Dia 10 de Março. RDP - Madeira, informação das 16:00. A jornalista Celina Faria faz um directo à saída de uma mesa de voto em Santana. Escuto: "Votei à conta de Deus e seja o que Deus quiser". Estava esclarecida e informada sobre as candidaturas? "Para eu votar escusa-me informar, porque sei em quem voto". Conhece alguns candidatos pela Madeira? "Não, não conheço nenhum. Olhe, eu não quero saber dessas coisas, não sei e nem caminho de casa". Mas mesmo assim nunca falta a um acto eleitoral (...) "Nunca faltei um dia. Enquanto puder virei à conta de Deus". Responde outra eleitora à pergunta da jornalista sobre os candidatos pela Madeira: "Não posso dizer o melhor ou o pior. Para mim são todos iguais. Ninguém me está dando de comer". Vem sempre acompanhada da sua filha para votar: "Venho, eu já não posso"!
Não está em causa em quem votar, desde que esse voto se enquadre numa permissa de conhecimento, pelo menos básico, do "menu" que o exercício da democracia oferece aos cidadãos eleitores. Inclusive, sobre as figuras que pretendem que os represente. Ora, a sensação que tenho é que a muitos falta esse conhecimento e capacidade de discernir o que os partidos escondem para além do que apresentam na montra. Votam por impulso, por zanga, protesto, pelo massacre dos media e, imagine-se, "à conta de Deus", não por uma capacidade acrescentada consequência da interligação de múltiplos factores e indicadores. E já era tempo do povo demonstrar segurança e adultez nesta e em muitas outras matérias de cidadania. De ter um afinado sentido reflexivo e crítico.
É um problema grave e que se arrasta desde os anos 70. Continuam a persistir resquícios daqueles malvados 48 anos de ditadura. Eles estão aí. E a Escola, neste aspecto, não deu a quem por lá passou, essa capacidade, não partidária, sublinho, de possibilitar a formação global para o exercício da democracia. Há um enorme défice neste espaço, porque o pensamento existente está mais no cumprimento dos extensos programas das disciplinas, com a avaliação e com os exames, e não com a realidade da vida. A Escola ainda não tomou consciência que quando se vota, estamos globalmente a decidir sobre a economia, as finanças, a educação, a saúde, as questões sociais, a cultura, a agricultura, enfim, sobre todos os sectores, áreas e domínios da governação. O voto não deve estar na cor, mas no projecto de sociedade. Referi a Escola, mas dito de uma forma mais incisiva e abrangente, todo o sistema educativo relegou para plano secundário a aprendizagem do que é isto da política e dos actos eleitorais.
Passei pela escola 40 anos. E continuo a acompanhá-la. Sempre senti que, genericamente, entre os professores, havia medo em provocar determinadas abordagens. A opção partidária de cada um também ali estava percentualmente representada. Medo de serem conotados com este ou aquele partido político, eventualmente, com perseguições e inquéritos disciplinares. Infelizmente é assim, sublinho, quando a cultura da escola devia assumir este e outros temas de uma forma natural, transversalmente aberta e sem rótulos. Senti que havia receio por algum encarregado de educação denunciar a aprendizagem para a vida real. Portanto, há uma iliteracia política, conjugada ao longo de anos, que já não dá para esconder e que nem as tais "aulas" de Cidadania e Desenvolvimento conseguiram disfarçar. Aliás, a vida real demonstra que tais "aulas" foram e são um logro. Curiosamente, ou talvez não, no plano conceptual a intenção programática está lá: "Capacitar para múltiplas literacias que permitam analisar e questionar criticamente a realidade. Avaliar e seleccionar a informação. Formular hipóteses e tomar decisões fundamentadas". Tudo no quadro do "pensamento reflexivo, crítico e criativo". No papel sim, as preocupações estão envoltas em celofane. O problema é a cultura da escola, talvez melhor dizendo, a cultura da sociedade. E se esta está doente a escola não pode estar melhor.
Ainda ontem, o Parlamento da Madeira, acolheu mais uma sessão do "Parlamento dos Jovens", sob o tema "Viver Abril na Educação - Caminhos para uma escola plural e participativa". Pergunto: há quantos anos se realizam iniciativas semelhantes? E quais os resultados? Mais: Abril na Educação? escola plural e participativa? Sejamos claros: cumprir um programa muito embelezado, ao jeito do toca e foge é uma coisa; outra, é escaqueirar mentes formatadas e reconstruí-las em liberdade de pensamento.
E a liberdade de pensamento NÃO se avalia. É pessoal. "Os Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde, Sexualidade, Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária, Risco, Empreendedorismo, Mundo do Trabalho, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal e Voluntariado", repito, NÃO se avalia, antes investiga-se e debate-se profundamente em todos os momentos da vida escolar, de uma forma transversal que gere uma determinada cultura. Depois, livremente, cada um deve seguir o seu caminho e fará as opções que entender. Se assim não acontecer, uma parte da população continuará a votar "à conta de Deus e que seja o que Deus quiser".
Nos 50 anos de Abril não deixa de ser muito preocupante a sociedade que estamos a construir.
Ilustração: Google Imagens.