sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pequeno... grande livro


Por
Padre José Martins Júnior


Cativou-me desde a primeira hora: pela singeleza do título, pela dispensa do chamariz publicitário, a que se dá o pomposo nome de Prólogo ou Prefácio, feito por não menos pomposa figura de proa. Cativou-me ainda por duas outras faces da mesma singeleza: a desnecessidade de propaganda nos jornais e nos audiovisuais cá do burgo e, mais ainda, essoutra maior desnecessidade de convidar as brasonadas entidades oficiais para a sua apresentação pública, numa sala tão livre e modesta quanto eloquente na sua simbologia: o Sindicato dos Professores da Madeira.





José Bernardino Gonçalves da Côrte, nascido em Aruba, filho de pais madeirenses emigrados, reside na Região e é docente de Artes Visuais na Escola da Ribeira Brava. Neste seu segundo livro, faz uma radiografia perfeita da idiossincrasia das gentes da Madeira, desde os meados do século XX. Numa bem arquitectada síntese de cinco narrativas, conectadas sob o signo da tradição natalícia regional, o Autor faz desfilar um vasto cortejo da tipologia identificativa de personagens ilhoas, trajes, usos e costumes, de onde sobressai o linguajar endémico da nossa mais profunda ruralidade, características estas que nos aproximam do estilo do nosso maior romancista, o madeirense Dr. Horácio Bento de Gouveia.

Merecem especial menção os recursos estilísticos disseminados ao longo de todo o texto, nomeadamente o manejo da antítese (um sorriso condoído nos lábios), a sinestesia (o assobio frio do vento), a personificação (os quatro peros arrepiaram-se; as pedras ajudaram a propalar a maledicência), os indícios, monitorizados nos nomes de algumas personagens tipificadas (Zé Carrega, Rafael Dedos-Leves, António Aqui-Vamos,) e nalgumas expressões peculiares (os 366 degraus da Vereda do Calado; a efígie de Custódio na estrela Sírius). O realismo queirosiano está bem patente na descrição de todos os cenários onde se movimentam os intervenientes. Noutro excerto, o desassossego esquecido e o esquecimento desassossegado remetem-nos para o “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa. De registar a utilização de uma apropriada terminologia técnica, sobretudo quando aplicada às alfaias de uso agrícola, às armas artesanais de defesa e à ambiência sócio-económica, cultural e religiosa das populações rurais. Neste item, o Autor traz reminiscências de Saramago no rigor vocabular e, remontando mais longe, de Aquilino Ribeiro n’A Casa Grande de Romarigães. Por onde se prova que a estética literária não tem uma única direcção nem se identifica como um feudo reservado aos grandes épicos ou aos romancistas de eleição. Tanto se revela nos históricos temas de fundo como se espelha na ingenuidade nativa do microcosmos de uma aldeia perdida nas montanhas.

Enfim, um pequeno livro, pelo escasso número de páginas. Mas um Grande Livro, pelo alcance das matérias em jogo, desde a riqueza anímica de quem tem o berço e a sepultura na terra que cultiva, de sol a sol, até aos escusos meandros dos instintos negativos da condição humana, nitidamente expressos no ofício d’Os Pilhas. Quem ler esta enciclopédia de bolso – Às Voltas – não ficará insensível à galeria de Mulheres, as vulgarmente designadas ‘mulheres de campo’, as viloas, todas iguais e todas diferentes na forma de estar, agir e reagir perante as circunstâncias do mundo rural, mais incisivamente em situações dramáticas, como aconteceu com Rosalina no confronto dos camponeses com as forças militares no Largo do Regedor: O coração puxava-a para um lado, o instinto de sobrevivência para outro.

As questões sociais, indissociáveis nestes aglomerados, não foram esquecidas pelo Autor, as mais penosas, a carência alimentar (uma cavala para dez pessoas de casa: nesse dia, o almoço fora milho cozido com cebolada e um cheirinho a cavala, um festim), o êxodo rural (tanta gente do campo a trabalhar na cidade), o contrabando local (Zé Preto Cabouco ia tentar comercializar a aguardente de cana, às escuras das autoridades, com os vendeiros locais da sua zona ou particulares), as lutas, em 1936, contra os monopolistas da manteiga.

Além dos dizeres comuns ao glossário aldeão esparsos em toda a narrativa, não resisto a reproduzir, em formato telegráfico, algumas expressões de fino recorte literário, tais como a gozadora cotovelada na comadre Justina ou Custódio bebeu mais um caneco para embriagar a frustração. E ainda, aquela dor que daí a pouco não saberia o porquê de estar a chorar e Ele recarregou-se de confiança e despiu-se do desânimo do acordar de hoje.
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Aqui ficam, pois, estes breves apontamentos de homenagem e gratidão ao docente Bernardino da Côrte pela exímia radiografia que nos trouxe neste seu livro, bem como aos ilustradores: ele próprio e Francisco José Pereira da Côrte, Orlando de Abreu Ribeiro, Paulo Ladeira, Marta Condez e José Nelson Pestana Henriques. O Autor soube rodear-se de excelentes colaboradores, entre os quais Lília Maria Gonçalves Pereira e Vanda Mónica Gomes Caixas, às quais são extensivas as mesmas saudações e agradecimentos. A actuação de um selecto quinteto musical e a encenação de um dos episódios do livro abrilhantaram condignamente a apresentação ao público, sob a competente moderação de Marisa Silvestre. A palavra final coube ao Senhor Bispo D. Nuno Brás da Silva Martins, que criteriosamente enalteceu a obra e considerou-a como a “expressão da genuína alma madeirense na vivência do seu Natal”.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

"A mentira tem sempre perna curta"


A  expressão idiomática "a mentira tem sempre perna curta" adequa-se ao que aqui me traz. Há políticos, julgo eu, que não estão convencidos disso, e, vai daí, discursam conforme as plateias como se toda a audiência fosse menos capaz para cruzar e interpretar as palavras ditas. Mentem de forma descarada pouco se ralando de serem apanhados na primeira curva. A realidade é uma coisa, porém, o discurso interessa, apenas, na medida que a repetição venha a gerar uma ideia de significativa prosperidade, de lugar único pelo conjunto de medidas políticas que consideram de relevante alcance.


Há dias, a propósito do meritório trabalho realizado pelo Lions Clube do Funchal, no âmbito dos Prémios do concurso Paz - Liderar com Compaixão, o secretário da Educação da Madeira assumiu:

"Todos nós somos diferentes, mas devemos ser todos iguais nas oportunidades. É por isso que procuramos assegurar, nas escolas da Região, as condições para que todos os alunos, todas as crianças, independentemente dos seus traços, tenham a oportunidade de percorrer um caminho de sucesso, que possa conduzir à concretização do seu projecto de vida, dos seus sonhos. Uma escola inclusiva, que recebe todos, integra todos e, acima de tudo procura criar as condições conducentes ao sucesso à medida de cada um (...)" - Dnotícias.

O contexto não interessa, concretamente, se a sessão se destinou aos portadores de qualquer diferença no quadro da inclusão. Interessam-me as palavras ditas face à realidade. E este naco discursivo tem muito que se lhe diga. Falou de igualdade de oportunidades, de caminhos de sucesso à medida de cada um, de projectos de vida e de sonhos. Tudo o que este sistema, pelo qual é responsável, não garante. 

Ora bem, não existe uma política educativa caracterizada pela igualdade de oportunidades, quando as assimetrias são inquietantes, cuja prova está nos 32% de pobres ou em risco. É um erro crasso argumentar a igualdade como se esta pudesse situar-se, apenas, no quadro da acessibilidade à escola. Essa constitui um direito constitucional. Era o que faltava se os governantes não cumprissem a Lei Fundamental! A verdade que contraria a mentira oficial está nos Censos de 2021, divulgada num excelente trabalho do jornalista do Dnotícias, Francisco José Cardoso: 36.485 residentes não terminaram a primeira fase (4º ano); 50,3% tinham escolaridade até ao 9º ano; 15 em cada 100 não tem qualquer nível de escolaridade; 8,1% com 15 ou mais anos não possui nível de escolaridade completo e o analfabetismo continua superior à média nacional. Quase 50 anos depois de Abril! E sabe-se, também, no quadro deste sistema, as pressões sobre a escola no sentido de evitarem retenções. Perguntem aos professores. É a estatística a prevalecer sobre o conhecimento. Ah, os indicadores referem que se verificou uma melhoria em relação à primeira década deste século! Pois, até se formos mais atrás, ao fundador da nacionalidade, obviamente que a comparação se tornará ridícula!  

