sexta-feira, 29 de abril de 2022

Compreender a Escola da Ponte V


Por
Rubem Alves
(1933/2014)

Imagino que você, que procura minhas crônicas aos domingos, deve estar cansado. Pois este é o quinto domingo em que falo sobre a mesma coisa. Pessoas que falam sempre sobre as mesmas coisas são chatas. Além do que essa insistência em uma coisa só é contrária ao estilo de crônicas. Crônicas, para serem gostosas, devem refletir a imensa variedade da vida. Um cronista é um fotógrafo. Ele fotografa com palavras. Crônicas são dádivas aos olhos. Ele deseja que os leitores vejam a mesma coisa que ele viu. Se normalmente não sou chato, deve haver alguma razão para essa insistência em fotografar uma mesma coisa. Quem fotografa um mesmo objeto repetidas vezes deve estar apaixonado. Comporta-se como os fotógrafos de modelos, clic, clic, clic, clic, clic...: dezenas, centenas de fotos, cada uma numa pose diferente! 



Um dos meus pintores favoritos é Monet. Pois ele fez essa coisa insólita: pintou um monte de feno muitas vezes. E o curioso é que ele nem mudou de lugar, não procurou ângulos diferentes. Ficou assentado no seu banquinho, cavalete no mesmo lugar, e foi pintando, pintando. Porque, na verdade, o que ele estava pintando não era o monte de feno, uma coisa banal, de gosto bovino. O que ele estava pintando era a luz. Ele só usou o monte de feno como espelho onde a luz aparecia refletida, não como uma coisa fixa, mas como uma coisa móvel. A série de telas do monte de feno bem que poderia chamar-se "Strip tease da luz": devagar, bem devagar, ela vai se desnudando... Pois estou fazendo com as minhas crônicas o que Monet fez: ele, diante do monte de feno; eu, diante de uma pequena escola por que me apaixonei -- pois ela é a escola com que sempre sonhei sem ter sido capaz de desenhar. 

Nunca fui professor primário. Fui professor universitário. O Vinícius, descrevendo a bicharada saindo da Arca de Noé, disse: "Os fortes não na frente tendo a cabeça erguida e os fracos, humildemente, vão atrás, como na vida..." Pois é exatamente assim que acontece na Arca de Noé dos professores: os professores universitários vão na frente tendo a cabeça erguida, e os primários, humildemente, vão atrás, como na vida... Professor universitário é doutor, cientista, pesquisador, publica em revistas internacionais artigos em inglês sobre coisas complicadas que ninguém mais sabe e são procurados como assessores de governo e de empresas. Professor primário é professor de 3ª classe, não precisa nem ter mestrado nem falar inglês, dá aulas para crianças sobre coisas corriqueiras que todo mundo sabe. Crianças -- essas coisinhas insignificantes, que ainda não são... Haverá atividade mais obscura?

Professores universitários gostam das luzes do palco. Professores primários vivem na sombra... Quando entrei na universidade para ser professor senti-me muito importante. Com o passar do tempo fui sendo invadido por uma grande desilusão -- tédio --, um cansaço diante da farsa. Partilhei da desilusão dos alunos que se sentiram muito importantes quando passaram no vestibular e até ficaram felizes quando os veteranos lhes rasparam o cabelo. Cabelo raspado é distintivo: "Passei! Passei!" Não levou muito tempo para que descobrissem que a universidade nada tinha que ver com os seus sonhos. E essa é a razão por que fazem tanta festa e foguetório quando tiram o diploma. Fim do sofrimento sem sentido. A velhice me abriu os olhos. Quando se chega no topo, quando não há mais degraus para subir, a gente começa a ver com uma clareza que não tinha antes. "Tenho a lucidez de quem está para morrer", dizia Fernando Pessoa na "Tabacaria". Fiquei lúcido! E o que vi com clareza foi o mesmo que viu Joseph Knecht, o personagem central do livro de Hesse. O jogo das contas de vidro: depois de chegar no topo, percebeu o equívoco. E surgiu, então, o seu grande desejo: ensinar uma criança, uma única criança que ainda não tivesse sido deformada (essa é a palavra usada por Hesse) pela escola. 

Também eu: quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É bom estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregado do programa de educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores, os bichos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: "Com os adolescentes é deferente. Eles não têm os olhos para as coisas. Eles só têm olhos para eles mesmos..." Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas: Aprender é chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça de não passar no vestibular. Por isso quero ensinar as crianças. Elas ainda têm olhos encantados. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxo, uma concha de caramujo, o vôo dos urubus, o zunir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra. Dessas coisas, invisíveis aos eruditos olhos dos professores universitários (eles não podem ver, coitados; a especialização tornou-os cegos como toupeiras, só vêem dentro do espaço escuro de suas rocas -- e como vêem bem!), nasce o espanto diante da vida; desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a fuçação (essa palavra não está no Aurélio) chamada pesquisa; dessa fuçação, o conhecimento; e do conhecimento, a alegria! Pensamos que as coisas a serem aprendidas são aquelas que constam dos programas. Essa é a razão por que os professores devem preparar seus planos de aula. Mas as coisas mais importantes não são ensinadas por meio de aulas bem preparadas. Elas são ensinadas inconscientemente. 

Bom seria que os educadores lessem ruminativamente (também não se encontra no Aurélio) o Roland Barthes. Ele descreveu o seu ideal de aula como sendo a criação de um espaço -- isso mesmo! Um espaço! -- parecido com aquele que existe quando uma criança brinca ao redor da mãe. A criança pega um botão leva para a mãe. A mãe ri, e faz um corrupio (você sabe o que é um corrupio?). Pega um pedaço de barbante. Leva para a mãe. A mãe ri e lhe ensinar a fazer nós. Ele conclui que o importante não é nem o botão nem o barbante, mas esse espaço lúdico que se ensina sem que se fale sobre ele. Na Escola da Ponte o mais importante que se ensina é esse espaço. Nas nossas escolas: salas separadas -- o que se ensina é que a vida é cheia de espaços estanques; turmas separadas e hierarquizadas -- o que se ensina é que a vida é feita de grupos sociais separados, uns em cima dos outros. Conseqüência prática: a competição entre as turmas, competição que chega à violência (os trotes!). Saberes ministrados em tempos definidos, um após o outro: o que se ensina é que os saberes são compartimentos estanques (e depois reclamam que os alunos não conseguem integrar o conhecimento. Apelam então para a "transdisciplinaridade", para corrigir o estrago feito. O que me faz lembrar um filme de O Gordo e o Magro. Ainda falo sobre o tal filme, Queijo Suíço...). Ah! Uma vez cometido o erro arquitetônico, o espírito da escola já está determinado! Mas nem arquitetos nem técnicos da educação sabem disso...

