segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O dramatismo dos números. Alguém deve explicá-los.

 

Acompanhei a síntese de duas intervenções directamente relacionadas com a política educativa na Madeira. Alguém tem o dever político de explicar os números que foram apresentados nos últimos dias que, aliás, já eram do conhecimento público através das estatísticas. Valores que, devidamente analisados, arrepiam depois de 48 anos de Abril de 1974 e 46 de governo autónomo, sempre com a mesma cor política, à excepção dos últimos três anos onde o PSD governa em coligação com o CDS. A Madeira vai pagar muito cara a situação que a seguir descrevo.



"10% de abandono escolar precoce", o que significa que em cada 100 alunos dez ficam para trás; "somos a região com maior índice de risco de pobreza e exclusão social" (32,9%), o que significa que um em cada três madeirenses é pobre ou vive em significativa dificuldade; "os últimos Censos demonstraram que 49,7% dos madeirenses têm o ensino básico e 15,3% não têm equivalência a qualquer grau de ensino", o que significa que o sistema educativo é ele próprio um travão à criatividade, inovação e competitividade - dados assumidos pela Doutora Luísa Paolinelli. Por outro lado, o Dr. Rui Caetano sublinhou que 53% da população activa tem apenas o ensino básico e 46% dos desempregados têm menos do que o 9º ano (...) 10.500 jovens entre os 16 e 34 anos não trabalham nem estudam".

Um panorama desolador e extremamente preocupante. Por este caminho não há futuro para milhares de madeirenses, a não ser continuarem no círculo vicioso de um sistema educativo que eterniza a pobreza. Depois, os que se "safam" colocam os olhos para além da Ponta de S. Lourenço. Ficar por aqui, confinado ao espaço regional, obviamente que não é solução para uma grande parte.

É isto que acontece quando os governos são apenas de "gestão do negócio corrente", quando não dispõem de uma política educativa responsável e portadora de futuro, de uma política social de rigor e transparente e de uma política económica motivadora e capaz de fixar quadros. Entreter-se com discursos sobre "taxinhas marteladas em gabinetes" - basta ler Como Mentir com a Estatística, de Darrell Huff - entreter-se com elogios pouco sérios aos professores e com questões de pormenor dando a entender que a Madeira é um exemplo para o país e talvez para o mundo, fazer ouvidos de mercador às propostas sindicais, não escutar os investigadores, entreter-se com o "inimigo externo", com os ditos malvados que não deixam que a a Região avance (!), acaba por conduzir àqueles números, quando as soluções estão cá dentro, dentro da Autonomia e não têm sido salvaguardadas. Isto preocupa!

Do meu ponto de vista, só há um caminho: alterar, radicalmente, a política educativa, impregnada que está de muito folclore e pouca visão do futuro.

Nota 1
Elementos constantes na página Dnotícias - 27.02.2022, a propósito de uma conferência realizada sob a égide do Partido Socialista Madeira.

Nota 2
O livro da minha autoria: "A ESCOLA É UMA SECA" está disponível:

Livraria Esperança - Funchal
Ou através dos sites:

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

"Se a escola é a tua casa, foge de casa"


Para alguns pode ser cansativa esta luta por um melhor sistema educativo, para mim não é. Jamais deixarei esmorecer a opinião. Porque é o nosso futuro colectivo que está em causa. Serenamente, sem grandes expectativas e até esperança de uma significativa alteração nos próximos tempos, vale sempre a pena continuar a meter um grãozinho na ferrugenta engrenagem. Há dias li um texto da Professora Carmo Machado (revista Visão) que, logo no primeiro parágrafo, salientava: "(...) Se os alunos teimam em escrever no final dos textos – para que não nos esqueçamos – "eu odeio a escola" ou "se a escola é a tua casa, foge de casa", obviamente que este tipo de declarações constrangem quem entende que ali deveria ser um espaço de desejo, felicidade e aprendizagem. 



Preocupa-me a dor e o sofrimento  de uma escola que soçobra, por melhor que seja o esforço dos professores. Entendo o que sentem os alunos e milhares de professores quando se confrontam com um espaço onde a rotina e o desinteresse predominam. E uns e outros, por obrigação têm de lá estar. Alunos à procura de um diploma, professores pela sobrevivência. E ambos aguentam e aguentam. Queixam-se, mas aguentam. Até um dia!