Depois, quais caminhos de sucesso à medida de cada um, quando o sistema é heterónomo, subordinado à vontade e preceitos de quem se encontra no topo da linha hierárquica, gente política que asfixia a autonomia dos estabelecimentos com uma infernal e paranóica burocracia, onde, genericamente, nada se faz sem uma "devida autorização"; quando a liberdade criadora é cerceada; a centralização de todos os processos constitui norma, onde tudo passa pelo rolo compressor que entende que, ao contrário de um fato à medida de cada um, exige um fatinho de tamanho único. Todos têm de se ajustar, mesmo que, qual metáfora, as calças fiquem abaixo do joelho e as mangas pelos cotovelos. É falso, portanto, que exista qualquer caminho de sucesso à medida de cada um! O sucesso não é determinado pelos alunos, mas por um sistema que estandardiza e, por isso mesmo, afasta os alunos do conhecimento. Os números acima enunciados testemunham isso mesmo. 

Finalmente, projectos de vida e sonho? Mas alguém neste sistema pode aspirar a traçar o seu projecto de vida e de correr atrás do seu sonho? São os alunos que dizem: "não existe um propósito para ir à escola"; "o sistema educativo foca-se em coisas que não são importantes para a vida"; "a nossa formação é demasiado quadrada"; "estamos a desperdiçar tantas qualidades que os alunos têm" - do livro "A Escola é uma seca", página 26. E isto acontece porque, na esteira de Jaume Carbonell, in Pedagogias do Século XXI, "a função do professor não é ditar pensamento, mas ensinar a pensar". Poderá, neste quadro, haver lugar ao sonho? Escreveu uma aluna, Ariana da Silva Araújo, que "o sonho é uma planta que deve ser regada todos os dias para que cresça". Percebeu, Senhor Secretário? Ou, ainda, uma aluna madeirense que passou pelo curso de Medicina Universidade da Madeira. Em artigo, no Dia do Estudante, dirigiu-se aos colegas nestes termos: "(...) não deixes que outros te determinem. Tu és o teu próprio criador. Temos de dizer não a este círculo vicioso". Nesse artigo, dirigiu-se aos políticos com uma frase de potência máxima: "Ousem criar a escola que a sociedade vos exige". Percebeu, Senhor Secretário? É discursivamente obsoleto e falso falar de projectos de vida e de sonhos quando são os alunos a assumirem que esta escola está genericamente desfasada das suas preocupações, interesses, talentos e vocações.

Percebeu, Senhor Secretário? 

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Então o Secundário é acessório?

 

É mais uma particularidade de um sistema educativo estruturalmente desadequado e que integra uma terminologia sem sentido. Pelo menos do meu ponto de vista. Vejamos esta: neste momento, após o terceiro ciclo do básico segue-se o secundário. Certo? Pergunto: secundário, porquê?



Se consultarmos o significado da palavra secundário constata-se: "(...) que é de segunda ordem ou ocupa o segundo lugar em ordem, graduação ou qualidade, relativamente a outrem ou outro. De menor importância, matéria secundária. De pouco valor, acessório, inferior. Do latim secundariu, em segundo lugar (...)". 

Chamem-lhe tudo, menos secundário: "Nível 4 de Aprendizagem", pré-universitário ou pré-superior, agora, secundário, obviamente que sugere qualquer coisa de segunda ordem e de pouca valia. E aquilo que o actual sistema defende é que ele não é de menor importância. Até enquadra exames nacionais de acesso ao superior, logo, de redobrada importância. Que paradoxo!

Parecendo que se trata de uma questão de pormenor, não é. Talvez fizesse algum sentido quando a obrigatoriedade da aprendizagem terminava no 9º ano! O que vinha a seguir, lamentavelmente, era considerado "secundário" nessa lógica da obrigatoriedade do Estado garantir a todos a universalidade "tendencialmente gratuita" (que mal isto me soa) até aos nove anos de escola básica. Portanto, não é aceitável deixar transparecer que, apesar da escolaridade obrigatória ser agora de doze anos, aqueles três anos finais, sejam acessórios. 

E se trago à colação esta designação, muito semelhante a outras na classificação internacional, é porque entendo que, por um lado, não me parece correcto que se siga uma dada classificação assumida por outros, porque sim, por outro, porque o sistema deve constituir-se em harmonia quer nas designações, quer nos currículos, quer, ainda, nos programas ou nos formatos organizacionais. A diversidade é fundamental, o que me faz rejeitar padronizações europeias ou outras.

Mais, ainda. Porquê 1º, 2º e 3º ciclos? Hoje, não vejo onde reside a lógica da diferenciação dos ciclos. Então, repito, a obrigatoriedade da aprendizagem não é de 12 anos? E a aprendizagem não deve assentar num continuum e sustentada na integração do conhecimento, respeitando a interligação e cadência dos diversos patamares da aprendizagem? 

Ora bem, era aqui que queria chegar. Tenho tido a feliz possibilidade de cruzar muita informação, desde o que leio até aos contactos com professores e alunos, enfim, com pessoas preocupadas com o conhecimento que está muito para além da resposta dita "certa" (!) a um qualquer assunto do manual, por seu turno sucessiva e obsessivamente avaliado. E o que leio e o que oiço leva-me a concluir que o sistema tem de passar por um profundíssimo debate que adeque a sequência da aprendizagem ao tempo que nos coube viver. Temos o dever de virar o sistema de pernas para o ar. 

Não devem os políticos de plantão brincar com o tema Educação. A Educação é política e não partidária. É um desígnio de todos. Eu diria, menos propaganda e mais acção consistente no sentido de, corajosamente, preparar a Região para que o povo seja feliz cá dentro. Para isso, torna-se imperativo revolucionar o sistema educativo. E quem não tem essa capacidade, quem não consegue ver para além do horizonte visual, desampare o caminho. Em nome dos jovens e da resposta aos problemas sempre novos.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Ovelhas negras


Por 
Joana Martins

“És mais parecida com a mãe.” – afirma um adulto.
“Não, não, ela é mais parecida com o pai.” – diz o outro adulto.
“Eu sou parecida comigo mesma.” – responde a criança, determinada.



Crescemos a escutar comparações a todos os níveis, como se tivéssemos que seguir sempre as pisadas dos nossos antepassados e não nos fosse dada qualquer escolha. Às crianças, muitas vezes, traçam caminhos que não são os delas e exigem que sejam boas nisto ou naquilo, quando elas têm outros talentos prontos a eclodir para o mundo. Mais tarde, são encaminhadas para carreiras profissionais porque são “as melhores”, ou servem melhor às necessidades da família naquele momento, só que nem sempre as realizam enquanto pessoas. Seguem determinados padrões familiares porque é o mais aceite, e não querem problemas.

Depois, vão tentando colmatar os vazios dentro de si através de escapes como vícios e consumismo. Cada criança é uma pessoa, mas nem sempre é vista como tal. Nasce com um caminho próprio, com capacidades inatas, com defeitos e qualidades, com sentimentos. Em primeiro lugar, precisa de amor e compreensão, para que se sinta segura e seja amparada ao longo do seu crescimento, educada para olhar o mundo duma forma ampla, com respeito, e perceber a responsabilidade de fazer as suas próprias escolhas, e os tesouros e os perigos que o mundo oferece. As crianças e os jovens não são moldes, nem têm que reproduzir as expetativas dos adultos da família. Têm direito à diferença. A serem quem são e a deixarem brilhar a sua luz cá para fora.


Há quem se encaixe nos padrões, ou faça por se encaixar. Seja por achar que só assim terá sucesso numa área, ou que dessa forma irão olhar mais para si. No processo, acabam deixando a sua essência lá bem escondidinha, disfarçando quem são realmente e gerando camadas de proteções à sua volta, tendendo a apontar o dedo “aos outros” por tudo o que de mal lhes acontece. Aparentemente, a vida é mais fácil neste planeta para as pessoas brancas, bonitas, heterossexuais, magras, “com estudos” e carreira estável. Mas onde fica a diversidade? Nesta Era onde se valoriza tanto as aparências, o exterior e os “likes” e os “je suis contra isto e aquilo”, com alguma hipocrisia, esquecemo-nos por vezes daquelas pessoas, crianças, jovens e adultos, que não se encaixam na norma dominante. As ditas “ovelhas negras”, as pessoas “diferentes”, que muitas vezes são silenciosas e discretas, com um mundo gigante e bonito dentro de si raras vezes compreendido pela maioria. As pessoas que diariamente enfrentam desafios para sobreviver, e não têm nem tiveram escolhas, mesmo que quisessem fazer diferente.

Quando falamos de Direitos Humanos, cujo Dia Internacional se celebra a 10 de dezembro, devemos abordar o direito a Ser. O direito a quebrar estereótipos, ou as caixinhas onde nos querem encaixar à força desde que nascemos. Os meninos também podem vestir rosa, e as meninas também podem ser excelentes jogadoras de futebol. Os homens também choram e demonstram emoções. A nossa orientação sexual não é uma escolha, é simplesmente de quem gostamos. E nem todas as mulheres nasceram para ser mães. Poderia alongar-me indefinidamente nesta lista, que de certeza gerará algum debate. 