Escola da Ponte: um único espaço, partilhado por todos, sem separação por turmas, sem campainhas anunciando o fim de uma disciplina e o início da outra. A lição social: todos partilhamos de um mesmo mundo. Pequenos e grandes são companheiros numa mesma aventura. Todos se ajudam. Não há competição. Há cooperação. Ao ritmo da vida: os saberes da vida não seguem programas. É preciso ouvir os "miúdos", para saber o que eles sentem e pensam. É preciso ouvir os "graúdos", para saber o que eles sentem e pensam. São as crianças que estabelecem as regras de convivência: a necessidade do silêncio, do trabalho não perturbado, de se ouvir música enquanto trabalham. São as crianças que estabelecem os mecanismos para lidar com aqueles que se recusam a obedecer às regras. Pois o espaço da escola tem de ser como o espaço do jogo: o jogo, para ser divertido e fazer sentido, tem de ter regras. Já imaginaram um jogo de vôlei em que cada jogador pode fazer o que quiser? A vida social depende de que cada um abra mão da sua vontade, naquilo em que ela se choca com a vontade coletiva. E assim vão as crianças aprendendo as regras da convivência democrática, sem que elas constem de um programa... Minha cabeça está coçando com o sonho de fazer uma escola parecida (...)" 

Nota
Texto transcrito do original.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Compreender a Escola da Ponte IV


Por 
Rubem Alves

Na "Escola da Ponte" a aprendizagem acontece a partir de pratos que vão ser preparados e comidos. Por isso as crianças aprendem e têm prazer em aprender. Mas, e o programa? É cumprido? Pergunta tola. É o mesmo que perguntar se a jovem casadoira aprendeu todas as receitas do "Livro de Dona Benta"... É claro que o "Livro de Dona Benta" não é para ser aprendido. Programas não podem ser aprendidos... São logo escorridos.



Imaginar não faz mal. Pois imagine que você é uma mãe das antigas. E sua filha vai se casar. Mãe responsável que você é, você a chama e lhe diz: "Minha filha, você vai se casar. Desejo que seu casamento seja durável. Casamento durável depende do amor. E você nada sabe sobre as artimanhas do amor. O que você está sentindo agora não é amor; é paixão. Paixão é fogo de palha. Acaba logo. Casamento não se sustenta com fogo que acaba logo. Vou lhe ensinar o segredo do amor permanente, o fogo que não se apaga nunca. Você deve aprender o segredo do fogo que faz o coração do seu marido arder, no dia a dia. Pois bem, saiba que o caminho para o coração de um homem passa pelo estômago. O casamento não se sustenta com o fogo da cama. Ele se sustenta com o fogo da mesa. Vou lhe dar o presente mais precioso, o "Livro de Dona Benta", centenas de receitas. Mas não só isso, vou lhe ensinar todas as receitas desse livro maravilhoso." Ditas essas palavras você, mãe, dá início a um programa de culinária, uma receita depois da outra, na ordem certa. Cada dia sua filha deve aprender uma receita e, uma vez por mês, você faz uma avaliação da aprendizagem. Ela deve ser capaz de repetir as receitas. É claro que isso que eu disse é uma tonteria. Ninguém ensina a cozinhar assim. Não é possível saber todas as receitas. Por que ter de saber todas as receitas, se elas estão escritas no livro de receitas? A gente aprende uma receita quando fica com vontade de experimentar aquele prato nunca dantes experimentado. 

O ato de aprender acontece em resposta a um desejo. "Quero fazer, amanhã, uma "vaca atolada". Como é que se faz uma "vaca atolada", se nunca fiz? É só procurar no livro de receitas, sob o título "vaca atolada". A gente lê e aprende porque vai fazer "vaca atolada"... Pois os programas de aprendizagem a que nossas crianças e adolescentes têm de se submeter nas escolas são iguais à aprendizagem de receitas que não vão ser feitas. Receitas aprendidas sem que se vá fazer o prato são logo esquecidas. A memória é um escorredor de macarrão. O escorredor de macarrão existe para deixar passar o que não vai ser usado: passa a água, fica o macarrão. Essa é a razão por que os estudantes esquecem logo o que são forçados a estudar. 


Não por falta de memória. Mas porque sua memória funciona bem: não sei para que serve; deixo passar... Na "Escola da Ponte" a aprendizagem acontece a partir de pratos que vão ser preparados e comidos. Por isso as crianças aprendem e têm prazer em aprender. Mas, e o programa? É cumprido? Pergunta tola. É o mesmo que perguntar se a jovem casadoira aprendeu todas as receitas do "Livro de Dona Benta"... É claro que o "Livro de Dona Benta" não é para ser aprendido. Programas não podem ser aprendidos... São logo escorridos. 

Quando visitei a "Escola da Ponte" o tema quente era a descoberta do Brasil e tudo o mais que a cercava. As crianças estavam fascinadas com os feitos dos navegadores seus antepassados nessa aventura, mais ousada que a viagem dos astronautas à lua. Imagine agora que algumas crianças tenham ficado curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os descobrimentos possíveis, as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las. Um diretor de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz. "O tema "caravelas" não consta de nenhum programa nem aqui e nem em nenhum outro lugar do mundo", ele diria. E concluiria: "Não constando de nenhum programa não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não vai cair no vestibular." Acontece que uma caravela é um objeto no qual estão entrelaçadas as mais variadas ciências. As caravelas são um laboratório de física. Parece que a caravela brasileira, construída para comemorar o descobrimento, teve de retornar ao ancoradouro, por perigo de emborcar. Um famoso vaso de guerra sueco, o Wasa, se não me engano do século XVI, virou e afundou depois de navegar por não mais que 400 metros. Retirado do fundo do mar há cerca de 25 anos, ele pode ser visto hoje num museu de Estocolmo. O que havia de errado com o Wasa e a caravela brasileira? O que havia de errado tem, em física, o nome de "centro de gravidade". O "centro de gravidade" estava no lugar errado. O tal centro de gravidade é o que explica por que os bonequinhos chamados João Teimoso" não caem nunca! A regra é: para não emborcar, o centro de gravidade do navio deve estar abaixo da linha do mar. Essa é a razão por que os navios, freqüentemente, têm necessidade de um lastro - um peso que faz com que o centro de gravidade se desloque para mais baixo. "Se o centro de gravidade estiver fora do lugar, o navio vira e afunda. Os estudantes aprendem, em física, como parte do programa abstrato que têm de aprender, uma regra chamada do "paralelogramo" - regra de composição de forças. Duas forças incidindo sobre um ponto, uma delas F1, a outra F2, cada uma numa direção diferente. Para onde se movimenta o objeto sobre o qual incidem? Nem na direção de F1, nem na direção de F2. Diz essa regra que o objeto vai se movimentar numa direção que se determina pela construção de um "paralelogramo". É o que se chama de "resultante". Os alunos aprendem a resolver o problema no papel mas não sabem para que ele serve na vida. E o aprendido escorre pelos furos do "escorredor de macarrão"... Pois é essa regra que explica, teoricamente, o mistério de um barco que navega numa direção contrária à do vento. Se o barco estivesse à mercê do vento ele só navegaria na direção em que o vento sopra, situação essa que tornaria a navegação impossível. Quem se aventuraria a navegar num barco que só navega na direção do vento e não na direção que se deseja? Mas os navegadores descobriram que, com o auxílio de uma outra força, de direção distinta da direção do vento, é possível fazer com que o barco navegue na direção que se deseja. E é essa a função do leme. O leme, pela resistência da água, cria uma outra força que, colocada no ângulo adequado, produz a direção de navegação desejada. Os alunos aprenderiam melhor se, ao invés de gráficos geométricos, eles fosse instruídos na arte da navegação. 