Certo é que, ao longo da minha vida docente e posterior, nunca assisti a tanto queixume, tanto lamento de insatisfação. É crescente e notoriamente público o desconforto. Reclamam os professores, cujas percentagens de exaustão emocional não enganam, pelos penosos e desmotivantes atropelos na carreira onde a avaliação de desempenho é ignominiosa e por uma injustificável carga de trabalho burocrático; lamentam-se os alunos que escrevem, em alerta a quem tem responsabilidades de governo, que estão fartos. Porém, face a este preocupante e desesperante quadro, o político, neste caso, o secretário regional da Educação (Madeira), numa visita a uma escola assumiu: "sempre que houver estrada vamos continuar". Um pouco de mais atenção constataria que esta sua estrada tem um sinal: "sem saída". Os estudos demonstram exactamente isso. E não bastasse o que as verdadeiras estatísticas evidenciam face ao que o futuro nos reserva, seria suficiente um mínimo de atenção ao sentimento que sai pelas canetas dos alunos e pelas vozes, muitas audíveis, outras nem tanto, a dos professores, é verdade, porque refugiadas no silêncio que mata.

O político não está na estrada do sucesso, está no cruzamento com várias estradas em opção. E ali se encontra sem saber qual escolher. Aquela declaração do político fez-me lembrar a Doutora Fátima Vieira, investigadora especializada em estudos sobre a utopia: 

"(...) na utopia o que fazemos? Primeiro, definimos a visão: que sociedade quero ter? que escola quero ter? o que quero ser?... Depois de definirmos essa visão, então sim, escolhemos o caminho e tapamos os buracos. Não vale a pena tapar buracos de outros caminhos". 


O drama é que quem decide não tem visão (não sabe que sociedade quer construir) e não escolhe um caminho (que escola quer ter), prefere andar para trás, para o tempo dos nossos avós... tapando os buracos de outros caminhos que deram no que deram. Para combater isto, então, vale a pena, pelas nossas crianças, ser subversivo. Paul Ricour diz que a utopia é sempre subversiva contra o discurso ideológico dominante. A ideologia legitima, a utopia subverte. Então, por ela, vale a pena ser subversivo, mesmo quando o discurso oficial dominante nos bloqueia e sufoca". É isso, há medo em ser saudavelmente subversivo.

Há dias regressei à minha antiga escola. Falei com alguns colegas, mas dei atenção aos auxiliares de acção educativa. Já não os via há vários anos. Foi agradável o reencontro. Um deles foi claro ao referir-se aos alunos: "isto está cada vez pior". Pois, muita indisciplina, retorqui. Os olhos reviram-se dando a entender que eu nem faço ideia. Pois, percebo, disse. E se percebo! 

Portanto, aquela historieta de "enquanto houver estrada vamos continuar", prognostica, repito, que não sabe que aquela estrada tem o tal sinal de trânsito: "sem saída". É caso para dizer, regresse ao cruzamento e, com visão, escolha outra.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Seria bom que se deixassem de tretas...

 

E volta e meia lá vem uma voz falar da "educação do futuro". Juntam a isto a "sala de aula do futuro"! Há cinquenta anos e outros há muitos mais, que ouço falar dessa tal educação do futuro, quando, por paradoxal que pareça, o futuro é hoje. Já começou ontem! Raramente falam do que está a acontecer, da clara falência do actual sistema, de um sistema que se encontra enfeitado mas podre por dentro. Tal como uma peça de fruta reluzente, apetecível, mas quando se abre, está em decomposição, com manchas por todo o lado! 



E como se nada estivesse a acontecer, do lado dos alunos e dos professores, em vez de pensarem as fragilidades deste sistema, entretêm-se a iludir as pessoas com estatísticas marteladas que só contribuem para a manutenção de um estado desordenado, extremamente confuso e claramente infrutífero relativamente ao que aí vem. 