Na verdade, nesta quadra natalícia, e apesar daquela tristeza que surge pela ausência física do meu pai e da minha avó paterna, desde há alguns anos, os melhores presentes não se encontram na Black Friday ou nas lojas de marca. Estão dentro de nós e na compreensão e amor que podemos dar a quem nos rodeia, sem qualquer interesse, aceitando naturalmente as características únicas de cada pessoa, sem julgamentos. Desde que haja respeito e a noção de que a minha liberdade termina onde a da outra pessoa começa. Aproveitando a presença de quem cá está e desfrutando a vida.

A criança do início do artigo era eu. E segui e continuarei a seguir o meu próprio caminho. Muita paz, saúde e amor para todas as pessoas neste Natal.

sábado, 3 de dezembro de 2022

O Estado da Educação

 

Na passada Quarta-feira participei, como orador, na Escola Francisco Franco, num encontro sobre o "Estado da Educação". No final do debate, quando já poucos se encontravam na sala, um aluno aproximou-se e sem rodeios disparou: "oh professor, depois do que escutei, considera mesmo que isto está tudo errado?"



A pergunta, acreditem os que me estão a ler, não me surpreendeu, até porque já passei por situações semelhantes. É uma pergunta óbvia de quem deseja perceber os terrenos da aprendizagem que pisa. De professores a alunos, claro. Já fui confrontado com uma professora que me disse de chofre: "discordo da maioria das coisas que disse. Nós trabalhamos muito bem na minha escola". E eu respondi-lhe: ainda bem que discorda, por um lado porque não existem verdades absolutas, por outro, discordar é o primeiro passo para um debate sério, profundo e substancialmente argumentativo. O problema é que não se debatem as rotinas que levam a admitir a inexistência de outros formatos adequados ao tempo que estamos a viver.

Ora, a pergunta daquele aluno reflecte, também, a inteligência de quem não se acomoda. Respondi, serenamente, colocando-lhe a mão sobre o ombro, dizendo-lhe: que importante questão está a colocar! Sabe, não está tudo errado, mas não acha estranho que cerca de 11% dos rapazes e 15% das raparigas assumam que gostam da escola? Há muita "coisa" boa desenvolvida nos estabelecimentos de aprendizagem. Existem excelentes professores, só que, como eu salientei na minha exposição, tal como disse Alvin Tofller, não se pode meter o futuro nos cubículos do passado. Este sistema tem mais de duzentos anos, disse-lhe.

E a conversa continuou até à porta de saída da escola. Pelas escadas fomos conversando sobre as disciplinas e sobre a palavra conhecimento; falámos da tralha que invade os currículos e os programas; falámos do decorar para esquecer; falámos da excessiva burocracia que inferniza os professores e que lhes retira tempo para serem professores; falámos da pouca participação dos alunos na aprendizagem que continuam a ser mais receptores passivos de matéria, muita que para nada serve para a vida e falámos, ainda, do direito ao sonho e ao respeito pelo talento de cada um. Ao contrário de uma escola igual para todos, devíamos ter uma escola à medida de cada um, disse-lhe. Portanto, não está tudo errado. A configuração da estrutura do sistema é que tem de ser completamente diferente. E já no final do diálogo falámos de cidadania. Questionei-o: faz algum sentido, por exemplo, uma disciplina de Cidadania, no Básico, sujeita a avaliação? A cidadania é transversal, pertence a todos os professores, aos pais e todas as situações devem ser aproveitadas para dela falarmos. 

Fiquei feliz por este fugaz diálogo com um jovem à procura de uma interpretação da escola na compaginação com a vida. No regresso a casa, pensando sobre aquela sessão e sobretudo no interesse daquele aluno, veio-me à memória um jovem que, quando eu desempenhava funções políticas, irrompeu pelo meu gabinete para me pedir aquilo que considerou o "vosso projecto político para a Região". Estávamos a semanas de umas eleições legislativas e ele que, nesse ano, ia pela primeira vez votar, queria saber mais e daí a sua ronda por todos os partidos concorrentes. O seu voto não podia ser à toa, deduzi, por "influência" familiar ou qualquer slogan de campanha. Entreguei-lhe todos os papéis e apenas lhe disse: é a primeira vez que vivo uma situação destas. Parabéns. Leia todos e decida o seu voto. O voto consciente!

Parecendo nada ter a ver uma situação com a outra, a verdade é que ambos estão unidos na busca da compreensão dos diversos ambientes que a vida confronta: um na escola que frequenta; o outro preocupado com um dos mais importantes actos de cidadania. E isto é salutar. 

No caso daquela sessão sobre o "Estado da Região", oxalá, eu e a Professora Liliana Rodrigues, tenhamos conseguido despertar para a necessidade de um debate muito mais alargado. Bem disse a Professora Liliana que o processo educativo está muito centrado no professor quando devia estar centrado no aluno. É verdade. Só que, aos políticos de plantão, sobra-lhes em teimosia o que lhes falta em conhecimento, acreditam, piamente, numa escola igual para todos quando todos são diferentes; pedem aos jovens projectos "fora da caixa" quando bloqueiam, desde as primeiras idades, a criatividade, a inovação, o risco e a liberdade de cumprir o talento que cada um de nós transporta. Ainda hoje li uma interessante entrevista ao velejador de 83 anos, Sir Robin Knox-Johnston, que a páginas tantas salientou: "(...) Aos 8 anos eu já sabia que ia ser velejador, não sei o motivo, simplesmente sabia". Pois, o talento estava lá! Foi assim com Ronaldo que se esquecia dos livros, mas não abandonava a bola, com o aluno mediano e distraído Albert Einstein que deixou cedo a escola tradicional, foi assim com um outro que passava a vida a fazer riscos e o professor queixava-se de nunca estar com atenção... Pablo Picasso! Foi assim com Thomas Edison, considerado um idiota e aconselhado a deixar a escola. Decididamente, um fatinho de tamanho único não encaixa em todas as vocações.

O drama de tudo isto é que os políticos continuam a viver, ilusoriamente, no pedestal da autosuficiência, incapazes de aceitarem que as traves-mestras da escola de há duzentos anos não se adequam ao exponencial desenvolvimento em todas as frentes do conhecimento. Mantêm, por isso, e porque é mais fácil, uma escola fechada sobre os seus muros, impedindo-a de olhar para além do horizonte visual. Falta-lhes cultura no que concerne à capacidade de cruzar o entendimento de todos os sistemas (económico, financeiro, social, político, religioso, saúde, educativo, empresarial, enfim, todos) para daí partirem para uma aprendizagem compaginada com a vida. Sobra-lhes tempo para a propaganda mediática o que lhes falta para visitar, conhecer, escutar, ler, debater e colocar em dúvida os seus propósitos. Vivem no medo de arriscar na criação de actos portadores de futuro. 

Há dias, um jovem médico, Dr. Francisco Dionísio, num encontro acontecido no Funchal, falou exactamente desta preocupação: é preciso "deixar os jovens saírem da sua bolha para que possam ver o mundo". Assumiu que é "no sonho" que os jovens encontrarão sentido para as suas vidas. Ora, isso implica "partir e quebrar as amarras que os impedem de sonhar", sublinhou.

Ora bem, alguém uma vez me disse que a alguns (políticos) os devíamos confrontar com uma frase simples: "oh amigo, de vez em quando convém ler algumas coisitas".

Ilustração. Google Imagens.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O ESTADO DA EDUCAÇÃO




"O Estado da Educação - Educação, Cidadania e Democracia para o Século XXI" constituiu o tema de exposição e debate promovido pela Escola Secundária Francisco Franco.

Convidaram-me e entendi participar. Foi muito interessante expor aos alunos e a muitos professores, aquilo que entendo como as grandes mudanças a operar para que o sistema educativo se coloque na dianteira e, portanto, na resposta aos novos tempos que nos rodeiam.

Particularmente fiquei muito feliz por reencontrar e partilhar esta acção com a minha distinta Amiga Professora Doutora Liliana Rodrigues. Produziu uma intervenção de excelência.

Obrigado, Dr. Miguel Palma Costa pelo convite.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

E é aqui que estamos, colegas professores!


Por
23 de Novembro de 2022

Este é o último prego no caixão que enterrará a carreira e o derradeiro lance para desregular definitivamente a transparência da provisão pública das necessidades docentes.



O Ministério da Educação quer atribuir a conselhos locais de directores a responsabilidade de seleccionar os professores e passar de quatro para cinco anos os concursos destinados aos dos quadros. Os dez quadros de zona pedagógica passarão a 23 mapas intermunicipais (as actuais 21 comunidades intermunicipais [CIM] mais as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto). Não há ainda qualquer documento escrito, nem foram referidos os critérios a usar pelos directores. Mas, aparentemente, desaparece a natureza nacional dos concursos de colocação, esvai-se a mobilidade interna e os professores deixam de poder escolher as escolas onde querem trabalhar.