Da física passamos à história, a influência de Veneza, dominadora do Mediterrâneo com seus barcos, sobre a tecnologia lusitana de construção de caravelas. Da história para a astronomia, a ciência da orientação pelas estrelas. O astrolábio. A bússola. Daí, para esses assombros simbólicos chamados mapas - que só fazem sentido para o navegador se ele conhecer a arte de se orientar, a direção do norte, mesmo quando nada pode ser visto, a não ser o oceano que o cerca por todos os lados. ( Olhando para a lua, de noite, você é capaz de dizer a direção do sol?). Dos mapas para a literatura, a "Carta de Pero Vaz de Caminha", a poesia de Camões, a poesia de Fernando Pessoa: "Ó mar salgado, quando do seu sal são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem de passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu." 

Aceitemos um fato simples: um programa cumprido, dado pelo professor do princípio ao fim, é só cumprido formalmente. Programa cumprido não é programa aprendido "mesmo que os alunos tenham passado nos exames. Os exames são feitos enquanto a água ainda não acabou de se escoar pelo escorredor de macarrão. Esse é o destino de toda ciência que não é aprendida a partir da experiência: o esquecimento. Quanto à ciência que se aprende a partir da vida, ela não é esquecida nunca. A vida é o único programa que merece ser seguido.

domingo, 24 de abril de 2022

Da falta estrutural de professores: avisos, culpas e soluções


Por
Paulo Prudêncio 
24 de Abril de 2022
https://www.publico.pt/2022/04/24/opiniao/opiniao/falta-estrutural-professores-avisos-culpas-solucoes-2003526


A escola é, há década e meia, um laboratório de exclusão dos professores. É, portanto, crucial que se cuide dos que existem.



Sucedem-se as análises sobre a tragédia anunciada da falta de professores e discutem-se os remedeios. Mas debata-se o estrutural para que se aprenda com os erros. Aliás, se o essencial não mudar, e se a OCDE concluiu que "os professores portugueses são, na Europa, os mais desgastados, os que mais preenchem burocracia inútil e que são vítimas de uma organização de trabalho que os adoece”, rapidamente os novos professores entrarão em exaustão e se arrependerão da escolha profissional.

E ainda como ponto prévio, é finalmente inquestionável que os jovens rejeitam o ensino como profissão. Mas agravou-se, e contrariou expectativas, porque a robotização do ensino supervisionada por super-humanos (em “De volta ao futuro da Educação - quatro cenários da OCDE") desacelerou com o imperativo, também evidenciado na pandemia, de recolocar o humano comum no centro das preocupações.

Num resumo sistémico, comece-se pela sonoridade dos avisos; e como a não audição persiste, convoque-se Milan Kundera: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.” E faça-se o que tanto se exigia aos professores: prestação de contas.

O primeiro grito ecoou na histórica manifestação de 8 de Março de 2008 contra a asfixia democrática e a precarização dos professores, numa sociedade convencida pelo discurso anti-professor que incluía uma suposta instrumentalização. Mas, em 16 de Abril de 2008, a plataforma de sindicatos assinou um entendimento fatal com o Governo para a testagem das políticas de divisão da carreira e de avaliação. Nessa suspensão do tempo, alterou-se a gestão das escolas – decreto-lei 75/2008, de 22 de Abril – e consolidou-se a tragédia. Quebrou-se a solidariedade em ambiente escolar e sobrepôs-se obsessivamente o individualismo e o utilitarismo ao cooperativo e ao gregário. Percebeu-se, desde logo, que a falta estrutural de professores seria uma questão de tempo.

Apesar de tudo, ainda se fez, em 17 de Junho de 2013, uma dificílima greve aos exames do secundário. Impediu-se que o maior despedimento colectivo da história – 20 mil professores – não duplicasse, mas não se travou o aumento de alunos por turma, a prova de acesso à profissão, a bolsa de contratação pelas escolas e mais agrupamentos. E recorde-se que, enquanto se noticiava um excesso de procura nos professores, precarizava-se a eito. A comunicação social e os governantes, por desconhecimento ou omissão, insistiam, a cada concurso, “nos professores a mais" sem a devida explicação: por exemplo, cada candidato, até do quadro, podia apresentar candidaturas a várias disciplinas; ou seja, 40 mil não colocações podiam ser apenas 10 mil pessoas.

Sabemos que as causas da falta de professores incluem as "novas políticas de gestão pública” iniciadas nos EUA e RU (anos 80 do século XX) e lançadas na Europa dez anos depois. Foram aplicadas entre nós na primeira década do milénio e mantêm-se.

Mas houve um contributo de quem não lecciona no ensino não superior; até de professores. Aliás, um técnico da Portugal Telecom, em 2006, indignou-se com o discurso “anti-professor e de alergia à escola" da generalidade dos professores dos serviços centrais do ME. Noutro exemplo que convém ter em conta, assistiu-se a uma tensão entre o discurso de um dirigente escolar que defendeu (no PÚBLICO de 16 de Abril de 2022) a sobrecarga dos horários com mais turmas, e das turmas com mais alunos, como solução para a falta de professores e as veementes discordâncias sugerindo a atribuição de uma ou duas turmas aos dirigentes que não leccionam (serão dois a três milhares).