Já li várias projecções para os próximos 30/40 anos. Entre outras, a RTP transmitiu uma fascinante série de quatro programas "10 segundos para o futuro - O mundo em 2077". Dali se conclui que  as "próximas décadas vão sofrer a maior e mais veloz  transformação de sempre" (...) "Em 2077 o conhecimento científico terá duplicado várias vezes". E perante isto, o que acontece na Escola? A rotina, como se nada estivesse a ocorrer. Dentro da escola, eis-nos face a uma montanha de projectos que a história nos diz serem infrutíferos porque de circunstância; fora dela os gritantes desequilíbrios sociais cujas causas não se resolvem apenas jogando dinheiro para cima do dramatismo. Resolve-se com uma política educativa séria, honesta, prospectiva, consistente e não com o habitual paleio de circunstância da "transição digital", com distribuição de "tablets" aos magotes, sem uma inteligência de suporte, enfim, sem um pensamento estruturante sobre o caminho a percorrer. É a festa dos impulsos que permanece! Continua a interessar-lhes a produção em série, tal como na fábrica do Século XIX/XX. Este é o modelo das múltiplas e persistentes ignorâncias, das iliteracias culturais e das incapacidades de transferência dos saberes para a vida real.

Estão mais preocupados com a avaliação do que com o conhecimento; mais preocupados com a resposta do que com a pergunta; mais preocupados com os edifícios do que com as pessoas que lá vivem uma significativa parte da vida; mais preocupados com os currículos e programas do que com os sonhos de cada um. Neste contexto, seria bom, ao contrário do espalhafato quase diário para mostrar serviço, que assistissem à série de que atrás enunciei. 

Deixo aqui o primeiro episódio:

2077 - 10 Segundos Para o Futuro: Mutação - Inteligência Artificial. Nanotecnologia. Fusão Homem/Máquina. Genética Estamos no ponto de partida de uma mudança tecnológica exponencial. 2077 - 10 Segundos Para o Futuro Episódio 1 - RTP Play - RTP

Depois de assistirem só têm um de dois caminhos: ou entregam a "pasta" a quem saiba e esteja disponível para trazer o futuro ao presente ou, então, partam para outra, que como vulgarmente se diz: desamparem a loja!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A ESCOLA CANSA-ME


Por
Luís Costa
17 de Fevereiro, 2022

Foi com esta frase que uma aluna minha, não há muito tempo, intitulou uma crónica que escreveu, no âmbito da disciplina que leciono (Português, 3.º ciclo). Respeitando a natureza deste tipo de texto (o tema deveria ser de interesse geral), a jovem refletiu criticamente sobre a sua experiência quotidiana, no legítimo pressuposto de que será idêntica à de tantos outros jovens da sua idade, por este país abaixo. Não se equivocou. A sua reflexão é a fonte de inspiração deste artigo.



Na sua crónica, a Gabriela — nome fictício — recorda, com saudade, o tempo em que tinha tempo para tudo e podia ser boa aluna, sem stresse; o tempo em que entre a casa e a escola havia uma fronteira mais bem definida, mais duradoura. Agora, diz não ter tempo para nada, sempre desdobrada entre trabalhos de casa, apresentações orais, trabalhos de pesquisa, questões de aula, testes, etc. Agora — sublinha — a escola ocupa quase todo o seu tempo. Chega tarde a casa e tem sempre algo para preparar para o(s) dia(s) seguinte(s). Ainda assim, tem de conviver com a sensação permanente de estar em falta, com a consciência de que podia fazer melhor. E conclui, resignada, admitindo que não pode reclamar, pois tem de trabalhar para preparar o seu futuro, mas remata com uma pergunta inquietante: para que futuro estará a trabalhar?

Em conversa com a aluna, desabafei também, dizendo-lhe que os professores estão a viver as mesmas experiências e os mesmos sentimentos. A escola também nos cansa, também nos absorve, também nos ocupa corpo e mente, de forma omnipresente; também nós temos de conviver com um inesgotável e crescente vórtice de funções e de tarefas; também nós levamos a escola para casa, ou é mesmo ela que invade o nosso lar, roubando-nos o sossego, o repouso, o salutar afastamento, o tempo familiar e social; também nós, infelizmente, depois de tanta entrega, temos de conviver com a frustrante sensação quotidiana de não estarmos a fazer o nosso melhor, porque há uma força que nos impele num sentido muito diferente daquele que nós seguiríamos, se, de facto, fôssemos nós a decidir; também nós, infelizmente, duvidamos muito do futuro que estamos a preparar. Porém, houve algo que ocultei à minha aluna. Que nós, os professores, temos uma obrigação moral que eles não têm: a obrigação de lutar para mudar este rumo.