Tendo presente que são as CIM e as áreas metropolitanas que concorrem a fundos estruturais europeus, através de projectos, a Fenprof admitiu a hipótese de os putativos conselhos de directores virem a escolher os professores a partir do interesse desses projectos, para que os respectivos salários possam ser pagos por verbas dos fundos, situação que, recorde-se, já se verifica com professores que leccionam cursos profissionais.

No sábado passado, na Covilhã, António Costa manifestou desejo de chegar a acordo com os sindicatos, para alterar o processo de vinculação a uma carreira em que, disse ele, os professores são obrigados a apresentar-se a concurso de quatro em quatro anos. Das metáforas e imprecisões (os professores não são todos obrigados a concorrer de quatro em quatro anos) com que embeleza as suas tiradas cínicas, exala sempre o mesmo cheiro hipócrita e falso: sim, porque o que está em causa é substituir a escolha, apesar de tudo ainda livre, do professor, pela decisão da administração, com todo o correlato surto de iniquidades que daí advirão e consagrarão o trabalho sujo que Maria de Lurdes Rodrigues iniciou.

O que está em causa é a imposição de uma engenharia de gestão, que subordina os mais elementares direitos humanos dos professores e à educação dos alunos, aos mais mesquinhos interesses da austeridade da página virada. O que está em causa é uma proposta que agravará as desigualdades entre as regiões e as crianças e tornará ainda mais precária a vida dos professores, coagindo-os a trabalhar onde não querem. Em rigor, trata-se de fazer precludir os capítulos V e VI do Estatuto da Carreira Docente, que regulam os quadros e os respectivos processos de vinculação. Numa palavra, este é o último prego no caixão que enterrará a carreira e o derradeiro lance para desregular definitivamente a transparência da provisão pública das necessidades docentes.


Os professores mergulharam num limbo, onde cresce o cansaço e a resignação. O desânimo que os assola radica na impotência dos sindicatos para os defender das decisões tirânicas do Governo. Com efeito, os sindicatos persistem na representação do papel de lamuriosas vítimas enganadas e as lutas sindicais estão cada vez mais aprisionadas pelos interesses das conjunturas partidárias e cada vez menos centradas na eficácia da defesa dos interesses profissionais dos seus representados. Circunscrevem-se à repetição de rotinas e coreografias simbólicas, que fogem sempre dos pontos críticos, onde a intervenção provocaria as almejadas mudanças nas relações de poder. Por medo reverencial e iniciativa nula.
As bases não precisam, agora, que lhes devolvam a palavra. Precisam de liderança que as galvanize. Precisam de uma convocatória que arrede o medo, some adesões pela ousadia e proteja a sua moleza das botas que a calcam

Neste quadro, o STOP (Sindicato de Todos Os Professores) promoveu aquilo a que chamou uma sondagem, para apurar que tipo de luta os professores estão dispostos a personificar. Mais um erro do sindicalismo de coro. Há momentos em que o recurso a ouvir as bases denuncia tibieza. Particularmente ante um adversário que não ouve e age humilhando. As bases não precisam, agora, que lhes devolvam a palavra. Precisam de liderança que as galvanize. Precisam de uma convocatória que arrede o medo, some adesões pela ousadia e proteja a sua moleza das botas que a calcam.

Ante a tormenta que se avizinha, a participação democrática vem depois do grito de revolta. É preciso que alguém o dê! É preciso convocar, não sondar. Eu sei que é desproporcionada esta invocação, mas corro o risco:

“Como sabem, há os estados socialistas, os estados ditos comunistas, os estados capitalistas e há o estado a que chegámos.”

Para dizer isto, Salgueiro Maia não fez sondagem prévia aos que o acompanharam. A exortação chegou e ninguém deu um passo atrás. E é aqui que estamos, colegas professores!

O autor é colunista do PÚBLICO

domingo, 13 de novembro de 2022

TEDX

 

É preciso "deixar os jovens saírem da sua bolha e ver o mundo" foi uma das frases emblemáticas no recente "TEDX - Funchal". Assumiu-a o Dr. Francisco Dionísio, jovem médico, para quem é "no sonho" que os jovens encontrarão sentido para as suas vidas. Isso implica "partir e quebrar as amarras que os impedem de sonhar", disse. 



É mais um que veio a terreiro tocar na ferida profunda que sangra. Parabéns, Dr. Francisco Dionísio. Desde há muitos anos que esse é o problema central que os adultos políticos não querem escutar, tampouco mexer uma palha, para que a Escola deixe de ser formatadora para dar lugar a um espaço de aprendizagem compaginada com a vida, para que eles possam ver "mais alto e mais além". Tem razão quando sublinha ser necessário "ceder poder aos jovens". Entendo o que quis transmitir, isto é, não se trata de poder político-partidário, mas o poder de serem escutados e sobretudo verem respeitadas as suas opções. O drama é que esta Escola mata o sonho desde muito cedo, exigindo-lhes respostas certas na idade das perguntas. E quando se mata o sonho, mata-se a criatividade, a inovação e o interesse pelas experiências cheias de aprendizagem e vida. 

Ao contrário do que Toffler enalteceu, esta geração política continua a querer meter o futuro nos cubículos convencionais do passado. E, de falência em falência, mais tarde, qual paradoxo, pedem aos jovens iniciativas "fora da caixa", que sejam inovadores, que tenham ambição e até propõem-lhes formação para empreendedores. Matam o sonho e, depois, desejam uma geração de jovens responsáveis, de pensamento livre e capazes de agarrar todas as oportunidades que o mundo coloca à sua disposição.

Não é possível Dr. Francisco Dionísio, quando os políticos mentem, apenas desejam conservar o seu poderzito, brincam com as estatísticas jogando no campo da "verdade que engana", quando são incapazes de perceberem as razões de só 11% dos rapazes e 15% das raparigas assumirem gostar desta escola; quando existe uma debandada de professores fartos e cheios deste sistema que os inferniza com programas e burocracias (84% deseja aposentar-se); quando os empregadores querem pessoas que pensem e não pessoas com "músculos na cabeça"; quando são mantidas as traves-mestras de um sistema com 200 anos, quando, ainda hoje, prevalece a "aprendizagem" segmentada (por disciplinas) quando tudo está interligado, quando se trabalha para "ranking's" e não para o conhecimento, pergunto-lhe, se pode haver alguém capaz de "quebrar as amarras"?

De qualquer forma, volto a dar-lhe parabéns pela lucidez e pela esperança que mantém.

Ilustração: Dnotícias.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Caso de Estudo? Chapéus há muitos...

 

Vasco Santana imortalizou a frase "Chapéus há muitos". Por aproximação eu diria que também "Case study" há para todos os gostos. Tal como os chapéus enfia quem quer. Ora bem, por várias razões, tenho pelo Dr. João Cunha e Silva consideração pessoal. Aliás, nas raras vezes que nos vamos cruzando na vida, a cordialidade e o respeito é mútuo. Portanto, aos que me lerem, peço que não confundam os quadrantes políticos que eu e ele protagonizámos ao longo da vida. Trata-se, apenas, de, democraticamente, estabelecer aqui um salutar contraponto.



Na sua habitual coluna "message" que assina no Dnotícias, escreveu hoje, na página 2, sobre aquilo que considera ser um "caso de estudo": a história dos manuais digitais com distribuição em curso na Região da Madeira. A determinada altura diz que a Samsung HQ enaltece que da Europa à Ásia os ditos manuais digitais tiveram "como inspiração o que está a ser desenvolvido na Região (...) exemplo pioneiro ao nível nacional e internacional". Espantoso, da Europa à Ásia! Ora bem, não acredito que o Dr. João Cunha e Silva não esteja por dentro deste importante tema e também porque sabe, muito melhor do que eu, sobretudo pelas importantes funções que desempenhou, as de vice-presidente do governo, que as empresas existem para venderem os seus produtos e produzirem lucros. E isso implica marketing e muita publicidade. Quantas não lhe passaram pelo seu gabinete pintando de cores garridas aquilo que, necessariamente, precisava de um outro tipo de abordagem! Permita-me Dr. João Carlos, a história da Samsung, do meu ponto de vista, é treta para consumo político. Nós, madeirenses, líderes na Europa e na Ásia! Caso de Estudo. "Só contaram prá você".