Por outro lado, um estudo (2022) da Fundação Belmiro de Azevedo concluiu da “falta de experiência na área de cerca de um terço dos formadores dos professores do básico e secundário”, o que explicará a infernal tecnocracia didáctica que terá contribuído para a perda de atractividade dessa formação e para o desvario na formação contínua.

Discuta-se, então, soluções de curto e médio prazos que oxigenem a atmosfera:

Eliminar as cotas e as vagas na avaliação e abrir um concurso extraordinário;
Considerar sempre como horários completos as colocações com 14 ou mais horas e o tempo de serviço para a segurança social dos professores contratados;
As habilitações, a profissionalização, o acesso aos quadros e a estrutura da carreira devem recuar para algo semelhante ao que acontecia há duas décadas;
Incluir os horários com seis ou mais horas nos concursos por mobilidade interna, regressar à recuperação do tempo de serviço e eliminar a componente não lectiva a partir dos 55 anos de idade;
Concretizar, até 2030 e como avaliação da municipalização, 18 alunos por turma no pré-escolar e no primeiro ciclo, 20 nos 2.º e 3.º ciclos e 22 no secundário;
Recuperar, dos seguintes modos, a gestão democrática de proximidade a pensar também na descentralização:

a. um conselho geral por concelho, em vez de um por agrupamento ou escola, e uma agência municipal, em rede com as escolas, para os assuntos administrativos;
b. um conselho directivo (não apenas executivo e eleito como o que existiu até 2009) e um pedagógico em cada escola com 2.º e 3.º ciclos e ensino secundário;
c. um delegado escolar concelhio, sediado no município, eleito pelas escolas do pré-escolar e do 1.º ciclo, um coordenador eleito em cada uma e um conselho pedagógico concelhio destes níveis de ensino.

Por fim, o primeiro-ministro declarou que o que conta é a redução de 13% para 5,6% no grupo dos 18 aos 24 anos inscrito no IEFP. É óbvio que é fundamental reduzir o abandono escolar, mas não é o único indicador que importa. Aliás, o ministro da Educação declarou (5 de Abril de 2022) que "as escolas devem ser laboratórios de democracia e oficinas de paz"; acrescente-se um para todos: alunos e profissionais da educação. É que, e como se comprova, a escola é, há década e meia, um laboratório de exclusão dos professores. É, portanto, crucial que se cuide dos que existem, também para que quem testa a possibilidade não se confronte com um clima de desconfiança, insanidade e arbitrariedade, e entre não só em regime de fuga como desaconselhe o exercício.

sábado, 16 de abril de 2022

Compreender a Escola da Ponte III


Por 
Rubem Alves

Contei sobre a escola com sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir. Mas existia, em Portugal... Quando a vi, fiquei alegre e repeti, para ela, o que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: "Quando te vi, amei-te já muito antes..." 



Gente de boa memória jamais entenderá aquela escola. Para entender é preciso esquecer quase tudo o que sabemos. A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito como são. Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do jeito como sempre foram. 

Como são e têm sido as escolas? Que nos diz a memória? A imagem: uma casa, várias salas, crianças separadas em grupos chamados "turmas". Nas salas os professores ensinam saberes. Toca uma campainha. Terminou o tempo da aula. Os professores saem. Outros entram. Começa uma nova aula. Novos saberes são ensinados. O que é que os professores estão fazendo? Estão cumprindo um "programa". "Programa" é um cardápio de saberes organizados em seqüência lógica, estabelecido por uma autoridade superior invisível, que nunca está com as crianças. Os saberes dos cardápio "programa" não são "respostas" às perguntas que as crianças fazem. Por isso as crianças não entendem por que têm de aprender o que lhes está sendo ensinado. Nunca vi uma criança questionar a aprendizagem do falar. Uma criancinha de 8 meses já está doidinha para aprender a falar. Ele vê os grandes falando entre si, falando com elas, sentem que falar é uma coisa divertida e útil, e logo começam a ensaiar a fala, por conta própria. Fazem de conta que estão falando. Balbuciam. Brincam com os sons. E quando conseguem falar a primeira palavra, sentem a alegria dos que a cercam. E vão aprendendo, sem que ninguém lhes diga que elas têm de aprender a falar e sem que o misterioso processo de ensino e aprendizagem da fala esteja submetido a um programa estabelecido por autoridades invisíveis. Elas aprendem a falar porque o falar é parte da vida. 

Nunca ninguém me disse que eu deveria aprender a descascar laranjas. Aprendi porque via o meu pai descascando laranjas com uma mestria ímpar, sem arrebentar a casca e sem ferir a laranja, e eu queria fazer aquilo que ele fazia. Aprendi sem que me fosse ensinado. A arte de descascar laranjas não se encontra em programas de escola. O corpo tem uma precisa filosofia de aprendizagem: ele aprende os saberes que o ajudam a resolver os problemas com que está se defrontando. Os programas são uma violência que se faz com o jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as crianças e adolescentes se revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a aprender. Ainda ontem uma amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe dizia: "Mãe, por que tenho de ir à escola? As coisas que tenho de aprender não servem para nada. Que me adianta saber o que significa "oxítona"? Prá que serve esta palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os programas. Vamos começar do começo.

Imagine o homem primitivo, exposto à chuva, ao frio, ao vento, ao sol. O corpo sofre. O sofrimento faz pensar: "Preciso de abrigo", ele diz. Aí, forçada pelo sofrimento, a inteligência entra em ação. Pensa para deixar de sofrer. Pensando, conclui: "Uma caverna seria um bom abrigo contra a chuva, o frio, o vento, o sol..." Instruídos pela inteligência os homens procuram uma caverna e passam a morar nela. Resolvido o sofrimento, a inteligência volta a dormir. Mas aí, forçados ou pela fome ou por um grupo armado que lhes toma a caverna, eles são forçados a se mudar para uma planície onde não há cavernas. O corpo volta a sofrer. O sofrimento acorda a inteligência e faz com que ela trabalhe de novo. A solução original não serve mais: não há cavernas. A inteligência pensa e conclui: "É preciso construir uma coisa que faça às vezes de caverna. Essa coisa tem de ter um teto, para proteger do sol e da chuva. Tem de ter paredes, para proteger do vento e do frio. Com que se pode fazer um teto?" A inteligência se põe então a procurar um material que sirva para fazer o teto. Folhas de palmeira? Capim? Pedaços de pau? Mas o teto não flutua no ar. Tem de haver algo que o sustente. Paus fincados? Sim. Mas para fincar um pau é preciso descobrir uma ferramenta para cortar o pau. Depois, uma ferramenta para fazer o buraco na terra. E assim vai a inteligência, inventando ferramentas e técnicas, à medida em que o corpo se defronta com necessidades práticas. A inteligência, entre os esquimós, jamais pensaria uma casa de pau-a-pique. Entre eles não há nem madeira e nem barro. Produziu o iglu. E a inteligência do homem que vive na floresta jamais pensaria um iglu - porque nas florestas não há gelo. Produziu a casa de pau-a-pique. 

