa". Continuamos no lado do nome que se dá à "coisa" quando é o conhecimento da "coisa" que transforma, molda, liberta, torna melhores os seres humanos e, na esteira do Filósofo Eduardo Lourenço, faz-nos sábios. 

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

2024


Depois da "festa" a realidade. Após uma certa embriaguez que as circunstâncias, rotineiramente, a todos envolve, Janeiro fora regressamos à sequência do dia-a-dia, para a maioria, à lamúria das insuficiências que o Natal, de uma ou outra maneira, esbateu. Já aqui escrevi sobre a minha contida desilusão face ao caminho tortuoso, esburacado e minado que os senhores do mundo nos obrigam a trilhar. Vive-se um tempo de descrença e de pavor, de ausência de referências que nos embalem para as palavras "acreditar e esperança", que rejeite seres mais dados ao conflito do que ao sentimento humanista. E o conflito não está apenas nas guerras! Utopia, dir-me-ão! Só que a utopia é um caminho que se faz de sobressalto cívico, nunca de silêncios. A utopia, como dizia Pirri a Galeano, está lá, ao longe, por isso serve para caminhar. Por isso, caminhemos.



Há muitos silêncios por aí. Há muitas colunas vergadas pela obediência, muitas dependências intencionalmente criadas, muitos braços caídos e muitas silenciosas lágrimas vertidas por mil e uma razões. E o silêncio mata, lenta mas seguramente, a sociedade. A ausência de pensamento sobre tudo quanto nos rodeia, a capacidade de perceber, interpretar e de cruzar a(s) realidade(s), a insuficiência de sentido crítico joga sempre a favor daqueles que, na esteira de José Régio, vendem o seu produto:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
(...)"

É essa consciência e esse sobressalto que desejaria assistir, paulatinamente, em 2024. Tudo menos a gritaria de comentadores travestidos de qualquer coisa e de uma comunicação social descredibilizada porque sempre atrás do anormal.

Difícil, eu sei. No ano dos 50 de Abril, onde a verdadeira Escola pouco deu na perspectiva de seres humanos conscientemente libertos através de uma superior qualidade da mente, não será demais augurar que os professores se soltem da rigidez do manual, no quadro de uma formação global, eu diria cultural, que jamais pode ser conseguida através do ciclo de verbos: debitar, fixar, responder, avaliar, passar ou chumbar. A aprendizagem da vida não está nos manuais da escola, é muito mais complexa, e repetir o passado apenas poderá conduzir à mentalidade que, genericamente, nos caracteriza e, aos poucos, à morte da Democracia. Aliás, por todo o lado, é sensível o assalto aos mais elementares direitos humanos. Sempre através da caça do descontentamento e das concomitantes palavras doces e olhares inocentes que não traduzem as intenções mais profundas.

Bom 2024!

Ilustração: Google Imagens

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

PISA vs Ranking´s - Não dá a bota com a perdigota!


Nota prévia
PISA tal como os ranking's das escolas constituem "avaliações" às quais não concedo valor no quadro de uma análise séria e sustentada. Mas a verdade é que dão jeito, para alguns, claro, sempre que se agarram aos números para uma descarada propaganda política. 



Posto isto, sucintamente, porque este assunto dá pano para mangas, deixo aqui o paradoxo entre a divulgação de alguns dados enunciados pelo secretário regional da Educação, relativamente aos testes PISA (2022), publicados na edição de hoje do Dnotícias, e os resultados apurados nos ranking's dos exames nacionais de 2022.