Levaria muitas páginas a explicar isto dos manuais digitais ou então aquela história das "salas de aula do futuro". Vou-me ficar por aquilo que, há poucos dias, o Professor Doutor Santana Castilho (Membro do VIII Governo Constitucional presidido pelo Dr. Francisco Pinto Balsemão), num encontro de professores, disse sobre a utilização dos manuais digitais. Sumariamente, assumiu que nos Estados Unidos, a implementação dos manuais digitais, iniciada há oito anos, foi abandonada, porque os cientistas concluíram que o desenvolvimento cognitivo das gerações mergulhadas no digital é equivalente ao das crianças de 8/9 anos de há 30 anos; por outro lado, são cinco vezes mais caros para além de ter crescido em 30% as doenças oftalmológicas. Explicou as razões e fez-se um sepulcral silêncio. Quando uma figura académica, autor de várias Obras e colunista do Público, espoleta uma situação destas, presumo que as campainhas de alarme deviam ter tocado de forma estridente nos ouvidos dos responsáveis políticos. O secretário da Educação devia, imediatamente, sentir-se preocupado e proceder à auscultação de todos os que directamente estão ligados ao sector. Com uma pergunta-chave tão simples quanto esta: "será que estamos no percurso certo ou teremos de arrepiar caminho?" Simples! Se os neurocientistas invocam que o que parece não é, então, que se estude e que se mude de orientação. Só lhe ficaria bem. Para sermos "exemplo para toda a Europa e Ásia"!

O problema da qualidade da aprendizagem e do futuro das novas gerações, entre muitos e muitos aspectos, não está, meu Caro Dr. João Cunha e Silva, na existência de manuais digitais em conjugação com algumas ditas salas de aula do futuro. O drama está no que deve ser o Sistema Educativo, no que deve ser a Escola do Século XXI, a sua organização interna, a mudança radical da mentalidade que obriga a actos rotineiros, no drama está nos currículos, nos programas extensos, complexos e desadequados, na cultura de aprendizagem, nessa meritocracia balofa que se alastrou, na reconversão da rede escolar e na tipologia dos edifícios, na formação dos professores, na burocracia, na doentia e obsessiva avaliação, na pobreza social e no respeito pelo sonho de cada um, rico ou pobre, onde a utilização da tecnologia, necessária e extremamente importante, não se esgote, genericamente, na colocação dos manuais em papel num tablet, mantendo intocável o formato pedagógico. Manter as traves-mestras do Século XIX só poderá dar "erro".

"Caso de Estudo" devia ser o facto de, numa Região Autónoma, com pouco mais de 40 000 alunos, a caminho de 50 anos de Autonomia, os indicadores serem, aproximadamente, estes: "65% da população da Madeira, com 15 ou mais anos, tem apenas até o 9º ano de escolaridade. O valor está acima da taxa nacional que, no ano passado, ficou pelos 61%. A Madeira continua a estar pior do que a média nacional, naquela que é a taxa de abandono precoce de educação e formação (jovens dos 18 aos 24 anos que estão fora do sistema de ensino e sem o secundário): 23% na Região e 14% no País". Fonte - DN-Madeira/Pordata/Jornalista Ana Luísa Correia / Junho de 2018. Refiro este estudo de 2018, pois, como se compreende, não é em quatro anos, de acordo com a mesma metodologia, que os dados venham a ser substancialmente diferentes.

Tudo isto significa que existe uma crónica teimosia em viver de modas e de aparências, onde o estudo fica sempre para mais tarde. Talvez possa dizer que a Escola está ao serviço da política e não a política ao serviço da Escola. E o Dr. Cunha e Silva percebe o que aqui deixo e, por isso, digo-lhe com consideração: oh Educação quando deixas de ser partidarizada, para que a Escola não seja "A Catedral do Tédio".

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

“O professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é”


Entrevista a José Pacheco: 
por Ana Isabel Fernandes
29 Janeiro, 2020




A entrevista foi realizada em 2020, mas poderia ter sido ontem. Deveria ser lida por quem tem responsabilidades políticas no sector educativo e por todos os professores.

“Não há alunos com dificuldades de aprendizagem; há professores com dificuldades de ensinagem…”, ressalva-nos mais do que uma vez José Pacheco que, após mais de 30 anos na Escola da Ponte, em Vila das Aves, ruma ao Brasil, tal como Agostinho da Silva, porque crê que o desenvolvimento do ensino do futuro está-se a dar a Sul e não, como etnocentricamente gostamos de pensar, a Norte. Do outro lado do oceano apoiou, por exemplo, o nascimento do núcleo projecto Âncora, que auxilia alunos socialmente desfavorecidos e é tida, actualmente, como uma das melhores escolas do mundo. Chegou à Escola da Ponte como professor substituto de uma docente em baixa de maternidade, ainda nos anos 70, e tinha a seu cargo uma turma de 60 alunos das mais variadas idades. Foi esta situação que o instigou a pensar e repensar os paradigmas da educação. Assim, dessa forma, desenvolve, na época, um novo e dinâmico projecto pedagógico, juntamente com duas colegas, a partir do qual nascem as premissas que regem a Escola da Ponte até aos dias de hoje, agora em São Tomé de Negrelos. Autonomia, liberdade, responsabilidade, entreajuda, noção de comunidade e criatividade em que é o próprio aluno a propor-se para avaliação quando se achar preparado.


Um sistema de ensino que visa respeitar o aluno como ser humano que é, consciente e autónomo, ao permitir-lhe gerir e organizar o seu próprio tempo sem divisões por turmas ou idades. Ao invés do professor que debita a matéria numa aula, o aluno tem uma voz activa no que pretende aprender e o professor serve, antes, como tutor ou orientador. A comunidade assume, dessa forma, um papel fulcral, uma vez que a escola não deveria estar integrada na comunidade, mas ser parte dela, como um todo. Para José Pacheco, as aulas e respectivas salas já deviam fazer parte do passado uma vez que foram pensadas para responderem às necessidades da primeira revolução industrial do século XIX. Muito mudou desde então, menos o sistema educacional, uma das áreas que menos sofreu evolução. Algo difícil de compreender, uma vez que não faltam, como José relembra, grandes pedagogos e pensadores hoje esquecidos — como Irene Lisboa, António Sérgio, Bento de Jesus Caraça, Adolfo Lima, Faria de Vasconcelos, João dos Santos e Agostinho da Silva —, que já defendiam há mais de um século aquilo que hoje ainda denominamos de futuro. Por isso, José Pacheco pergunta “quando cessará o insustentável e obsceno silêncio dos especialistas das ciências da educação?” Mas vamos, agora, ao principal, à entrevista que o professor nos cedeu, por e-mail, há alguns dias.

Associamos, várias vezes, a inovação escolar à inovação tecnológica. De que uma escola do futuro é aquela tecnologicamente bem equipada. Como é que olha para a integração das novas tecnologias na educação? Ajudam, de facto, numa maior democratização, no sentido lato da palavra, ou só isso não basta e poderá nos induzir em erro?

“Inovação” é tudo aquilo que é novo, que possui valor e capacidade de se renovar/reinventar no decorrer do tempo, em permanente fase instituinte. O termo “inovação” tem origem etimológica no latim innovatio. Refere-se a ideias, métodos ou objetos criados que não semelhantes a ideias, métodos ou objetos conotados com padrões anteriores. Em suma: inovação é, efetivamente, algo novo, que contribui para a melhoria de algo ou de alguém. E que pode ser replicado, por exemplo, a partir da criação de protótipos. Inovação será algo inédito, útil, sustentável e de provável replicação. No campo da educação, será um processo transformador que promova ruptura paradigmática, mesmo que parcial, com impacto positivo na qualidade das aprendizagens e no desenvolvimento harmónico do ser humano. Consiste em superar aquilo que se manifesta inadequado, obsoleto. Significa trazer à realidade educativa algo efetivamente novo, ao invés de não modificar o que seja considerado essencial. Pressupõe, não a mera adoção de novidades, inclusive as tecnológicas, mas mudança na forma de entender o conhecimento. As escolas se têm enfeitado de novas tecnologias, mas sem lograr intensificar a comunicação e a pesquisa. Onde há sala de aula, não existe inovação. É um absurdo proibir o uso de celular em sala de aula mas, infelizmente, o modo como as escolas utilizam as tecnologias de informação e comunicação apenas tem contribuído para fomentar imbecilidade e solidão.

Devem ou não estar nas escolas? Como é que os pais devem lidar com o «vício» de se estar sempre amarrado a um tablet, a um computador, a videojogos?

As ditas “novas tecnologias” vieram para ficar, são incontornáveis, mas a Internet não é uma ferramenta, é uma sociedade. Apenas será necessário saber o que fazer com ela. E que os pais não ajam com autoritarismo, mas com autoridade.

Acesso a muita informação é sinónimo de conhecimento e emancipação? Isso chega? Ou o desafio dos docentes está no modo de orientar o aluno na forma como se processa e trata a informação?

Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa de ser reinventada. Mas do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas nas escolas, temo que se transformem em panaceias que apenas sirvam para congelar aulas em computadores, aulas que os alunos, acostumados ao imediatismo e à velocidade dessas tecnologias, acriticamente consomem sem resquícios de cooperação com o aluno vizinho, dependentes de vínculos afetivos precários, estabelecidos com identidades virtuais. A Internet é generosa na oferta de informação. Basta clicar para repetir, até que a matéria seja compreendida. Tudo aquilo que um professor pode “ensinar” numa aula está plasmado, de modo mais atraente, na tela de um computador. Mas os professores do “futuro” irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas por lousas digitais ou irão atualizar-se? Irão replicar aulas congeladas no YouTube e em tablets, ou irão usar o digital ao serviço da humanização da escola?