Na verdade, é muito desolador o quadro que se oferece a professores e alunos, atualmente. As novas, e infindáveis, vagas que assolam constantemente as escolas — quase todas, agora, no lastro deste autêntico massacre formativo a que os professores estão sujeitos — trazem autênticas enxurradas de novas práticas, imediatamente instaladas no quotidiano pedagógico, de novos instrumentos, associados a atividades e à avaliação, que proliferam a olhos vistos, que se multiplicam descontroladamente. Os testes de avaliação sumativa estão, progressivamente, a ser substituídos por uma avalancha de pequenos instrumentos de avaliação, mais imediatos, mais próximos da lecionação dos conteúdos, das aprendizagens realizadas. São, por natureza, mais efémeros, ou melhor, testemunhos de um conhecimento mais efémero, que não teve que ultrapassar a barreira do tempo, que não teve tempo de se sobreviver às vicissitudes do esquecimento. É, em suma, a cultura da superficialidade, dado que esta autêntica parafernália pedagógica (na sua maior parte, associada à avaliação) não dá a ninguém, professores e alunos, o necessário tempo para ponderar devidamente, para amadurecer as ideias, para aprofundar as aprendizagens. Tudo é supérfluo, na quantidade, e superficial, na qualidade, porque o tempo é impiedoso, para todos. Tudo tem de ser para já, feito num instante e, cada vez mais, para o instante.

Professores e alunos, movemo-nos todos, atualmente, numa espécie de mundo às avessas, onde a nossa inteligência e a nossa autonomia contam pouco, cada vez menos. Andamos todos, professores e alunos, no verso da nossa vontade e da nossa clarividência. Parecemos (talvez já sejamos) marionetas de um tempo que nos banaliza, nos ultrapassa, nos tritura e nos engole. Não pode ser luminoso o destino. Eles não, mas nós temos uma enorme responsabilidade sobre os ombros e uma culpa que, inclemente, nos espera, no fim da linha. Por eles e por nós, temos a obrigação de sair desta masmorra de sujeitos da passiva, porque nós, afinal, somos professores. SOMOS PROFESSORES!

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Rob Riemen. “A classe dominante nunca será capaz de resolver a crise. Ela é a crise!”


Rob Riemen (1962) é um escritor e fundador do Instituto Nexus, um "Instituto que reúne os maiores intelectuais, artistas e políticos do mundo para pensar e falar sobre as questões que realmente importam". Estava eu a reler uma sua entrevista onde combina "conhecimento de história e filosofia com sensibilidade literária e explica o retorno global do fascismo, disfarçado nas falsas promessas de trazer liberdade e grandeza", eis que, quando vou por aí fora, dou com um outro texto arquivado que sublinha: "A classe dominante nunca será capaz de resolver a crise. Ela é a crise".



Eu que, à minha pequena escala, tenho andado envolvido no livro que publiquei, "A Escola é uma seca", que nada tem a ver com a citada notável entrevista de Rob Riemen, aquela frase sobre a classe dominante, a crise e as soluções possíveis, aproximaram-me das minhas preocupações relativamente ao estado a que a política educativa chegou. De facto, na espuma dos dias (L'Écume des Jours, de Boris Vian (1920-1959), ressalta, neste caso, a gritante fragilidade de pensamento de quem deveria assumir a responsabilidade de analisar e ver longe todo o processo. Porque não sabem ou porque não querem, quando dependemos da Educação como de pão para a boca.

Rob Riemen é muito claro a este respeito: "(...) E não falo apenas da classe política, mas da educacional, da que controla os media, da financeira, etc. Não vão resolver a crise porque a sua mentalidade é extremamente limitada e controlada por uma única coisa: os seus interesses. Os políticos existem para servir os seus interesses, não o país. Na educação, a mesma coisa: quem controla as universidades está ali para favorecer empresas e o Estado. Se algo não é bom para a economia, porquê investir dinheiro? (...) Estamos a criar seres humanos vazios que querem consumir e ter coisas e que acabam por se vestir e falar todos da mesma forma e pensar as mesmas coisas. E a classe dominante está muito mais interessada em que as pessoas liguem a isso do que ao que importa". - Jornal I.