Ora bem, hoje, o político, no apuramento PISA, tece loas à qualidade dos estudantes madeirenses na literacia de leitura, matemática e ciências, colocando-os praticamente a par da Finlândia, Suécia, Dinamarca, Alemanha, França e, destacadamente, à frente dos resultados de Portugal Continental. Comparativamente (Dnotícias, segundo a secretária regional da Educação) eis os resultados enunciados:

Literacia de Leitura
1º Finlândia     490
    Madeira       487
    Continente   477

Literacia Científica
1º Finlândia     511
    Madeira       492
    Continente   484

Literacia Matemática
1º Dinamarca   489
    Madeira       474
    Continente   472

No mesmo ano (2022) realizaram-se os exames dos Ensinos Básico e Secundário. Dos resultados divulgados pelo Ministério da Educação verificou-se o seguinte: 

Básico 
Entre as 1181 escolas portuguesas foram as seguintes as posições dos estabelecimentos da Madeira: 25º lugar/59/222/275/419/486/493/500/501/580/664/690/733/745/
808/863/868/883/917/945/964/1050/1082/1112/1125/1143º.

Secundário
Entre 646 escolas portuguesas, eis as posições dos estabelecimentos da Madeira: 
143º lugar/210/279/285/314/434/477/497/508/541/544/553/617º. 
A primeira escola registou uma média de 16,16 valores; as da Madeira, entre 12,10 e 9,25 valores.

Seria suposto que se verificasse a existência de uma convergência média entre os ranking's das escolas e os testes PISA. Se a Madeira está no topo dos resultados PISA, parece-me óbvio que os resultados apurados nos exames nacionais do Básico e do Secundário, na generalidade, reflectissem essa pressuposta qualidade de topo. Mas não é isso que se constata. Tomara que fosse realidade. E o próprio secretário, em "declarações" ao Dnotícias, "felicitou não apenas os participantes nos testes, mas todos (...)" os alunos da Região, o que significa que a qualidade é transversal a partir dos 15 anos de idade.

Portanto, existem pinceladas de fraude no discurso político. Os resultados PISA, até prova em contrário, só se justificam, porque o carácter aleatório dos que submeteram aos testes NÃO foi respeitado. São os "melhores alunos" os designados para os realizarem? É uma hipótese a esclarecer. Porque "não dá a bota com a perdigota".

Seja como for, continuo na esteira do Doutor Pablo Gentili: "Os testes PISA são um concurso de beleza da Pedagogia". Não é sério e dá azo a que a propaganda política mascare a realidade.

Ilustração: Google Imagens

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

PISA - Um concurso de beleza da pedagogia


A última "aferição" PISA (Programme for International Student Assessement) ditou que Portugal, entre a generalidade dos países, piorou nas médias de capacidade na leitura, matemática e ciências. A verdade, porém, é que tais provas não provam nada. Pablo Gentili, Doutor em Educação pela Universidade de Buenos Aires, assume: "(...) Las pruebas PISA construye um mecanismo artificial, lo impone y nadie lo cuestiona, y luego compara (...) las pruebas PISA son un verdadero desastre, se imponen por la fuerza que ejerce la organizatión poderosa que las realiza en los medios de comunicación". Nas suas palavras, em português: "PISA é um concurso de beleza da pedagogia".



Transcrevo o que deixei no meu livro "A Escola é uma seca" (2022): "(...) Há, por um lado, diversas realidades históricas, económicas, políticas, sociais e culturais, que não permitem, com rigor, comparar o que é incomparável e, por outro, da prática, sabe-se que não é seguro o carácter aleatório de escolha dos alunos que se submetem aos testes. Factos que distorcem e colocam em causa o resultado final. Bastam estes dois aspectos para que se fique de pé atrás na análise dos resultados. Muito mais importante seria uma apreciação comparativa da estrutura dos diversos sistemas educativos (organização, currículos, programas e o pensamento pedagógico) no quadro da composição social, se eles estão ou não adequados ao tempo que vivemos, à própria investigação, se transportam ou não um princípio hierárquico contrário à verdadeira autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem, o grau de formação dos docentes e a sua disponibilidade para aceitar novos paradigmas pedagógicos (…)”.

