sábado, 31 de outubro de 2020

A arrogância, tarde ou cedo, paga-se, com juros!

 


FACTO

Através do Sindicato de Professores da Madeira (SPM), 3.640 docentes que exercem a docência na Região Autónoma, assinaram uma petição, entregue na Assembleia Legislativa da Madeira, visando o debate de algumas questões que consideram importantes, entre as quais o "combate ao desgaste e envelhecimento dos docentes na RAM". Não se tratava de aprovar, em decreto, fosse o que fosse, mas apenas esclarecer e sensibilizar os representantes do povo para determinadas problemáticas. Não entendo as razões, mas a verdade é que tal pretensão foi chumbada. 

COMENTÁRIO

Bem fez o SPM, sobre este assunto, apresentar uma "Carta Aberta a Sua Excelência o Presidente da República, ontem entregue a Sua Excelência o Representante da República para a Madeira e um voto de protesto na ALRAM por ter ignorado 3.640 cidadãos", segundo li em comunicado.

Incompreensível esta decisão do órgão máximo da Autonomia, ao não querer escutar as preocupações que emergem dos cidadãos. Então, perguntar-se-á, para que é que aquilo serve? Trata-se de um facto que explica, por outro lado, sustento eu, uma continuada "escola política" assente no quero, posso e mando, que se dá ao luxo, nem de disfarçar, apenas de impor o que lhe interessa: o silêncio. É essa a imagem que fica, a imagem que, inclusive, esquece que larguíssimas centenas de professores também terão ajudado a que esta coligação fosse possível. E fala-se, por aí, na democracia participativa! Um logro.

Os comportamentos políticos de uma certa arrogância não fazem sentido no tempo que vivemos, depois de uma experiência de várias dezenas de anos face à qual as pessoas fartaram-se. A "maioria" foi-se e tornou-se necessária uma coligação para governar. Mas ao que parece a "escola política" não dá sinais de ter aprendido com o seu próprio passado. Mantém-se insensível ao que a democracia tem de mais valioso: a abertura ao debate. Lamentável.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Boas Práticas?


FACTO

No encontro de "Partilha de Boas Práticas", que reuniu dezenas de professores, o secretário da Educação condenou a "replicação dos modelos de sucesso", sublinhando que é "no âmbito da autonomia (que) cada escola (deve) perceber aquilo que se faz nas diferentes comunidades educativas (...) A autonomia é exactamente esse princípio da decisão local". Fonte: Dnotícias

COMENTÁRIO

Não. Assim, não. Não vale mentir ou confundir! Toda a comunidade educativa, do Porto Santo à Calheta, sabe que o sistema sempre esteve centralizado e padronizado. Todos sabem que existe uma espécie de patrão a quem têm de "obedecer". Todos sabem que existe uma hierarquia que define a burocracia e espera que todos, solenemente, acatem. E todos sabem que as direcções ou professores que procurem inovar, podem ter a inspecção à porta. O caso do Curral das Freiras é paradigmático. 

Portanto, uma vez mais, lá dizia o Professor Licínio Lima, em tom severamente crítico: "SEJAM AUTÓNOMOS NAQUILO QUE JÁ DECIDIMOS POR VÓS". Em poucas palavras disse tudo. Daí que faça parte da encenação política, assumir e dizer aos professores que os estabelecimentos de aprendizagem são autónomos. Não é verdade. De todo. 

Só mais um aspecto de relevante importância: "partilha de boas práticas". Que boas práticas poderão existir, pergunto, se a Escola (o sistema) mantém um figurino organizacional, curricular, programático e pedagógico que não possibilita iniciativas diferenciadas? Só boa vontade, convenhamos, não chega. "Boas práticas" dentro do mesmo quadro de análise, só pode conduzir a determinados acertos nas margens que não alteram as questões de natureza substancial, capazes de alterarem o velho pelo novo.

Senhoras e Senhores Professores, tenham presente que, para além do que aqui me trouxe, não são respeitados. Não esqueçam que uma petição assinada por 3.640 docentes, apresentada pelo SPM, no sentido de serem debatidas, na sede da AUTONOMIA (Assembleia Legislativa), algumas importantes questões que preocupam os professores, foi liminarmente rejeitada pela maioria política. E era só para debater e esclarecer. Não se tratava de aprovar fosse o que fosse. Mas nem isso! Como se pode falar de autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem se nem a democracia, expressa na participação activa, é "tolerada"?

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

A oralidade

 

Amiudadas vezes confronto-me com pessoas, muitas jovens ainda na fase de estudantes de qualquer coisa, e noto, frequentemente, uma acentuada dificuldade na oralidade. Há muitos anos que assim é. Não é fácil manter um diálogo sobre um determinado assunto, pois constato alguma ausência de capacidade argumentativa, vocabulário adequado e correlação entre temas ou ideias. Genericamente, a língua é falada de forma, eu diria, rudimentar, com frases que quase terminam antes de começar e com sucessivas palavras da gíria popular, onde se junta o "formato" das mensagens via net que quase necessitam de tradutor. Noto, em suma, uma combinação de ausência de conhecimento e de capacidade de análise, conjugada com uma notória falência na verbalização.