A inteligência é essencialmente prática. Está ao serviço da vida. Um exercício fascinante a se fazer com as crianças seria provocá-las para que elas imaginassem o nascimento dos vários objetos que existem numa casa. Todos os objetos, os mais humildes, têm uma história para contar. Que necessidade fez com que se inventassem panelas, facas, vassouras, o fósforo, a lâmpada, as garrafas, o fio dentário?... Quais poderiam ter sido os passos da inteligência, no processo de inventá-los? Quem é capaz de, na fantasia, reconstruir a história da invenção desses objetos, fica mais inteligente. Depois de inventados, eles não precisam ser inventados de novo. Quem inventou passa a possuir a receita para a sua fabricação. E é assim que as gerações mais velhas passam para seus filhos as receitas de técnicas que tornam possível a sobrevivência. Esse é o seu mais valioso testamento: um saber que torna possível viver. As gerações mais novas, assim, são poupadas do trabalho de inventar tudo de novo. E os jovens aprendem com alegria as lições dos mais velhos: porque suas lições os fazem participantes do processo de vida que une a todos. A aprendizagem da linguagem se dá de forma tão eficaz porque a linguagem torna a criança um membro do grupo: ela participa da conversa, fala e os outros ouvem, ri das coisas engraçadas que se dizem. O mesmo pode ser dito da aprendizagem de técnicas: o indiozinho que aprende a fabricar e a usar o arco e a flecha, a construir canoas e a pescar, a andar sem se perder na floresta, a construir ocas, está se tornando num membro do seu grupo, reconhecido por suas habilidades e por sua contribuição à sobrevivência da tribo. O que ele aprende e sabe, faz sentido. Ele sabe o uso dos seus saberes. (A menininha não sabia o uso da palavra "oxítona". Nem eu. Sei o que ela quer dizer. Não sei para que serve. Quando eu escrevo nunca penso em "oxítona". Ninguém que fale a língua, por ignorar o sentido de "oxítona", vai falar "cáfe", ao invés de café, ou "chúle", ao invés de "chulé"... A palavra "oxítona" não me ensina a falar melhor. É, portanto, inútil....) Disse, numa outra crônica, que quero escola retrógrada. Retrógrado quer dizer "que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos "programas" científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!), mas o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios. Mas, repentinamente, desfaz-se o encanto da perda da memória e nos lembramos da pergunta: "Mas, e o programa? Ele é cumprido?" Depois eu respondo.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Compreender a Escola da Ponte II


Por
Rubem Alves *
(1933/2014)


Como é possível uma escola assim, sem turmas, sem professores e aulas de português, geografia, ciências, história, em lugares e horas determinadas, de acordo com um programa, linha de montagem, com testes e conceitos ao final? Será que as crianças aprendem? Respondo fazendo uma pergunta: qual é a coisa mais difícil de ser ensinada, mais difícil de ser aprendida, quem ensina não sabe que está ensinando, quem aprende não sabe que está aprendendo e, ao final, a aprendizagem acontece sempre? É a linguagem. Não existe nada, absolutamente nada que se compare à linguagem em complexidade.



"A menina que me guiava apontou para um computador num canto da sala imensa: "É o computador do "Acho bom" e do "Acho mal". Quando nos sentimos contentes com algo, escrevemos no "Acho bom". Quando, ao contrário, nos sentimos infelizes, escrevemos no "Acho mal". Examinei o "Acho mal". A curiosidade é sempre espicaçada por coisas ruins. "Acho mal que o Tomás dê estalos na cara da Francisca". Pensei: "Ah! Tomás! Tu estás perdido! Todos já sabem o que fazes! Se continuas, certamente terás de comparecer perante o Tribunal para dares conta dos teus atos." E, no "Acho bom" estão os louvores aos gestos e coisas boas. Treinamento dos olhos e da fala. O normal é que os olhos vejam mais as coisas ruins e que a boca tenha mais prazer em falar sobre elas. Mas lá, na Escola da Ponte, as crianças são convidadas a ver o bom, o bonito, o generoso, e a falar sobre eles. Tribunal... A menina me havia falado sobre problemas de disciplina. Para tais situações as crianças estabeleceram um tribunal. Aquele que desrespeita as regras de convivência por elas mesmas estabelecidas têm de comparecer perante esse tribunal. Sua primeira pena é pensar durante três dias sobre os seus atos. Depois ele retorna, para dizer o que pensou. Minha guia não me esclareceu sobre o que acontece com os impenitentes reincidentes. Mas o culpado fui eu: não perguntei. 