Quem está atento percebe os desígnios da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). Portanto, estas provas PISA, tal como os "ranking's" anuais das escolas, do meu ponto de vista, nem constituem um indicador, aos quais junto o facto de ser contra o pensamento único. Rejeito que poucos, nos gabinetes, influenciem aquilo que deve ser a condução das sociedades. Ora, como ponto de partida, uma outra análise conjuntural devia constituir preocupação e essa resume-se a algumas perguntas essenciais: por que razão apenas cerca de 15% das raparigas e 11% dos rapazes dizem gostar da escola? Por que razão 70% dos professores estão em exaustão emocional (Burnout) e 84% dizem que, se tivessem uma outra oportunidade, mudariam de profissão? No fundo, para uns e outros a conclusão a que se chega é que esta "Escola é uma seca".

Não foi por causa da pandemia COVID e não foi pelas greves dos professores que, no quadro deste sistema, os resultados foram insatisfatórios. Essas são desculpas esfarrapadas. O problema é mais profundo. A pergunta central para o debate que urge é esta: que escola de CULTURA temos o dever de construir para que ela, com rigor, respeite vocações e percursos de vida? Ou a escola tem de ser aquilo que uns quantos, de concepções afuniladas e alinhados no pensamento único, na OCDE e não só, determinam como as peças de um puzzle que se encaixam nos seus indisfarçáveis desígnios? Tenhamos presente que o problema da ausência de CONHECIMENTO tem uma génese político-social. Portanto, não faz sentido manter um sistema rejeitado, desde muito cedo, pela generalidade dos alunos e desadequado que se mostra relativamente ao tempo que vivemos. A insistência no erro por ausência de debate e estudo justificam resultados não proporcionais ao investimento. Eu diria que, na Madeira, onde a propaganda do êxito atinge foros megalómanos, com um sistemático desfile de prémios de mérito, pergunto, então e novamente, qual a justificação para resultados tão fracos (ranking's e PISA)? 

A propósito, repito aqui a posição do visionário Professor José Pacheco que cito ao correr do pensamento: eu preparava meticulosamente as aulas, tendo o cuidado de olhar para a diversidade e insuficiências da classe, e mesmo assim muitos não aprendiam. Era frustrante! Ora, diz o professor, se eu DAVA AULA (certinha) e eles não aprendiam, então não aprendiam porque eu DAVA AULA. Isto significa que o paradigma da aprendizagem e do conhecimento tem, obviamente, de ser outro. Os responsáveis políticos deviam pensar nisto.

É aqui que começa o problema. O paradigma da aprendizagem não pode quedar-se na imposição curricular tão ao gosto da OCDE; nos irracionais programas desfasados da vida real distribuídos por etapas (1º, 2º, 3º ciclos e secundário) quando a aprendizagem funda-se no acto de fazer PENSAR, descobrir e, de forma continuada, a desaprender para voltar a aprender; não pode seguir as características rotineiras de uma avaliação que se destina a seleccionar/penalizar e não a fazer aprender; pela força, ainda, de uma hierarquia que não estimula o debate e, por isso mesmo, centralizadora, que não permite uma reestruturação da rede escolar e uma verdadeira autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem: não existem duas escolas iguais, dois públicos iguais, professores iguais e características socias iguais. Por tudo isto e muito, muito mais, como ainda ontem escutei, desengane-se quem pense que os dados apurados foram circunstanciais, pois eles tenderão a piorar se o sistema se mantiver enclausurado na sua torre de marfim. Vivemos em 2023, não nos primórdios do século passado! Para não ir mais atrás. Ademais, isto não vai com "salas do futuro" e com "manuais digitais". Esse é um discurso político para tolos!

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

(Não) Querer ensinar


Por
Miguel Palma Costa 
Professor do Ensino Secundário
12.11.2023



1. Não se conhece a circunstância histórica (causa ou motivo… e a fase no longo e, por vezes, violento “processo de hominização”) em que o ser humano entendeu – e se persuadiu – de que ensinar ou transmitir algo que aprendeu, dominou ou passou a fazer era necessário e útil para si e para o Outro da sua espécie. No entanto, este fenómeno – a par da inovação exclusiva da nossa espécie (Homo sapiens) de enterrar os cadáveres dos seus congéneres (novas investigações adiantam agora a possibilidade de os Neandertais também já enterrarem os seus mortos) –, assinala um importante passo para a humanidade e na história da Educação, que certamente começou por meio da observação.