Obviamente que existem muitas e relevantes excepções. Mas, penso eu, não constituem a regra. E dou comigo a magicar nos porquês deste quadro, em que as palavras parecem divorciadas do ritmo do pensamento. Muito mais em situações de natureza formal. Parece que a língua, como soe dizer-se, tem espinhos! Adiante. 

Ora, a escola é determinante no desenvolvimento dessa capacidade. Tenho por adquirido que o currículo e os programas são agentes de bloqueio. Há matéria para verter na cabeça dos alunos, a sala ainda é um espaço tendencialmente de escuta, onde falar para questionar ou exprimir posições muitas vezes é considerado perturbador, portanto, a mentalidade pedagógica, salvo raras excepções, não é geradora e potenciadora de dinâmicas que promovam a oralidade. Obviamente que outros aspectos concorrem para este défice, porém, quando o sistema ainda obriga ao silêncio, naturalmente que não se pode esperar que, em um determinado momento, a criança ou o jovem apresentem uma desejável desenvoltura quando lhes é solicitada uma pontual apresentação ou uma descrição sobre um quadro, uma fotografia ou um qualquer tema. Nem através da voz, muito menos com a expressão facial e todos os outros movimentos corporais que têm um papel importante na comunicação.

Isto não pertence à aprendizagem do Português ou de qualquer outra disciplina. É uma questão que deveria ter uma natureza transversal. A escola segmentada, excessivamente programática e enciclopédica, contribui, decisivamente, para coarctar a oralidade. Regresso a um texto de 2018: "como já alguém referiu o mais difícil é fazer calar os professores. Eles são portadores de uma vivência, de muitos anos, enquanto estudantes, sentados, obedientes e seguidores do manual". Ao atingirem o patamar da docência há qualquer coisa que os impele para: "agora é a minha vez". Por outro lado, existe uma hierarquia política que não lhes confere margem para uma profunda inovação pedagógica. Estão subordinados a um programa que tem de ser transmitido e metido à força porque existe a cultura dos exames, porque estão condicionados pelo sistema de avaliação de desempenho, portanto, torna-se mais fácil seguir a norma e o manual, página a página! Calar-se, ser moderador e promotor da pesquisa, da investigação, do pensamento, elaborar sínteses e do saber explicar são aspectos que o sistema continua a demonstrar dificuldade em aceitar. 

É um paradoxo, por exemplo, pedir que exponha e, depois, que se classifique a oralidade de um aluno, quando não se desenvolveram os processos que a ela conduzem. E para quê classificá-la, questiono, quando essa apreciação tem um alto grau de subjectividade? Mas a escola é isto: promove o silêncio, mas depois quer pessoas de excelente oralidade; não encoraja o pensamento, a inovação e a criatividade, mas depois deseja que na vida sejam empreendedores; defende, pela cultura existente, o individualismo, mas depois quer capacidade empresarial para trabalhar em grupo ou em rede. Repito, é um paradoxo. E assim sendo, só existe uma saída: desconstruí-la e reerguê-la com toda a paciência, porque a escola virou cápsula e vegeta na bolha que os adultos construíram! 

Ilustração: Google Imagens.

Texto inicialmente publicado no blogue: www.gnose.eu

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Muito para além da Covid


"(...) As crianças estão a crescer num tempo diferente (...) brincar diferente por obrigação, não por imaginação. A criatividade está limitada e assim fica muito mais difícil aprender a escola e aprender a vida. (...) Os adolescentes andam tristes, amarrados, inibidos no seu potencial de conquista e sedução. (...) Viver em contranatura só é suportável porque o mundo digital existe e, apesar de todas as questões que até agora se levantavam, hoje é a sobrevivência. (...)"



Estes são excertos de uma excelente opinião hoje publicada pela Psicóloga Manuela Parente. O artigo tem uma larga abrangência interpretativa que eu diria estar muito para além da Covid. Presumo que a autora, que habituou os leitores a considerarem o mundo para além das palavras, expressa convicções e preocupações que não se confinam (que mal esta palavra me soa!) ao estado pandémico que sobre nós se abateu. O "brincar", a "imaginação", a "criatividade", o "aprender a escola e a vida", a "tristeza", a "conquista", a "sedução", a "sobrevivência", isto é, em um parágrafo escreveu dez palavras de profundo significado, que trazem no seu bojo uma história que vem de longa data, muito antes desta vida de acentuados "medos" que muitas vezes impedem "suportar os desequilíbrios instalados".