Aí fomos para o refeitório. Havia um grupo de alunos e professoras reunido à volta de uma mesa. "Estão a preparar a assembleia de hoje. Temos uma assembleia que se reúne semanalmente para tratar dos problemas da escola e para sugerir soluções. Aquele é o presidente", ela me disse, apontando para um menino. Ao fim do dia reuniu-se a assembleia. Fui convidado a falar alguma coisa. Havia levado comigo um carrinho, feito com uma lata de sardinha. Já escrevi sobre ele. Quando o vi pela primeira vez, numa exposição de brinquedos na Bahia, fiquei tão impressionado que a dona da exposição m'o ( Meu Deus! Fiquei infectado pela maneira portuguesa erudita de falar! Para quem não sabe: m'o = me + o) deu como presente. Conversei com as crianças sobre o carrinho. O que me interessava não era o carrinho. Era o processo de sua produção. Brinquedo construído por um menino pobre que sonhava com um carrinho e não tinha dinheiro para comprar. Se fosse rico, era só pedir para o pai - ele compraria um carrinho eletrônico movido ao aperto de um botão, o que desenvolveria o dedo e atrofiaria a inteligência. Dinheiro demais é emburrecedor. Perguntei uma pergunta tola: "Em que loja se compra um carrinho assim?" Esperava a resposta óbvia: " Esse carrinho não se compra em lojas..."Uma menina levantou o dedo. O que ela disse me assombrou: "Esse carrinho se compra na loja das mãos". "Loja das mãos": ela me respondeu com poesia. Seguiu-se um período de perguntas. Pasmem: em nenhum momento qualquer aluno interrompeu o outro. Isso é lei que as crianças estabeleceram. Está escrito na lista de "Direitos e Deveres". Pensei que o senador Antônio Carlos Magalhães e o deputado Jader Barbalho deveriam fazer um estágio na Escola da Ponte. Quem desejava falar levantava na mão e aguardava a indicação do presidente. Às cinco horas o presidente falou: "Já está na hora de terminar. Vou dar a palavra para mais um colega e terminaremos." E assim foi. Ao final, vieram conversar comigo. Uma menina me perguntou: "Tens mirk?" Nem sei se é assim que se escreve. O fato é que eu nunca havia ouvido essa palavra. Ela me explicou: "Aquele programa de computador que permite que se converse. Quero conversar contigo..." Não. Eu não tinha mirk... Um menininho chegou à minha frente segurando um chaveiro: uma correntinha com um pequeno sino na ponta. Ficou olhando para mim. Perguntei: "E isso?" "Um presente para ti", respondeu. Não me esquecerei do Sérgio...Sei que vocês devem estar incrédulos. Como é possível uma escola assim, sem turmas, sem professores e aulas de português, geografia, ciências, história, em lugares e horas determinadas, de acordo com um programa, linha de montagem, com testes e conceitos ao final? Será que as crianças aprendem? Respondo fazendo uma pergunta: qual é a coisa mais difícil de ser ensinada, mais difícil de ser aprendida, quem ensina não sabe que está ensinando, quem aprende não sabe que está aprendendo e, ao final, a aprendizagem acontece sempre? É a linguagem. Não existe nada, absolutamente nada que se compare à linguagem em complexidade. No entanto, sem que haja qualquer ensino formal, sem que os que ensinam a falar - pai, mãe, tio, avô, irmãos - tenham tido aulas teóricas sobre a formação da linguagem, as crianças aprendem a falar. Imaginem que o ensino da linguagem se desse em escolas, segundo os moldes de linha de montagem que conhecemos: aulas de substantivos, aulas de adjetivos, aulas de verbos, aulas de sintaxe, aulas de pronúncia. O que aconteceria? As crianças não aprenderiam a falar. Por que é que a aprendizagem da linguagem é tão perfeita, sendo tão informal e tão sem ordem certa? Porque ela vai acontecendo seguindo a experiência vital da criança: o falar vai colado à experiência que está acontecendo no presente. Somente aquilo que é vital é aprendido. Por que é que, a despeito de toda pedagogia, as crianças têm dificuldades em aprender nas escolas? Porque nas escolas o ensinado não vai colado à vida. Isso explica o desinteresse dos alunos pela escola. Alguns me contestarão dizendo: "Mas o meu filho adora a escola!" Pergunto: Ele adora a escola por aquilo que está aprendendo ou por outras razões? Confesso não saber de um aluno que tenha prazer em conversar com os pais sobre aquilo que está aprendendo na escola. Explica também a indisciplina. 

Por que haveria uma criança de disciplinar-se, se aquilo que ela tem de aprender não é aquilo que o seu corpo deseja saber? 


E explica também a preguiça que sentem as crianças ao se defrontar com as lições de casa. Roland Barthes tem um delicioso ensaio sobre a preguiça. Segundo ele há dois tipos de preguiça. Um deles, abençoado, é a preguiça de quem está deitado na rede de barriga cheia. Não quer fazer nada porque na rede está muito bom. O outro tipo é a preguiça infeliz, ligado inseparavelmente à escola. O aluno se arrasta sobre a lição de casa. Não quer fazê-la. A vida o está chamando numa outra direção mais alegre. Mas ele não tem alternativas. É obrigado a fazer a lição. Por isso ele se arrasta em sofrimento. O conhecimento é uma árvore que cresce da vida. Sei que há escolas que têm boas intenções, e que se esforçam para que isso aconteça. Mas as suas boas intenções são abortadas porque são obrigadas a cumprir o programa. Programas são entidades abstratas, prontas, fixas, com uma ordem certa. Ignoram a experiência que a criança está vivendo. Aí tenta-se, inutilmente, produzir vida a partir dos programas. Mas não é possível, a partir da mesa de anatomia, fazer viver o cadáver. O que vi na Escola da Ponte é o conhecimento crescendo a partir das experiências vividas pelas crianças. Aí vocês me perguntarão: "Mas o programa é cumprido?" Sobre isso falarei na próxima crônica."

Nota: texto transcrito tal como o original.

domingo, 10 de abril de 2022

COMPREENDER A ESCOLA DA PONTE


Por 
Rubem Alves *
(1933/2014)

"(...) Andando, vi um texto intitulado: "Direitos das crianças quanto à leitura". O primeiro direito rezava: "Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta." Ah! quot;, pensei, " é possível que Jorge Luis Borges tenha andado por aqui..." Li depois, o texto dos "Direitos e Deveres", elaborados pelas próprias crianças. Dentre todos, o que mais me impressionou foi o que dizia assim: "Temos o direito de ouvir música na sala de trabalho para pensarmos em silêncio"... Nesse momento eu já estava encantado! No próxima coluna eu conto mais... 


Nota
Recebi alguns comentários na sequência da organização pedagógica da conhecidíssima Escola da Ponte. Alguns pouco abonatórios, presumo eu, por desconhecimento. Retenho nos meus arquivos pessoais vários artigos do pedagogo brasileiro Rubem Alves, falecido em 2014. Decidi publicá-los como ajuda à reflexão e que ajudem a perceber que não existe apenas um formato na via da aprendizagem. Existem outros e, em Portugal, com indiscutível sucesso, começam a proliferar instituições que tentam contornar o que a hierarquia política continua a olhar com alguma desconfiança. Publico exactamente como o original.