Os PowerPoints são ou não aliados da educação? Há sempre aquela questão, se o projector falha, parece que já não se consegue ensinar.

Um estudo conduzido na Universidade de Nova Gales do Sul (Austrália) descobriu que utilizar um auxílio visual igual ao que está sendo falado, ao contrário do que se imagina, não facilita a compreensão. Outro estudo, feito por pesquisadores da Universidade de Harvard, afirma que não há um propósito de existência do Power Point. Isso, porque eles descobriram que o grau de satisfação de uma audiência para com uma apresentação é o mesmo, independente da presença ou não de auxílio visual. Os académicos também observaram que o editor de apresentações pode estar contribuindo para tornar as pessoas mais burras. A facilidade do auxílio visual de gráficos, listas e slides tem ajudado a promover um novo tipo de gramática corporativa, onde o importante não é passar uma informação correta, mas passar uma informação com estilo. Propostas com lógica sofista, informações sem contexto e que se apegam na causalidade de fatores são cada vez mais comuns. Com isso, essa nova argumentação, onde o modo como se fala é mais importante do que o conteúdo da fala, está ajudando a deixar as pessoas cada vez menos inteligentes.



O que acha da implementação, em Portugal, do projecto “Salas de Aula do Futuro”?

Se o projeto se refere a salas de aula, será mais um projeto-paliativo porque, no futuro, não haverá salas de aula.

A seu ver, o que é que haverá, então?

Certamente, a concepção e desenvolvimento de uma nova construção social de educação. Aquela que foi concebida no século XIX correspondeu a necessidades sociais do século XIX… Para uma Educação do Futuro, uma Escola de futuro. É absurdo falar em salas de aula, quando se fala de Educação do Futuro.

Gostava de saber, em específico, a sua opinião sobre a Educação Especial em Portugal.

Apesar da publicação de decretos e dos esforços de bons educadores, a inclusão continua a ser uma miragem. Será necessário assumir o princípio de que não há alunos com dificuldades de aprendizagem, mas professores com dificuldades de ensinagem. Será necessário reconhecer que todas as crianças são “especiais”. E de que as escolas deverão abandonar práticas fundadas no paradigma instrucionista, substituindo-as por práticas fundadas no paradigma da aprendizagem e da comunicação. A educação é um direito de todos. Só poderá ser inclusiva. Ou não será educação…


Olhando para a escola como um todo integrado, essencialmente, na comunidade, gostaria de saber a sua opinião sobre a importância do ensino na comunidade para os alunos com deficiência.

A escola não deverá estar integrada na comunidade, mas fazer parte da comunidade, ser mais um locus de encontro e de aprendizagem. E não há alunos (pessoas!) com deficiência – há práticas escolares deficientes.

Para se modificar o ensino, essa modificação não terá de começar na forma como a preparação dos professores, a partir do 5º ano, está demasiado fragmentada? 

Preparam-se os professores, a nível de currículo, para a matéria daquela disciplina em si, mas falta o ensinamento a sério a nível de pedagogia. Não precisaremos de “modificar o ensino”, mas de criar condições de aprendizagem. A preparação dos professores está fragmentada como, cartesianamente, está fragmentado o sistema de ensino. A formação de professores continua imersa em equívocos, continuamos cativos de um modelo de formação cartesiano que impede um re-ligare essencial. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido. 

Mas ainda há quem ignore a existência do princípio do isomorfismo na formação, quem creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de formação quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação no contexto de uma equipa, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipa.




Tenho curiosidade em saber, em particular, o impacto que o trabalho de Nise da Silveira teve em si.

Dizia o Sartre que há dois tipos de pessoas que dizem a verdade: as crianças e os loucos. E que os loucos são internados em hospícios, enquanto as crianças são educadas. Ambos estão “guetizados”: os loucos em hospícios, as crianças em prédios-escolas. A mesma sorte dos velhos relegados em lares da terceira idade. A salutar criatividade da infância é cerceada pela louca velha escola, mas a busca da verdade e da beleza é domínio em que nos é consentido ficar crianças toda a vida, como nos dizia o sábio Einstein. Andei pelo Engenho de Dentro, na boa companhia do Vítor Pordeus. Acompanhei a génese de uma comunidade de aprendizagem que a Nise e os loucos de dentro aprovariam, mas que os loucos de fora inviabilizaram.

Tendo em conta que Nise da Silveira foi a grande impulsionadora da terapia ocupacional no Brasil, dando destaque às técnicas projectivas como a pintura, gostaria de saber, na sua opinião, como essas mesmas técnicas projectivas poderiam ser transpostas para a escola comum e que impacto teriam no desenvolvimento do aluno. 

Quando falo de técnicas projectivas, falo da importância que o desenho e a pintura têm, mas, em especial, da forma como as imagens mentais que se dão antes da verbalização são essenciais e primordiais para o nosso desenvolvimento cognitivo, pessoal e verbal, também. E como é necessária uma aproximação afectiva e pessoal para esse processo se desencadear. Estás a falar de “educação integral”. O ser humano é multidimensional – intelectual, afetivo, ético, estético, emocional… que é algo ausente das práticas comuns. Mas as pinturas dos considerados loucos, nos quais reconhecemos genialidade, deram origem a um belo museu e são prova de que nem tudo está perdido.

O Museu de Imagens do inconsciente. Então, já teve a oportunidade de o visitar e travar contacto com as pessoas que o mantêm?

Sim. Conheço e visitei-o. Não tive oportunidade de contato com as pessoas. Gostaria…

A consciência dá-se antes do verbo? A não-compreensão disso poderá afectar o desenvolvimento e facilitar a rotulagem de alunos que, apenas, precisam de outra abordagem?

Não sei.

O que eu quis perguntar com isto é que o ensino apoiado numa lógica cartesiana começa pelo final e não pela base. Dá-se mais valor à verbalização e aos alunos que já têm essa faculdade mais desenvolvida, mas, porém, esquece-se o que há para trás, as tais bases de desenvolvimento para, efectivamente, todos se poderem desenvolver. A consciência de um bebé não se dá, apenas, com a primeira palavra. Depois, há outra questão. Não há um só tipo de linguagem. As formas de linguagem são múltiplas. Ao dar-se primazia a uma só, está-se a inviabilizar outros métodos de aprendizagem dos quais os alunos poderiam beneficiar. Não será por isso que é mais fácil a escola dizer que aquele determinado aluno que não entende tem um défice qualquer e não é capaz?
Desde sempre, a escola procurou explicações para o insucesso. E prevaleceram as teorias de referencial socioeconómico, ou sociocultural, para além da teoria dos dotes. A verdade é que o insucesso é sobretudo de origem sócio-institucional. Isto é: o insucesso decorre das práticas obsoletas da escola dita tradicional. Não há alunos com dificuldades de aprendizagem; há professores com dificuldades de ensinagem…

Segundo a sua concepção de pensamento em relação à escola, é ou não é possível levar todos no mesmo barco de desenvolvimento e compreensão?

É possível. Ressalvada a eventual manifestação de arrogância da afirmação, essa possibilidade existe, desde há mais de quarenta anos. E numa escola portuguesa.

A escola da Ponte, uma escola pública, escola a que já se refere como um fóssil, mas que, a seu ver, continua a ser a melhor do país. O que falta para, a nível público, se apostarem em mais escolas da Ponte sem esquecer a consequente evolução e inovação?

Falta cumprir o artigo 48.º da Lei de Bases.

[Administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino.
1 – O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes.

2 – Em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino, a administração e gestão orientam-se por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo, tendo em atenção as características específicas de cada nível de educação e ensino.

3 – Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.

4 – A direcção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, num e noutro caso segundo modalidades a regulamentar para cada nível de ensino.

5 – A participação dos alunos nos órgãos referidos no número anterior circunscreve-se ao ensino secundário.

6 – A direcção de todos os estabelecimentos de ensino superior orienta-se pelos princípios de democraticidade e representatividade e de participação comunitária.

7 – Os estabelecimentos de ensino superior gozam de autonomia científica, pedagógica e administrativa.

8 – As universidades gozam ainda de autonomia financeira, sem prejuízo da acção fiscalizadora do Estado.

9 – A autonomia dos estabelecimentos de ensino superior será compatibilizada com a inserção destes no desenvolvimento da região e do País.]



Fala muito, nas suas TedTalks, na forma como o desencadeamento da educação do futuro vai partir do sul e não do norte. Pode explicar o porquê?