E dou comigo, hoje, nem por acaso, quase dez anos depois desta entrevista (23/04/2012) a ler um texto sobre um novo espaço designado por "sala de aula do futuro". Quando o problema não reside aí, antes na transformação da escola no seu todo enquanto espaço de verdadeira aprendizagem, reside na reorganização curricular, programática e em uma atitude pedagógica que rigorosamente nada tem a ver com aquilo que andam a oferecer às crianças e jovens. Apenas areia para os olhos! Por mais salas do futuro que espalhem, a constatação é que "estamos a criar seres humanos vazios". Rob Rimen tinha e tem razão, quando sublinhou que os políticos de turno "existem para servir os seus interesses, não o país". O verbo pensar deveria estar primeiro. Mas não está. Pensar o processo histórico-filosófico e os possíveis caminhos a percorrer. Aquele verbo não constitui a primazia do processo. Por isso ele fala de uma sociedade "kitsch, porque a classe dominante teme que as pessoas comecem a questionar tudo". Neste quadro, correspondendo à pergunta da jornalista, ele foi peremptório:

Claro que sim! (...) Todos temos um lado estúpido, frustrado, provinciano. Para alterar o rumo político, temos de encontrar a estupidez em nós. Mas se as pessoas fossem um bocadinho mais espertas, não iriam para universidades estúpidas, nem veriam programas estúpidos na TV. Existe uma elite comercial e política interessada em manter as pessoas estúpidas. E isso é vendido como democracia, porque as pessoas são livres de escolher e blá blá. (...) a essência da democracia é a liberdade, mas a essência da liberdade não é teres o que queres; é usares o cérebro para te tornares num ser humano bem pensante. Se não for assim, se não fores crítico perante a sociedade mas também perante ti próprio, nunca serás livre, serás sempre escravo. Daí que o que estamos a viver não tenha nada a ver com democracia. (...) Vivemos numa democracia de massa, uma mentira que abre os portões a mentirosos, demagogos, charlatães e pessoas más, como vimos no séc. XX e como vemos agora".


Ora bem, o sistema educativo, tal como os outros, não sei se vive se sobrevive desta porta escancarada aos demagogos e mentirosos. Incapazes, não tocam no âmago dos problemas, não apenas aqueles que enquadram a aprendizagem portadora de futuro, mas também e fundamentalmente, nos dramas que se escondem a montante da escola, numa sociedade marcada pela pobreza e por inúmeras iliteracias que uma "sala do futuro" nunca será capaz de esbater.

Na apresentação do livro "A Escola é uma seca" tive a oportunidade de dizer aos que lá me deram o prazer da sua presença e o favor de me ouvirem: 

"Hoje, se bem observarmos, continuamos a ter de um lado a Escola e do outro a Vida. Uma Escola acantonada dentro dos seus muros, incapaz de os trepar e olhar para o que se está a passar em todos os outros sistemas. Se a escola fizesse esse esforço de espreitar o mundo, mesmo por uma fresta, perceberia o crescente desencanto daqueles que diz querer formar. Se espreitasse para além do muro perceberia as fragilidades e as causas do abandono e do insucesso. Que tem origem a montante, nas famílias, sublinho. Perceberia, certamente, que pouco vale a imensa tralha de pseudo-conhecimento desarticulado que transmite. (...) A escola se espreitasse para além do muro, daria razão à investigadora Deborah Stipek, quando enalteceu que estamos a produzir especialistas em provas, prejudicando vidas promissoras (…) que este tipo de ensino provoca um verdadeiro extermínio de grandes mentes”. Deborah, conclui no seu estudo transversal de 35 anos: “quantos potenciais vencedores do Prémio Nobel são perdidos antes mesmo da escolaridade básica”. Porque estamos agarrados aos currículos, aos extensos programas e aos formatos pedagógicos que matam a curiosidade e o sonho. Em síntese, confrontamo-nos com uma escola igual para todos, quando todos somos diferentes na origem e nos sonhos". Repito: "a sala de aula do futuro" não resolve. Está mais configurada para repetir o passado do que para dar resposta ao presente. 

E assim se chega à conclusão que: "A classe dominante nunca será capaz de resolver a crise. Ela é a crise". Então, vão engodando ou enrolando com o "novo normal"!