Tudo começou acidentalmente num lugar de Portugal cujo nome eu nunca ouvira: Vila Nova de Famalicão. Posteriormente me ensinaram que era a cidade onde vivera Camilo Castelo Branco, romancista gigante de vida trágica. Menino ainda, li o seu livro "Amor de Perdição", evidentemente sem nada compreender. Li porque não tinha outra coisa para fazer e o livro estava lá, na estante do meu pai. Camilo se apaixonou por uma mulher casada que, por sua vez se apaixonou por ele, e os dois fugiram para viver um amor louco e criminoso. Naqueles tempos do século passado adultério era crime, o marido traído pôs a polícia ao encalço do sedutor que foi preso e passou anos na prisão - sem que o seu amor diminuísse. Imagino que o título do seu livro "Amor de Perdição" tenha sido inspirado por sua própria desgraça. Mas o marido finalmente morreu e os dois apaixonados viveram o resto de suas vidas na casa que pertencera ao marido. Velho, Camilo Castelo Branco ficou cego e foi abandonado pelos amigos. De tristeza, pôs um fim à sua vida. A casa é hoje um museu. Existe ali um "Centro de Formação Camilo Castelo Branco", dirigido pelo professor Ademar Santos. Pois há alguns anos atrás, por obra de uma brasileira que lá vive, chegou às mãos do professor Ademar um livrinho meu, velho e surrado, "Estórias de quem gosta de ensinar". O Ademar sentiu logo que éramos conspiradores de idéias, passou a caçar o que eu escrevia, descobrindo-me finalmente nas crônicas que publico aqui no Correio Popular aos domingos. Passamos a nos corresponder via e-mail e o "Centro de Formação Camilo Castelo Branco" acabou por convidar-me a lá passar uma semana. E foi o que fiz de 2 a 7 de maio. Eu já havia estado anteriormente em Portugal como turista, tendo conhecido monumentos, restaurantes e cidades. Dessa vez foi diferente. Conheci pessoas. Conversei com elas. Tive a recepção mais generosa e inteligente de toda a minha vida. Recepções generosas - isso é fácil: passeios, jantares, presentes, homenagens. Mas eu insisto no "inteligente". Cada ocasião era uma aprendizagem que me assombrava. Dentre elas a "Escola da Ponte". Pedi que o Ademar me desse explicações preliminares, antes da visita. Ele se recusou. Disse-me que explicações seriam inúteis. Eu teria de ver e experimentar. A "Escola da Ponte" é dirigida por José Pacheco, um educador de voz mansa e poucas palavras. Imaginei que ele seria meu guia e explicador. Ao invés disso ele chamou uma aluna de uns 10 anos que passava e disse: "Será que tu poderias mostrar e explicar a nossa escola a este visitante?" Ela acenou que sim com um sorriso e passou a me guiar. Antes de entrar no lugar onde as crianças estavam ela parou para me dar a primeira explicação que tinha por objetivo, imagino, amenizar a surpresa. Aqui, quando a gente vai a uma escola, sabe o que vai encontrar: salas de aulas, em cada sala um professor, o professor ensinando, explicando a matéria prevista nos programas oficiais, as crianças aprendendo. A intervalos regulares soa uma campainha - sabe-se então que vai haver uma mudança - muda-se de matéria, freqüentemente muda-se de professor, pois há professores de matemática, de geografia, de ciências, etc., cada um ensinando a disciplina de sua especialidade. Já falei sobre isso na crônica passada: as linhas de montagem. É preciso imaginar o delicioso "portuguesh" que se fala em Portugal para sentir a música segura e tranqüila da fala da menina. "Nósh não têmosh, como nas outrash escolash (daqui para frente escreverei do jeito normal...) salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano, 3º ano... Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-nos com uma professora e ela, conosco, estabelece um programa de trabalho de 15 dias, dando-nos orientação sobre o que deveremos pesquisar e os locais onde pesquisar. Usamos muito os recursos da Internet. Ao final dos 15 dias nos reunimos de novo e avaliamos o que aprendemos. Se o que aprendemos foi adequado, aquele grupo se dissolve, forma-se um outro para estudar outro assunto. 

"Ditas essas palavras ela abriu a porta e, ao entrar, o que vi me causou espanto. Era uma sala enorme, enorme mesmo, sem divisões, cheia da mesinhas baixas, próprias para as crianças. As crianças trabalhavam nos seus projetos, cada uma de uma forma. Moviam-se algumas pela sala, na maior ordem, tranquilamente. Ninguém corria. Ninguém falava em voz alta. Em lugares assim normalmente se ouve um zumbido, parecido com o zumbido de abelhas. Nem isso se ouvia. Notei, entre as crianças, algumas com síndrome de Down que também trabalhavam. As professoras estavam assentadas com as crianças, em algumas mesas, e se moviam quando necessário. Nenhum pedido de silêncio. Nenhum pedido de atenção. Não era necessário. 


À esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes, afixadas na parede. A menina explicou: " Aprendemos a ler lendo frases inteiras". Lembrei-me que foi assim que eu aprendi a ler. Minha primeira cartilha se chamava "O Livro de Lili". Na primeira página havia o desenho de uma menininha com o seguinte texto, que nunca esqueci: " Olhem para mim. / Eu me chamo Lili. / Eu comi muito doce. / Vocês gostam de doce? / Eu gosto tanto de doce!" Imaginei que a diferença, talvez, fosse que o texto do "Livro de Lili" tinha sido escrito por uma pessoa no seu escritório. E que as frases que se encontravam escritas na parede da "Escola da Ponte" eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida que cada um vive. Pensei que é assim que as crianças aprendem a falar. Elas aprendem palavras inteiras, pois somente palavras inteiras fazem sentido. Elas não aprendem os sons para depois juntar os sons em palavras. "Mas é importante saber as letras na ordem certa", ela continuou, "porque é assim que se aprende a ordem alfabética, necessária para o uso dos dicionários". (Ela falava assim mesmo, não é invenção minha...) Notei, numa mesa ao lado, uma menina que escrevia e consultava um dicionário. Agachei-me para conversar com ela. " Você está procurando no dicionário uma palavra que você não sabe?" - perguntei. "Não, eu sei o sentido da palavra. Mas estou a escrever um texto para os miúdos e usei uma palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam." "Estou a escrever um texto para os miúdos" - foi o que ela disse. Na "Escola da Ponte" é assim. As crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. Isso não é exceção. É a rotina do dia a dia. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores. A ética perpassa silenciosamente, sem explicações, as relações naquela sala imensa. Na outra parede encontrei dois quadros de avisos. Num deles estava afixada a frase: "Tenho necessidade de ajuda em...". E, no outro, a frase: " Posso ajudar em..." Qualquer criança que esteja tendo dificuldades em qualquer assunto coloca ali o assunto em que está tendo dificuldades e o seu nome. Um outro colega, vendo o pedido, vai ajudá-la. E qualquer criança que se ache em condições de ajudar em algum assunto, coloca ali o assunto em que se julga competente e o seu nome. Assim, vai-se se formando uma rede de relações de ajuda. Ando um pouco mais e encontro uma menina com síndrome de Down trabalhando com outras, numa mesinha. Ela trabalha de forma concentrada. Seu presença é uma presença igual à de todas as demais crianças: alguém que não sabe muitas coisas, que pode aprender muitas coisas. Acima de tudo ela aprende que ela tem um lugar importante na vida. Andando, vi um texto intitulado: "Direitos das crianças quanto à leitura". O primeiro direito rezava: "Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta." Ah! quot;, pensei, " é possível que Jorge Luis Borges tenha andado por aqui..." Li depois, o texto dos "Direitos e Deveres", elaborados pelas próprias crianças. Dentre todos, o que mais me impressionou foi o que dizia assim: "Temos o direito de ouvir música na sala de trabalho para pensarmos em silêncio"... Nesse momento eu já estava encantado! No próxima coluna eu conto mais... 