A observação é, sem dúvida, uma das primeiras “ferramentas” que toda a criança possui para se adaptar (sobreviver) e interagir com o meio-ambiente, tal como o fazem muitas outras espécies animais mais próximas (ou distantes) da nossa. É com base naquilo que observamos que começamos a criar algumas hipóteses – insipientes ‘conjeturas’, juízos, teses… – de compreensão sobre o mundo, os objetos que manuseamos e criamos, sobre as relações sociais e afetivas que construímos e que preservamos… e também é através da observação que desenvolvemos a imitação – outro processo de ensino-aprendizagem que nos possibilita experimentar algumas possibilidades e/ou limites, por exemplo, físico-corporais, comportamentais, emocionais e ainda grupais ou sociais.

Antes da invenção e desenvolvimento da escrita (tudo indica que foi por volta de 3500 a. C., no sul da Mesopotâmia), a oralidade, naturalmente em conjunto com outras formas primitivas comunicacionais, teve a relevante função de memorizar e transportar (ensinar) tudo aquilo que era considerado marcante e proveitoso para o ser humano e, em especial, para as gerações mais novas. Ora, como é entendível nesta ordem cronológica que particulariza uma evolução, a nobre, primordial e indispensável função de ensinar é obviamente muito anterior ao processo de criação das primeiras instituições educativas (escolas) na história da humanidade.

Na Europa, as civilizações grega e romana desenvolveram um inicial (e básico) tipo de ensino centrado numa vertente militar e atlética (entre os espartanos, a “formação” principiava aos sete anos de idade e centrava-se sobretudo no domínio e aperfeiçoamento das habilidades físicas – os duros treinos físicos tinham como propósito fazer com que os homens estivessem prontos para atividade bélica/guerra, muito apreciada e excecionalmente planeada – e hoje ainda lhes reconhecemos alguns importantes ensinamentos e valores.

Porém, é público que o ensino formal do Ocidente tem as suas raízes na “paideia” grega (que significa “educação da criança”), isto é, num sistema de educação e formação ética que se difundiu por todo o mundo helénico e depois pela cultura romana. O grande objetivo da paideia era formar um cidadão “perfeito e completo” (integral, na conduta exterior e atitude interior), capaz de liderar e ser liderado e de desempenhar um papel ativo na polis (cidade-estado), agora muito interpretada pelo termo sociedade. Em suma, a formação de um cidadão prático e simultaneamente humanista – guiado por um determinado sistema político –, era o real e concreto objetivo deste modelo de ensino. No presente, nas nossas salas de aula (com as ‘convenientes’ alterações implantadas pelo decurso dos séculos) e no vigente sistema de ensino público português, ainda permanece muito deste modelo que teve origem por volta do século VIIIº – VIIº a.C..

2. Hoje, tal como no passado, ensinar continua a ser uma tarefa (ofício) deveras exigente, uma arte (pois há sempre algo de imprevisível, irrepetível, novo, original ou inovador no ato) e um compromisso entusiasmante, inspirador, se não mesmo “apaixonante”, onde o questionar, partilhar e imaginar/criar são incumbências (missões, deveres…) sempre claras e presentes no espírito daqueles que ousam desafiar a inteligência (e capacidades/competências) nos seus desiguais alunos e em momentos diferenciados.


É verdade que a práxis educativa contemporânea segue orientações, preceitos, regras, bastante precisas e padronizadas pelo conhecimento científico-didático e pelas autoridades políticas que a tutelam, mas a ela estão intimamente aliadas alguma intuição, improvisação, muita criatividade e uma certa dose de dramatização… como é óbvio e percetível, pois julgo que todo aquele que ensina (o educador/a e professor/a) também tem de ter – e ser – alguma coisa de ator (um bom intérprete) se quiser gozar de sucesso junto do seu público!