No Brasil, uma nova educação acontece, cumprindo a profecia do Mestre Agostinho. Um artigo seu, publicado ainda no tempo em que foi professor da Universidade de Brasília, rezava assim: Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América; só falta a Portugal desembarcar em… Portugal. Proféticas palavras. Depois de me ter emancipado de um soberbo etnocentrismo europeu, me apercebi de que esse “desembarque” irá acontecer através de uma nova educação, que está a nascer no hemisfério sul. Está a nascer no Sul uma Nova Educação, aquela que muitos visionários anunciaram, desde há mais de um século. Acompanho uma revolução silenciosa, uma revolução que já não poderá ser silenciada. Convertido ao sul, busco fazer a minha parte. E, numa viagem ao Norte, expus essa intenção a europeus e norte-americanos. Etnocentricamente convencidos de que é no Norte que mora a novidade, desdenharam. Arrepender-se-ão…

No caso do Brasil, as políticas de Bolsonaro não põem em causa essa sua ideia? A realidade política tem um forte peso na educação. Aliás, falar-se de educação é falar-se de política.

É evidente que haverá estragos. Bastará atentar em energúmenos desabafos de afetos do regime, absurdos como “Toda civilização humana está construída em homens fortes, não em maricas. A mulher e a família precisam de homens fortes”. No tempo da “velha senhora”, envolvido em atividades antifascistas, todos os dias meditava sobre um provérbio oriental, que fala de “homens fortes”: Homens fortes produzem tempos fáceis. Tempos fáceis produzem homens fracos. Homens fracos produzem tempos difíceis. Mas, nos tempos difíceis, se produzem homens fortes. Isto talvez responda à tua pergunta.

Brasil poderá ter Paulo Freire, Nise, mas Portugal também tem Irene Lisboa que, pura e simplesmente, não é relembrada.

São muitas as memórias assassinadas. A Irene não está sozinha. E António Sérgio? E Bento de Jesus Caraça? E Adolfo Lima? E Faria de Vasconcelos? E João dos Santos, E Agostinho da Silva? E tantos outros, que os professores não conhecem, ou não praticam. Vão à Finlândia, quando têm muitas Finlândias cá dentro.

Agostinho da Silva que, tal como o José já teve a oportunidade de frisar, também partiu para o Brasil e tinha a crença que a evolução começaria por aí. Também tinha uma visão universalista, essencialmente da educação. Não lhe parece um contrassenso que pessoas nascidas já no início do século XX tenham descoberto e defendido o que hoje ainda chamamos de futuro?

Respondo com uma pergunta: quando cessará o insustentável e obsceno silêncio dos especialistas das ciências da educação?

Voltando à questão do desenho e artes em geral. Como pessoa, essencialmente, curiosa da cultura livresca e artística, facilmente compreendo como a arte é o grande pólo em que as diversas áreas do saber se encontram e como se podem influenciar entre si. Tendo em vista isso mesmo, pergunto se a fragmentação das próprias disciplinas não atrapalham, por um lado, o desenvolvimento do indivíduo e um entendimento mais profundo das coisas. Relembrando a minha experiência pessoal, eu era boa aluna, mas uma autêntica nulidade a matemática. O que sei e não esqueço a esse nível devo-o à música e até à filosofia. Até é possível relacionar a grande literatura com a ciência. O desenho, por exemplo, pode até ajudar na verbalização, noção espaço-temporal e orientação espacial.

Como diria o saudoso João dos Santos, só pergunta quem sabe… Por isso, a tua pergunta é longa e a resposta é breve: as escolas, que eu ajudo a criar (e que são escolas que a todos garantem o direito à educação) têm por centro a arte. O núcleo do Projeto Âncora, por exemplo, é uma tenda de circo, uma ágora. E essa escola está no rol das melhores escolas que o mundo tem.

Outra questão importante para a qual a sociedade ainda está a tentar encontrar uma resposta. A hierarquia da escola tradicional não ajudará a espoletar ou piorar os casos de bullying? Como é que se deve lidar com esta questão?

O bullying é, também, consequência da manutenção de um modelo educacional obsoleto. Por que se age sobre consequências, se já é tempo de agir sobre as causas? Se o discurso é unânime — é preciso reforçar a autoridade dos professores! —, a prática contraria o discurso. A regra é a transferência da autoridade do professor para os órgãos de gestão e para burocráticos procedimentos disciplinares. Autoridade não rima com controlo, imposição, submissão. Etimologicamente, a palavra autoridade significa “ajudar a crescer”. Ajudar a crescer pressupõe o exercício do diálogo e a desocultação de perversos modos de relação. Como diria o Brecht, diz-se das águas de um rio que são violentas, mas nada se diz das margens que as comprimem… Por mais que custa reconhecer, perante a violência simbólica imposta pelas escolas, a desobediência, a indisciplina, o bullying, poderão ser manifestações de sanidade mental. Longe vai o tempo em que o pai era a autoridade na família e em que o professor era a autoridade na escola. Os jovens deveriam obedecer a ordens e estar atentos às lições. Hoje, a indisciplina — herdeira do autoritarismo e da permissividade — ocupa o lugar desse “respeitinho” de antigamente.

O bullying não é um fenómeno recente. Há mais de quarenta anos, deparamo-nos com situações de bullying. Nos apercebemos de que não poderíamos resolver os problemas da criança sem resolver os problemas dos adultos — ninguém dá aquilo que não tem, ninguém transmite aquilo que não é. Compreendemos que a aprendizagem é antropofágica: não aprendemos o que outro diz — aprendemos o outro. E o professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. De uma educação para a cidadania, passámos a uma prática de educação na cidadania. O adestramento não define a educação. A educação é incompatível com a organização autoritária da vida. E, para que consiga recuperar a autoridade, é necessário que o professor se conheça afetivamente e se reconheça no outro. A segurança gerada permite ao professor ser senhor de si, elevar a autoestima e beneficiar de hétero-estima. Mas quem cuida da melhoria da formação pessoal e social do professor? Quando se operará a ruptura com a cultura do “cada qual por si”, que infesta as nossas escolas?

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

"A Escola é uma seca"

 

O problema não está na diminuição de 1 276 professores relativamente a 2010/2011 (7 105), uma vez que se verificou uma significativa diminuição da taxa de natalidade. Há menos crianças, portanto, menos são os professores necessários nos estabelecimentos de aprendizagem. O resto é conversa para entreter. (ver Dnotícias de hoje). Importante é saber onde se quer chegar com a actual política educativa. Repetir o passado com ligeiras alterações nas margens? Por aí eu diria que "vai dar erro". Aliás, o sistema vive, permanentemente, no erro. Nem tentativas faz para o evitar e, naturalmente, caminhar. Está acomodado e sobrevive da e na propaganda, não se percebendo como é possível se afirmar que se trabalha no sentido da "contínua melhoria do sistema". Mas alguém saberá para onde caminha?


Gostaria de assistir era ao debate, isso sim, não das ninharias, mas de tudo aquilo que é estruturante de um sistema desenhado para dar resposta às necessidades de uma escola compaginada com a vida. Não esqueço e continuarei a repetir até à exaustão o que escutei há mais de 50 anos:


"Como pode uma escola sempre igual 

competir com a vida que é sempre diferente. 

O desencontro é inevitável"


Eu já dei o meu contributo através da edição do livro "A Escola é uma seca". Não se trata de uma receita ou de um ponto de chegada. Trata-se, apenas, de um ponto de partida. Humildemente, peço que o adquiram e que façamos o debate.


À venda na

LIVRARIA ESPERANÇA
Rua dos Ferreiros - Funchal

Pode também ser solicitado:

https://www.livrariaatlantico.com/lis.../a-escola-e-uma-seca
Bertrand Livreiros - livraria Online
A escola é uma seca, uma pesquisa em Filosofia na Fnac.pt
Livros portugueses, livros estrangeiros, livros escolares e ebooks - Wook

terça-feira, 25 de outubro de 2022

CONVERSA SOBRE EDUCAÇÃO

 



A convite da Fundação Livraria Esperança, que muito me honra, na próxima Sexta-feira, com início às 18:00 horas, participarei numa "conversa sobre Educação". Darei o meu modesto contributo no quadro de um sistema que necessita, obrigatoriamente, de uma urgente revisão que vá ao encontro dos alunos, dos professores, dos pais e do desenvolvimento.

Espero lá encontrar aqueles que, de pensamento livre, desejem debater o actual estado da Educação. 
Até lá, Amigos.

Negar a ciência ou falta bom senso?

 

O Professor Doutor Santana Castilho esteve na Madeira e teceu algumas considerações relativamente à política de utilização dos manuais digitais. Sumariamente, tal como já neste espaço referi, assumiu que a estratégia dos tais manuais digitais, iniciada há oito anos nos Estados Unidos, está a ser abandonada. E explicou as razões.