*Rubem Alves é educador, escritor, psicanalista e professor emérito da UNICAMP. As crônicas aqui transcritas foram originalmente publicadas no jornal Correio Popular, de Campinas, SP (respectivamente em 14/5, 21/5, 28/5, 4/6, 11/6 e 18/6 do ano 2000) mas estão hoje publicadas no livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir (Papirus Editora, Campinas, SP, 2001 e Edições Asa, Porto, 2001). A primeira crônica, que tem o título de “Quero uma Escola Retrógrada...”, serve como prefácio para as cinco outras, que tratam da Escola da Ponte, de Vila Nova de Famalicão, Portugal. Seu site é http://www.rubemalves.com.br/.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

A necessidade de debater a ESCOLA


Parabéns ao Pelouro da Educação e Cultura da Câmara Municipal de Machico. Oxalá contribua para a mudança de paradigma que urge. E que ajude a "criar pontes" para todos!



segunda-feira, 4 de abril de 2022

Uma manhã na Escola da Ponte. Uma verdadeira inspiração


Acabo de viver uma manhã na Escola da Ponte, na Vila das Aves. Confesso que, durante aquelas duas horas, momentos houve que me comoveram, talvez por ali encontrar a resposta ao vivo sobre o funcionamento de uma escola que sai dos cânones normais, isto é, dos princípios absolutos ditados pela hierarquia política.



Fui recebido à porta pela coordenadora dos auxiliares de educação. Falou-nos da sua escola com um sentido de pertença que nunca tinha vivido ao longo de 40 anos. No pátio de entrada deixou-me com os elementos do Conselho de Gestão. Cumprimentámo-nos e, logo depois, fiquei entregue a dois alunos, a Margarida e o Afonso. Eles os anfitriões da minha visita. Fizeram-me lembrar a história contada pelo falecido pedagogo brasileiro Rubem Alves que um dia visitou aquela escola. A aluna responsável pela visita guiada, ao abrir a porta de entrada, olhou para o Rubem Alves e disse-lhe: "O Senhor para visitar esta escola tem de esquecer tudo o que sabe sobre escolas". Não foi o meu caso, porque, ao longo dos anos, muitas vezes a visitei sem a visitar. Conheço o pensamento do seu mentor inicial, o Professor José Pacheco, e muito do que já foi publicado. E lá fomos...

A Margarida e o Afonso (7º ano), de forma fluente e segura explicaram-me tudo: logo à partida, que ali, as regras, os princípios e os valores da escola, os direitos e os deveres nascem dos próprios alunos e que são ratificados na assembleia de escola. São eles que determinam os compromissos. A qualquer momento retiram ou acrescentam os direitos e os deveres. A pandemia veio perturbar a nossa organização, disse a Margarida, mas aos poucos "estamos a retomar". E os currículos e os programas, questionei. Nas salas estamos por grupos, em mesas de configuração redonda, disse o Afonso, e na mesma sala podem estar alunos do 7º, 8º e 9º anos. Atalhou a Margarida, "eu estou no 7º, mas já me encontro a estudar temas do 8º. Nós decidimos por onde começar as tarefas quinzenais, os mais velhos explicam aos mais novos, nós procuramos, investigamos e, individualmente, quando sabemos, pedimos a avaliação ao professor, que pode ser escrita, oral ou através de trabalhos". Disse o Afonso em jeito complementar: "no mesmo espaço podemos aprender, cada grupo na sua tarefa, o inglês, o castelhano e o português".

O mais contagiante é a serenidade com tudo acontece. Espreito os espaços de aprendizagem e ali constato e experimento o interesse em saber, a compenetração, o computador e o telemóvel como auxiliares, a transversalidade das aprendizagens que rigorosamente nada têm a ver com a imagem de um professor que debita aos alunos tornados meros receptores de uma dada matéria. E que os avalia em conjunto!


Depois da visita, os alunos passaram o testemunho aos membros do Conselho de Gestão. E aí estive em amena cavaqueira com as Colegas Alexandra e Rosa. Passámos em revista tantas preocupações comuns a todas as escolas, falámos do acto de aprender, da função do Professor, da aprendizagem, de uma cidadania activa, da inclusão perante a diferença e do que sentem estes alunos quando saem para uma escola secundária. Que para muitos é um choque. Dialogámos, ainda, sobre a excessiva burocracia e sobre o problema de, apesar do "contrato de autonomia", trabalhar sempre nos limites, isto é, entre a Lei e a capacidade de gerar uma escola desejo, de felicidade e aprendizagem com vida e para a vida.

De regresso ao Porto, revivi todos aqueles momentos, mergulhado em pensamentos sem fim, mas que se esgotam em poucas perguntas: para quê tanta centralização e medo em não gerar uma autonomia plena dos estabelecimentos de aprendizagem? Para quê e para que servem estes inexplicáveis currículos, densos programas e formatos organizacionais padronizados, mesmo com alguma "flexibilidade curricular"? Será que ainda não perceberam que escolas com 1 000/2 000 e mais alunos não são escolas, antes, linhas de montagem de uma fábrica? Porque não se limitam a elencar junto dos estabelecimentos de aprendizagem, os pontos essenciais a atingir no final da escolaridade obrigatória, deixando às escolas a capacidade de se organizarem e de percorrerem caminhos distintivos?

Deixei, para a biblioteca, qual paradoxo, o meu livro "A Escola é uma seca". A Margarida quando viu a capa disse-me: "eu passei por uma outra escola antes desta. Aqui, garanto-lhe que não é uma seca. Na outra, sim".

Obrigado por me terem proporcionado uma manhã de excelência.

Ilustração: Arquivo próprio.