Dito por outras palavras, o professor é atualmente uma espécie de “ator-racional”; é aquela figura que tem uma visão holística sobre o mundo e as mudanças que estão em curso e que se relacionam com o seu valioso trabalho (alguns definem-no como “intelectual-crítico”), que possui autonomia racional, científica e técnico-pedagógica para executar (bem) as escolhas que estão ao seu alcance fazer (provido de uma ação esclarecida/autónoma), apesar de quase esmagado por uma burocracia que prejudica o seu desenvolvimento profissional e até o crescimento pessoal e educativo dos alunos.

Acredito que é o fardo desta carga burocrática (por exemplo, de processos administrativos – e avaliativos –redundantes e caducos e de expedientes inúteis fixados por sucessivos governos e ministros/secretários), para além de uma desmedida pressão quotidiana e a falta valorização e reconhecimento do trabalho prestado à comunidade, que hoje incitam muitos daqueles que (ainda) ensinam em Portugal a desistir deste nobre compromisso que é ensinar e preparar as novas gerações para o futuro.

Se os mais novos já optaram por não querer ingressar na profissão, então os ‘seniores’ estão neste momento ansiosos para que chegue a idade da reforma.

3. No passado dia 5 de outubro assinalou-se o Dia Mundial do Professor, data que deveria servir para todos refletirmos sobre o modo e as desfavoráveis condições que todos aqueles que ensinam, enfrentam – e que precisam de ser corrigidas –, para desenvolverem plenamente (e com qualidade) o seu talento e vocação.

É verdade que ensinar oferece a oportunidade única de promovermos um impacto transformador e duradouro na vida do(s) Outro(s) – sejam eles crianças, adolescentes ou até adultos –, contribuindo para a sua formação e realização pessoal e profissional, e que é muito diferente de qualquer outra obrigação profissional.

É uma missão singular que não está ao alcance de todos (por múltiplas razões), pois aquele que ensina é também o guardião da experiência da Humanidade, o transmissor de uma herança inigualável que não se pode desaproveitar e/ou maltratar, e o portador de uma colossal esperança no porvir (é um construtor – e sonhador – dos sonhos dos seus alunos).

No entanto, hoje enfrentamos uma escassez nacional (e até global) de professores, ampliada pelo rápido declínio das condições de trabalho e a quase insignificante posição/reconhecimento social que estes auferem nas ditas sociedades modernas e hipertecnológicas.

Em Portugal, uma larga maioria dos que (ainda) ensinam estão deveras descontentes com o rumo da profissão que escolheram e exercem – melhor, com a falta de expectativas de carreira (já pouco ou nada atrativa), com a parca remuneração auferida, com o diminuto reconhecimento social, com a excessiva carga burocrática e de trabalho administrativo (desnecessário), não esquecendo um sistema de avaliação docente nada transparente e que não premeia o mérito… e com um conjunto de reformas e políticas educativas descabidas e inoperantes – e aconselham agora os mais jovens a não seguirem esta atividade e, portanto, a não ensinarem as gerações mais novas e outras que estão ainda por nascer. Tudo isto – e o que se prevê já nos próximos anos –, dá que pensar!

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Quando falam de inclusão


“Um currículo inclusivo não assume os mesmos padrões para todos os alunos, mas respeita e valoriza as suas necessidades, talentos, aspirações e expectativas exclusivas. Ao fazer isso, esforça-se para remover barreiras à participação de certos grupos de alunos, incluindo aquelas criadas pelo currículo oculto.” É este esforço de remover obstáculos que surge retratado no relatório “Adapting Curriculum to Bridge Equity Gaps: Towards an Inclusive Curriculum” da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).