Ora bem, quando uma figura académica, autor e colunista do Público, no decorrer de uma conferência para professores, despoleta uma situação destas, presumo que as campainhas de alarme deveriam tocar de forma estridente nos ouvidos dos responsáveis políticos. O secretário da Educação devia, imediatamente, sentir-se preocupado e proceder à auscultação de todos os que directamente estão ligados ao sector. Com uma pergunta-chave tão simples quanto esta: "será que estamos no percurso certo ou teremos de arrepiar caminho?" Simples! Se os neurocientistas invocam que o que parece não é, então, que se estude e que se mude de orientação. Só lhe ficaria bem, porque, diz a sabedoria popular a todos nós que "só os burros não mudam".


O que me parece é que o governo seguirá a sua orientação, sendo provável que o Professor Santana Castilho será considerado como uma pessoa a não tecer, no futuro e localmente, opiniões sobre a política educativa regional. E os manuais digitais continuarão e as tais "salas de aula do futuro" emergirão por aí, embelezando e servindo a propaganda de natureza política. O conhecimento científico ficará para depois.

A utilização da tecnologia, necessária e extremamente importante, não se esgota colocando os manuais em papel num tablet, mantendo intocável o formato pedagógico. Tudo isto significa que existe uma crónica teimosia em viver de modas e de aparências, onde o estudo fica sempre para mais tarde. Professores da minha terra, acordai!

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Tecnologia não é "meter" os manuais em papel no tablet!


Quem o diz é o professor Santana Castilho, que aponta os Estados Unidos da América como um país que abandonou a estratégia. Entre as razões estava o aumento das doenças oftalmológicas.


Unsplash

O projeto Manuais Digitais arrancou em 2018, na Madeira. Desde então, tem vindo a transformar-se numa referência, incitando outros países a adotarem a estratégia da desmaterialização. Este ano letivo, a medida passou a cobrir 9.500 alunos e dois mil docentes – o que corresponde, respetivamente, a 45% e a 33% dos alunos e professores da região autónoma, avança a "SapoTek".

No entanto, cada vez mais se tem questionado o impacto a nível cognitivo que um futuro completamente digital pode ter nas crianças e jovens – e, afinal, não parece muito promissor. Quem o diz é o professor Santana Castilho, na conferência da Associação Nacional de Professores desta sexta-feira, 21 de outubro.

"Estudos feitos por centros de investigação e cientistas da neurociência concluíram que o desenvolvimento cognitivo dos jovens que tiveram um grande mergulho nas tecnologias digitais aos 11 anos está similar àquele que há 30 anos as crianças tinham com 8/9 anos de idade", explica Santana Castilho, em declarações à RTP.

Existem várias razões que, alegadamente, demonstram os efeitos nocivos da adoção desta medida. Uma delas é a situação dos Estados Unidos da América, onde "a experiência dos manuais digitais começou há 8 anos" – e, desde então, tem sido abandonada sistematicamente". Porquê? "Porque o custo relativamente aos manuais em papel disparou, é cinco vezes mais caro. E porque as doenças oftalmológicas aumentaram em 30%", frisou o professor.

Em Portugal, a desmaterialização abrange 66 agrupamentos e cerca de 12 mil alunos, segundo o “Jornal de Notícias”. Mas esta é uma iniciativa que se deve expandir por todo o País. Isto porque o ministro da Educação, João Costa, já havia revelado as suas expectativas no que ao assunto diz respeito – que todas as escolas tivessem manuais digitais até 2026, altura em que a sua legislatura termina.

sábado, 22 de outubro de 2022

O sistema está amarrado, estrangulado e centralizado numa pessoa!


Desde há muitos anos que nos conhecemos. Tenho pelo Engenheiro Arlindo Oliveira uma enorme consideração e estima. É um Homem esclarecido, de pensamento aberto ao Mundo, perspicaz e sensível face aos dramas sociais. Num tempo que não era fácil ter opinião, não se escondeu. Infelizmente, não foi aproveitado no plano do exercício da política. Ainda assim, em vários mandatos, servimos o Funchal enquanto Vereadores. Aquilo que escrevo relativamente ao sector da Educação, dos poucos que vêm a terreiro debatê-la, ele é um dos que se interessa apesar deste não ser o seu sector de actividade profissional. 



Há dias, publicou um texto sobre a Teoria da Relatividade de Albert Eintein - De Newton (1643-1727) a Einstein, (1879-1955) uma nova visão do mundo e do Universo. Republiquei-o no meu blogue pela importância que tal texto reflecte. É fruto do seu continuo interesse pelo estudo de temas apaixonantes e que a maioria de nós não domina. Já antes tinha acompanhado uma interessante e contagiante entrevista, melhor dizendo, diálogo com o Padre José Luís Rodrigues. Uma conversa que me encheu. E se o trago aqui é pelo facto de naquele trabalho sobre Einstein, o meu Amigo Arlindo, independentemente de todo o conteúdo, ter destacado o facto de Einstein ter sido um aluno mediano nas disciplinas de Física e de Matemática. Estava sempre distraído e teve que sair da escola. O seu texto começa assim: 

"Albert Einstein, nascido nos fins do século XIX, (1879) veio a revelar-se um génio, apesar de, na escola, alguns dos seus professores, não lhe alvitrarem grande futuro na vida, já que, não se revelou, tradicionalmente, um aluno normal, aliás, como a muitos de nós, muitas vezes incompreendidos, ouvimos, em versão semelhante, maus augúrios, da parte de alguns dos nossos professores (...)".


Perante isto, respondi-lhe: "Apenas um desabafo que vai muito para além da nossa Amizade: enquanto metáfora, quanto gostaria eu que toda a classe docente se chamasse Arlindo! Precisamos de um (AR)ejamento total e LINDO no quadro de um novo pensamento em harmonia".

Poucos minutos depois retorquiu: "Gostei meu caro amigo André Escórcio, mas sei que não mereço, no entanto, sempre tive curiosidade em conhecer cada vez mais e que o conhecimento chegasse a todos, especialmente àqueles que não são ouvidos nem têm voz para exprimirem o que lhes vai na alma  (...) quando era universitário constatei que era mais fácil mudar o mundo começando na nossa família, no nosso sítio e na nossa aldeia, etc. etc., (...) mas, afinal, quando regressamos, “formados”, armámo-nos em doutores e perdemos a parte genuína que nos levou à universidade - a nossa pureza de espírito - sim quando regressamos estamos vendidos ao sistema que nada diz ao povo, pelo contrário, oprime-o. Caso contrário a revolução estaria feita por dentro e bem! (...) Um abraço e não disserto mais porque estou a comover-me tão claro é para mim, este meu sentir da realidade - a mudança está em nós, em todos nós e a começar pelos que estão mais perto. Um abraço André."


Pois é, Amigo Arlindo, em todos os sectores "a mudança está em nós". Infelizmente, a maioria não a quer ver. Ainda neste fim-de-semana esteve na Madeira o Professor Doutor Santana Castilho que teceu algumas considerações que deveriam merecer atenção e debate (RTP-M/TJ de Sexta-feira). Caríssimo Arlindo, creia que dei uma gargalhada quando escutei o Professor dizer que, nos Estados Unidos, a implementação dos manuais digitais, iniciada há oito anos, foi abandonada, porque os cientistas concluíram que o desenvolvimento cognitivo das gerações mergulhadas no digital é equivalente ao das crianças de 8/9 anos de há 30 anos; por outro lado, são cinco vezes mais caros para além de ter crescido em 30% as doenças oftalmológicas. Por aqui, andam com a peregrina ideia da "sala de aula do futuro" (a Educação é hoje, não é amanhã) e com os manuais digitais que não são mais do que os de papel "metidos" no digital. E o que quero dizer com isto? Que a putativa novidade pegou, porque não se debate, porque não sabem para onde caminham, porque poucos são capazes de dizer que este rei vai nu, porque o sistema está amarrado, estrangulado, centralizado numa pessoa assessorada por uma meia-dúzia incapaz de dizer que esse não é o caminho. Tecnologia na escola não é aquilo que andam a fazer! Há um défice de estudo quanto à necessidade de reinventar o sistema, que passa por assumir a autonomia plena dos estabelecimentos de aprendizagem, por desenhar novos currículos, por ter uma nova visão programática, por alterar profundamente o paradigma da aprendizagem, por entender a escola como cultura, por trazer a vida para dentro da escola respeitando o sonho individual e por colocar em cima da mesa essa doentia obsessão pela avaliação, tudo isto, entre outros, são assuntos que os políticos de turno não querem e não desejam.


Não imagina, Amigo Arlindo, quanto perplexo fico quando assisto ao silêncio, ao cansaço dos professores, à generalizada angústia dos alunos que olham para uma escola que pouco lhes diz, por ser repetitiva, rotineira, previsível e em que todos, professores e alunos, não se sentem bem. Uma escola burocrática, de uma falsa meritocracia e distante da vida real. O que fazer, Arlindo? Continuar ou desistir? Assumiu o Dr. Mário Soares: "só é vencido quem desiste de lutar". Por isso, mesmo que não queiram aprender, continuemos a escrever e a debater. Um abraço.

Ilustração: Google Imagens