Ilustração: Jornal I

O livro A Escola é uma seca pode ser adquirido:
Livraria Esperança - Funchal

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A ESCOLA É UMA SECA


A Drª Júlia Caré apresentou, na sede do Sindicato de Professores da Madeira, o livro da minha autoria "A Escola é uma seca". Deixo aqui o seu texto, ao longo do qual deixou muitas interrogações aos presentes.



- Da primeira apresentação do livro do André Escórcio, em 21 de janeiro, retive duas expressões que me pareceram relevantes:

- do colega Valentim Remédios a expressão: “fazer flores”, pretendendo referir-se aos/às alunos/as que se adaptam à cultura tradicional de escola, que têm suporte familiar e ajuda para se prepararem para os rituais exigidos pela tradição e rotina escolar secular – a cultura das aulas, da memorização da “matéria”, dos testes, dos exames, da nota para o quadro de honra e para aceder ao Ensino Superior e com quem é mais fácil os professores trabalharem; mas e cada vez mais, a imensa maioria de crianças e jovens que não se identifica com a organização fragmentada da escola em anos, ciclos, turmas mais ou menos numerosas, disciplinas, aulas, práticas docentes de explanação dos programas instituídos e de avaliação, estudo para o teste que se esquece logo a seguir… uma escola a transbordar de conteúdos memorizáveis e pouca construção de sentido e conhecimento para a vida.

- do Padre Martins, a questão: “como agarrar as margens?” eles/elas serão os/as que ficam de fora, que não se identificam com a cultura monocultural, monocurricular, etnocêntrica da escola, pensada neste país conservador, tradicionalista, para alunos/as maioritariamente de classe média urbana: Os/as outros/as da imensa e complexa diversidade cultural deste país profundamente desigual, pós-colonial, desenraizado da ruralidade interior e fixado nas indistintas, populosas e degradadas periferias habitacionais urbanas das grandes metrópoles, com índices de baixa escolaridade familiar, pobreza estrutural transgeracional, a quem a democracia falhou na realização da esperança. Que “elevador social” para “as margens”, que escapam à meritocracia do apelido familiar, do berço e do bairro elitista e consequente estatuto socioeconómico, da pertença cultural, ou da cor adequada do cartão partidário no poder?


IDEIAS QUE CONSIDERO CENTRAIS NO LIVRO


APROPRIAÇÃO DOS CONTEÚDOS PELOS/AS ALUNOS/AS HOJE – nunca será ao mesmo tempo, nem da mesma maneira; o facto de a matéria ser dada, não quererá dizer que ficou sabida – (wishful thinking da escola) - porque a construção do conhecimento é sempre única, pessoal, condicionada pelos contextos pessoais, pelas experiências de aprendizagem anteriores, pelo grau de interesse sobre o assunto, pela motivação para aprender, pela utilidade ou sentido que o assunto lhe merece, em termos de presente ou futuro, etc…

A ESCOLA HOJE E A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES PARA APRENDER – cooperação ou competição na vida de todos os dias? (alguém diz tratar-se de uma cultura de guerra). De que modo se opera a preocupação com a diferença, a diversidade na escola? Integração e inclusão em Unidades Especializadas, devidamente cuidada, ou apenas de corpo presente? Que equilíbrio nesta tensão entre o que deveria ser – a utopia de que fala o André Escórcio no seu livro – e o que é possível, necessário, conveniente, desejável para determinados grupos sociais?

A CONSTRUÇÃO DA EMANCIPAÇÃO - da verdadeira igualdade de oportunidades, ou a consolidação /reprodução das desigualdades? Como estimular as capacidades que o ser humano tem para aprender sozinho, atingir o momento síntese, “Eureka!” Um processo individual de descoberta – o saber que passa pelo coração, no dizer de Rubem Alves, desperta curiosidade, sensibilidade, fica para a vida e quer sempre mais, numa eterna insatisfação e incompletude? (José Paulo Serralheiro, os 5%(?) que se aprendeu, à saída do Secundário…) Já esquecemos o objetivo europeu da Educação permanente, o lifelong learning?

A ESCOLA POR ALUNO/A - a verdadeira escola à medida de cada um/a – respeitadora da individualidade de cada criança / jovem. Uma utopia?
- como enfrentam as escolas as diferentes realidades sociais, familiares, por detrás de cada criança / jovem? Ou isso é suposto não ter importância?