Ora bem, não existe uma política educativa caracterizada pela igualdade de oportunidades, quando as assimetrias são inquietantes, cuja prova está nos 32% de pobres ou em risco. É um erro crasso argumentar a igualdade como se esta pudesse situar-se, apenas, no quadro da acessibilidade à escola. Essa constitui um direito constitucional. Era o que faltava se os governantes não cumprissem a Lei Fundamental! A verdade que contraria a mentira oficial está nos Censos de 2021, divulgada num excelente trabalho do jornalista do Dnotícias, Francisco José Cardoso: 36.485 residentes não terminaram a primeira fase (4º ano); 50,3% tinham escolaridade até ao 9º ano; 15 em cada 100 não tem qualquer nível de escolaridade; 8,1% com 15 ou mais anos não possui nível de escolaridade completo e o analfabetismo continua superior à média nacional. Quase 50 anos depois de Abril! E sabe-se, também, no quadro deste sistema, as subtis pressões sobre a escola no sentido de evitarem retenções. Perguntem aos professores. É a estatística a prevalecer sobre o conhecimento.

"(...) A taxa de abandono escolar ou de atividade de formação entre os jovens dos 18 aos 24 anos era de 13,7% em 2019, segundo dados do Observatório de Educação, sob a tutela da Secretaria Regional, porque o Eurostat, vamos lá saber porquê, deixou de publicar a taxa de abandono escolar precoce na Região a partir de 2016, nessa data, situava-se nos 23,2%. A estrutura de habilitações dos desempregados inscritos atualmente no Instituto de Emprego mostra que cerca de 46% desses cidadãos sem emprego possuem habilitações inferiores ao 3.º ciclo do ensino básico, demonstrando grandes dificuldades em encontrarem trabalho devido à falta de competências e qualificações. E se incidirmos a atenção nos trabalhadores em funções, por conta de outrem, observamos que 31.743 trabalhadores possuíam apenas o ensino básico ou menos. Ao analisarmos a situação dos “nem nem”, jovens com idades entre os 15 e os 34 anos que não se encontram empregados nem frequentam qualquer sistema de educação, formação ou estágio, no final de 2019, a Madeira apresentava uma percentagem de 13,1%. As taxas de escolarização e de conclusão do ensino secundário dos jovens, na Região, entre os 20 e os 24 anos, rondam os 71,2%, isto é, quase 30% dos jovens madeirenses não concluem o ensino secundário. (...)"

Por outro lado, de acordo com "o estudo do Fórum Económico Mundial de 2018, nada menos que 54% de todos os trabalhadores necessitarão de reavaliação e renovação de competências. Como consequência, precisaremos de políticas educacionais aprimoradas que visam elevar rapidamente os níveis de educação e qualificação de indivíduos de todas as idades, particularmente no que diz respeito à ciência, tecnologia, engenharia e matemática e também às capacidades não-cognitivas, permitindo que as pessoas aproveitem as suas capacidades exclusivamente humanas. Os pontos de intervenção relevantes incluem os currículos escolares, a formação e a promoção do papel dos professores e a reinvenção da formação profissional, alargando o seu apelo para além das ocupações tradicionais de baixa e média qualificação".

Para reflectir e cruzar pensamentos!

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Assuntos pela rama!

 

Acabo de ler aquilo que, para mim, são dois "não assuntos" ou, no máximo, temas vistos pela rama. O primeiro, sobre os alunos que, na Região Autónoma da Madeira, ainda não dispõem dos "manuais digitais". Porque não foram entregues em tempo desejável face ao calendário escolar!; o outro, subordina-se à razão média entre o número de alunos e o de professores. Muita parra e pouca uva. A seriedade implicaria que tais temas fossem trabalhados de outra maneira e com outras importantes variáveis.



Os "manuais digitais" naquele quadro, são um não assunto simplesmente porque a APRENDIZAGEM bem os pode dispensar. Várias são as vias para que, mesmo no âmbito deste ultrapassadíssimo sistema educativo, todos os alunos possam aprender. Aliás, seria bom que a secretaria regional da Educação, as direcções executivas e os professores debatessem a importância ou não dos "manuais digitais", eventualmente de um sistema híbrido, a partir do livro de Michel Desmurget, "A Fábrica de Cretinos Digitais". 