QUE MARGENS DE AUTONOMIA TEM A ESCOLA? - E que autonomia quer ter?
- quem define/decide tudo o que se passa na escola? E que liderança seria desejável? Pode a escola aprender a ser diferente?
- o que conta para a escola? As metas? Os 20 da pauta do quadro de honra e da efémera massagem ao ego? E os que parecem escorregar para o desinteresse, o insucesso, a desistência, com todos os custos individuais e sociais?
- até quando esta organização fragmentada da escola em currículos transbordantes, períodos, disciplinas, aulas, tempos e espaços, iguais para todos?
- e porque não à volta de temas aglutinadores envolvendo a generalidade dos saberes disciplinares? A inter / trans / disciplinaridade não será mais apropriada à diversidade e complexidade social e cultural na escola, mais justa para quem ensina e aprende, e para o desenvolvimento de competências para continuar a aprender pela vida fora?

O PAPEL DOS EXAMES / OS RANKINGS – ou a perversão da avaliação
- os exames servem para seriar, selecionar, excluir e esquecer o que se memorizou. E os rankings pretendem comparar o incomparável, fazendo-se dos resultados dos exames, bitolas de qualidade educativa, sucesso e insucesso, responsabilizando escolas, promovendo outras, havendo defensores e comentadores em profusão, todos os anos na ladainha habitual… Que interesses defendem?
- como entender que se continue a fazer testes e exames iguais para todos? Por que se convencionou e ninguém tem coragem de fazer diferente? A Escola é uma convenção e todas estas práticas, meros rituais iniciáticos e de passagem?

OS CHUMBOS E AS RETENÇÕES – fracasso dos apoios em dose cavalar em catadupa, que apenas sobrecarregam os horários das crianças com mais do mesmo, mais horas na escola… Quando se poderia intervir na própria aula, coadjuvando o colega titular… Mas para isso era preciso que a porta da sala de aula – a caixa negra da relação pedagógica, no dizer de Maria Teresa Estrela – fosse franqueada sem receio nem desconfiança…. Para isso, precisávamos de outras culturas profissionais, de mais cooperação e partilha, parceria pedagógica, “team teaching” e afins… E quanto a repetências, só a escola se repete em mais do mesmo, redundante no ano seguinte, porque a criança será uma pessoa diferente. Na escola por aluno/a, não haveria chumbos nem retenções (ler pg 184, Avaliação na Escola da Ponte)

O PAPEL DOS MANUAIS – serão eles indispensáveis a uma educação de qualidade? Ou uma questão de sobrevivência económica das editoras e que juntamente com a indústria dos explicadores eterniza práticas escolares seculares continuadoras da desigualdade, desenquadradas do século que vivemos… e da era digital…

OS PROFESSORES – o peso da tradição, do “status quo”, do conservadorismo, da burocracia esmagadora e sem sentido, a solidão docente, a resistência à mudança, a insegurança, a ausência de lideranças inspiradoras nas escolas… A urgência do tempo para pensar, - meia hora por dia (Santos Guerra) - dialogar, trabalhar em equipa, colaborar, desmistificar as manobras pseudo avaliativas de desempenho docente, que apenas servem para dividir e criar animosidade… Talvez repensar a formação inicial? Que papel para as universidades, da nossa UMa, no desenvolvimento de projetos de investigação-ação em parceria com as escolas, de modo a ajudar o desenvolvimento docente?... As mexidas no Estatuto, na carreira com a finalidade única de pagar menos salário e evitar que a esmagadora maioria chegue ao topo e tenha uma aposentação condigna…

A RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA – A ESCOLA A TEMPO INTEIRO – armazém de crianças, ou estratégia ao serviço da desregulação laboral, ataque aos direitos dos trabalhadores? Excesso de tempo na escola para as crianças, mais do que o horário de trabalho dos pais, curricularização do tempo livre, eliminação do tempo para brincar – amputação da infância…

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA na escola – como condição indispensável à sensibilização para a riqueza que a diversidade cultural representa em democracia, enquanto aprendizagem e humanização freireana com o outro, à promoção da tolerância e respeito pelos Direitos Humanos, ao combate ao estereótipo e preconceito, e central à construção do pensamento crítico (pg 103 – “É a globalidade que está em causa…”)

O QUE A AUTONOMIA DA MADEIRA poderia ter feito, para além do discurso laudatório e narcisista de efémeros pioneirismos, indo mais além da retórica em matéria educativa…

Júlia Caré
SPM, 7 de fevereiro de 2022

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Aprender, não decorar


Por
Joana Petiz
24 de Janeiro, 2022

Há 20 anos, os miúdos da Escola da Ponte sentavam-se em mesas redondas e participavam na sua própria aprendizagem, contribuindo com ideias e, na prática, para os programas e o ritmo a que assimilavam informação capaz de os fazer gente. Não havia filas direitas de alunos silenciosos e aborrecidos em frente a um professor que despejava matéria – não havia nada disso. Mas havia ordem, disciplina, respeito e a aprendizagem era real. As turmas juntavam crianças de várias idades e em vários estádios de ensino e eram elas próprias, quando sentiam que o conhecimento tinha passado, que se propunham para as avaliações que as fariam progredir, não em anos letivos, mas em blocos de conhecimento.



Há 20 anos, quando visitei a Escola da Ponte, em Vila das Aves, a fórmula ali aplicada por José Pacheco não era nova – fora estreada ainda na década de 70, a mesma em que eu nasci -, mas continuava a ser extraordinariamente inovadora e a somar resultados incríveis, e por isso referências em todo o mundo.

Passaram outras duas décadas e essa realidade mantém-se: a Escola da Ponte, pública mas com autonomia, continua a ser um case study mundial. Ali não se culpa quem não segue o mesmo ritmo nem se desresponsabiliza quem não se esforça, não se castiga mas também não se passa a mão pela cabeça dos miúdos que falham, que fazem asneira. A escola existe com as crianças no centro – com cada uma delas e as suas diferenças, dificuldades e especificidades – e para delas fazer o melhor que podem vir a ser, passando-lhes valores de solidariedade, de autonomia e de responsabilidade. Ensinando-as a aprender e a raciocinar pela sua cabeça, em vez de se tornarem exímias caixas de repetição.

Ali não se decora, entende-se, aplica-se, usa-se a informação que se vai assimilando. Há regras e elas são respeitadas e, quando não o são, quem as quebra – aluno, professor, auxiliar ou dirigente – é chamado a explicar-se perante a comunidade escolar. Há, evidentemente, um tutor que acompanha, orienta e assegura que os valores e as matérias estão a ser passados, apreendidos e os trabalhos cumpridos. Que orienta e ajuda, como cada um dos colegas orienta e ajuda os outros.

A Escola da Ponte foi criada em Portugal, há mais de 40 anos e continua a ser um exemplo – para o bem e para o mal. É que se lá fora os métodos da escola aberta têm sido estudados e replicados, por cá reconheceu-se repetidas vezes o seu valor mas ninguém aceita alargar o conceito a outras.

Debate-se o estado de esgotamento dos professores, mas obriga-se todos eles a cumprir um programa maioritariamente desenhado há 50 anos. Fala-se em formação, transição digital e necessidade de novos formatos de passar conhecimento, mas as alterações que se cumprem são estéticas e estéreis – quando não produzem resultados piores ainda. Discute-se o abandono e o insucesso escolar, mas querem-se os miúdos a escutar e a papaguear o que ouvem, como se isso lhes fosse útil para a vida. Questiona-se o valor da avaliação quando se devia repensar a sua forma, longe dos obsoletos e tantas vezes injustos testes (que pouco mais atestam além da capacidade de decorar, em vez de se centrarem na evolução das capacidades individuais dos miúdos), reconhecendo-a como essencial em todos os níveis e agentes da educação.


Mesmo em pandemia, a mudança radical que vimos acontecer limitou-se a passar para o lado de lá do ecrã o que acontecia na sala de aula: um professor a falar grego para 30 alunos. Que já não ouviam coisa nenhuma quando o professor estava a três passos.

José Pacheco ainda vai ter a sorte de ver mais crianças portuguesas poderem beneficiar do que uma escola deve ser, mas teve de desistir de o fazer no ensino público, onde continua a mandar a forma, a burocracia e o espartilho do que é igual para todos – e que só cria mais desigualdade.