O sucesso da aprendizagem não passa nem nunca passou pelos manuais em papel, e não melhora porque, agora, os alunos podem dispor de um equipamento digital onde os mesmos conteúdos estão instalados. O problema da APRENDIZAGEM e do sucesso na vida está directamente relacionado com um novo sentido de ESCOLA (organização) que rompa com os tradicionais conceitos curricular, programático, PEDAGÓGICO, de turma, de aula, de avaliação e de exames. Tudo isto tem de ser debatido e generalizado a partir do actual conhecimento científico, competindo aos políticos o dever de escuta e de actuação em conformidade. Nunca com "achismos". Há leviandade política ou talvez mesmo ignorância, quando se implementam processos que não correspondem às preocupações da ciência. O livro de Michel Desmurget, que tem o prefácio do Professor Catedrático Jubilado Carlos Neto, devia constituir um importante ponto de partida. Anteontem escutei-os na RTP1 e as preocupações dos dois são de tal forma preocupantes que me questiono: como é possível a secretaria regional estar tão empenhada no digital quando os factos demonstram que há a necessidade de arrepiar caminho. O digital, da forma como o interpretam, traz consequências negativas no sucesso escolar e no plano da saúde. Portanto, só resta uma saída: estudar o problema para que não se escancarem as portas "à desgraça", como escutei. Ao contrário do estudo, uma autarquia até já avançou para um computador por aluno. Loucura total ou, então, uma lógica de "quem dá mais"!

O segundo aspecto que constitui, pelo menos para mim, um assunto a merecer outro tipo de análise, é a proporcionalidade entre o número de alunos e o de professores. Li a peça que, em título, assume que tal razão é melhor na Madeira que no Continente. Independentemente da propaganda política do secretário regional, ao estabelecer, por exemplo, comparações entre a Madeira e o Continente (1º ciclo: na Madeira, 6,6 alunos por professor  / 12,4 no Continente; 2º ciclo: 6,8 - 9,2; 3º ciclo e secundário: 6,6 - 8, respectivamente), verifico que em parte alguma do texto é referido se as várias centenas de professores destacados em diversas instituições contaram para as aludidas percentagens. É que este facto distorce a realidade. A seu tempo se saberá.

E esta questão é, ainda, mais profunda e traiçoeira para o político: eu que sou um radical opositor aos "ranking's" nacionais, porque não se pode comparar o que é incomparável, seria bom que o secretário regional explicasse como é que tendo uma proporcionalidade tão boa entre o número de alunos e o de professores, nos tais "ranking's" as escolas da Madeira aparecem em posições extremamente modestas. Em média e em princípio, menos alunos por professor deveria corresponder, repito, em média, a um melhor sucesso. Porém, não é isso que acontece. É legítimo que se pergunte: que outras variáveis estão a condicionar o sucesso? Factores de ordem social, os alunos, os professores, o "modelo" pedagógico!

Ora bem, os problemas da Educação, no quadro da aprendizagem, são muito mais profundos do que estas historietas de entretenimento e propaganda política. Por isso, considero assuntos analisados pela rama!

Ilustração: Google Imagens.

domingo, 24 de setembro de 2023

Ano novo ou mais do mesmo


Por
José Júlio C. Fernandes
Artigo de Opinião Dnotícias / Facebook
20.09.2023

Teve início mais um ano lectivo. Governantes, pais, professores, auxiliares de educação, educadores, alunos e a sociedade em geral mostram preocupação com o estado do ensino.



Essa preocupação não é recente. Já no meu tempo de estudante aconteceram diversas crises académicas (apesar do regime repressivo) que, entre outras reivindicações, pugnavam por uma reforma do ensino. Eu próprio, nos anos 70, fiz parte de duas comissões de estudo da reforma do ensino, sem resultado aparente, e fui quadro da maior Crise Académica de sempre – “17 de Abril de 1974”.

Fui aluno de cinco universidades e professor de três. Sou formador. Gosto de dar aulas. Reconheço as dificuldades que têm os professores. Percebo as posições de luta que têm adoptado ultimamente. Também reconheço que, a qualquer governo, não é fácil fazer uma alteração radical dos vários níveis do sistema de ensino.

No entanto, estamos a deixar a situação prolongar-se no tempo, o que, inevitavelmente, trará más consequências para todos nós. Para a sociedade em geral.

Além das queixas acerca da não contagem de tempo de trabalho, das remunerações, os professores deviam pôr alguma ênfase na luta contra a burocracia que infesta o ensino.

Horas e horas perdidas em reuniões que muitas vezes não levam a nada, no preenchimento de inquéritos e documentos vários, cujo destino deve ser uma qualquer gaveta no Ministério da Educação (se é que lá chegam...). Tempos que não são úteis à sua missão de educar. Digo educar. Evito dizer “ensinar”. Porque o mais importante não é debitar matéria, não raras vezes, “requentada”, nem efectuar avaliações que deixam muito a desejar. O essencial seria ensinar a aprender. Adaptar os “curricula” e métodos à realidade em contínua mutação em que vivemos.

Em vez disso, a realidade do nosso sistema educativo poderá resumir-se aos pontos que enuncio abaixo:

1. Desigualdade de acesso à educação: a falta de equidade no sistema de ensino leva a disparidades no acesso e na qualidade da educação entre diferentes regiões e grupos socioeconómicos, resultando em desigualdades no desenvolvimento individual e nas oportunidades futuras.

2. Falta de foco nas habilidades essenciais para a vida: o sistema, muitas vezes, valoriza mais a memorização e a reprodução de informações do que o desenvolvimento de habilidades práticas, como pensamento crítico, resolução de problemas e comunicação eficaz.

3. Padronização do “curriculum”: muitos sistemas de ensino seguem um “curriculum” padronizado para todos os alunos, o que não leva em consideração as necessidades individuais e os interesses dos estudantes.

4. Aulas passivas: as aulas tradicionais muitas vezes baseiam-se em palestras e atividades passivas, onde os alunos são meros espectadores, o que limita o seu engajamento e participação activa no processo de aprendizagem.

5. Pouca valorização da criatividade: o sistema de ensino tende a privilegiar o conhecimento académico em detrimento do raciocínio, da criatividade e das habilidades artísticas. Isso pode desencorajar talentos únicos e contribuir para uma formação menos holística dos estudantes.

6. Avaliação com base em testes padronizados: a ênfase excessiva nos resultados de provas padronizadas pode incentivar um estudo com base no psitacismo (acção de quem decora alguma coisa sem pensar sobre o assunto que está sendo memorizado), ao invés de uma compreensão profunda dos conteúdos, além de gerar alta pressão sobre os alunos.

7. Desactualização dos materiais didáticos: o rápido avanço tecnológico torna muitos materiais didáticos obsoletos rapidamente, dificultando a adaptabilidade e relevância do “curriculum” às mudanças sociais e culturais.

8. Infraestruturas insuficientes: muitas escolas enfrentam problemas de infraestruturas, como salas superlotadas, falta de recursos tecnológicos e pouca manutenção das instalações, o que prejudica o ambiente de aprendizagem.

9. Falta de formação adequada dos professores: a capacitação contínua dos docentes é fundamental para garantir um ensino de qualidade, mas muitos profissionais não recebem formação adequada ou atualizada.

10. Pouca ênfase em habilidades socioemocionais: o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como empatia, colaboração e autogestão, são frequentemente negligenciadas no “curriculum”, deixando os estudantes despreparados para lidar com situações do mundo real.

Enquanto continuarmos a insistir no mesmo esquema, os resultados não podem mudar.

Ilustração: Google Imagens