Ora bem, contextualizando tudo isto na formação básica desejável, sinto que tais preocupações têm vindo a passar ao lado dos responsáveis políticos. Muito mais que decorar "definições" e conceitos disto e daquilo, que morrem no dia seguinte após o teste de avaliação, muito mais do que enfiar cabeça abaixo tanta tralha sem ter em conta as incertezas da vida real, melhor seria preparar para "aprender a escola e a vida".

É, por isso, que cada vez mais vejo a escola pelo ângulo da cultura no sentido lato da palavra e não pela "cultura enciclopédica". É por essa via que estruturamos e atenuamos os desequilíbrios de que fala a Drª Manuela Parente; é por essa via que relegamos o supérfluo e nos concentramos no essencial, no conhecimento portador de futuro; é por essa via que despertamos a curiosidade, as vocações e os interesses; é por essa via que é criamos o escudo tendencialmente protector perante tantos agentes de tensão.

Obviamente que tudo isto está muito para além da Covid. Nem souberam aproveitar este período de angústia para começar a desenhar uma escola com vida e de aprendizagem da VIDA, onde tudo cabe, todo o conhecimento é possível, quando subordinada a um formato organizacional, curricular, programático e pedagógico distintivo. Lamentavelmente, continuam a oferecer mais do mesmo!

A Psicóloga sabe do que fala... mas escutá-la é muito difícil. Dá trabalho. Vivemos tempos de ensurdecimento.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Constatações


Nota prévia

Nutro enorme respeito pelas pessoas, sejam elas de profissões ditas como menos qualificadas, como por aqueles que possuem elevadas qualificações académicas. Todos são importantes para que a sociedade funcione. Outra coisa é o meu olhar quando essas pessoas desempenham cargos ou funções de natureza política. Portanto, fique claro que não confundo pessoas com desempenhos políticos, sejam de que partido forem.



Posto isto, hoje, li uma declaração política e um artigo de opinião. Na mesma edição do Dnotícias. Disse o secretário regional da Educação: 

"(...) Não deixa de ser interessante a ponderação de que estes números só seriam menos drásticos se a taxa de abandono escolar não fosse equivalente a zero, como efectivamente é, e se a taxa de sucesso fosse particularmente baixa, o que também não acontece, bem pelo contrário. Numa palavra, a ausência de casos de abandono da escolaridade obrigatória e o aumento dos casos de sucesso, também estão a fazer diminuir, por razões aceitáveis e aplaudíveis, o número de matrículas. (...)" 

Por outro lado, li no artigo do Dr. Rui Caetano, um Professor com larga experiência no sector da Educação, inclusive, em cargos de direcção de um estabelecimento de aprendizagem:

"(...) A taxa de abandono escolar ou de atividade de formação entre os jovens dos 18 aos 24 anos era de 13,7% em 2019, segundo dados do Observatório de Educação, sob a tutela da Secretaria Regional, porque o Eurostat, vamos lá saber porquê, deixou de publicar a taxa de abandono escolar precoce na Região a partir de 2016, nessa data, situava-se nos 23,2%. A estrutura de habilitações dos desempregados inscritos atualmente no Instituto de Emprego mostra que cerca de 46% desses cidadãos sem emprego possuem habilitações inferiores ao 3.º ciclo do ensino básico, demonstrando grandes  dificuldades em encontrarem trabalho devido à falta de competências e qualificações. E se incidirmos a atenção nos trabalhadores em funções, por conta de outrem, observamos que 31.743 trabalhadores possuíam apenas o ensino básico ou menos. Ao analisarmos a situação dos “nem nem”, jovens com idades entre os 15 e os 34 anos que não se encontram empregados nem frequentam qualquer sistema de educação, formação ou estágio, no final de 2019, a Madeira apresentava uma percentagem de 13,1%. As taxas de escolarização e de conclusão do ensino secundário dos jovens, na Região, entre os 20 e os 24 anos, rondam os 71,2%, isto é, quase 30% dos jovens madeirenses não concluem o ensino secundário. (...)"

Ora bem, não existe aqui lugar a qualquer equívoco. São duas posições completamente antagónicas. A do secretário da Educação baseia-se em palavras que, com boa vontade da minha parte, diria constituírem percepções sem fundamento; a do Dr. Rui Caetano assenta em números estatísticos constantes em documentos oficiais. Acredito, portanto, nos estudos e não em palavras de circunstância.

Mas esta confrontação factual explica, por um lado, que o poder político não olha a meios para atingir os seus fins; por outro, explica a falência do sistema. Os números apresentados são demolidores, não existindo qualquer forma de os contrariar. Trata-se de uma realidade sentida. O leitor que retire as suas conclusões.

Ilustração: Google Imagens.


ARTIGO DO DR.  RUI CAETANO


Os sucessivos governos do PSD-Madeira falharam nas políticas relacionadas com a formação e a educação dos madeirenses, apesar dos milhões e milhões de euros de fundos europeus disponíveis para este eixo de desenvolvimento. A inexistência de uma visão estratégica e de uma vontade em investir nas qualificações dos madeirenses, enquanto pilar do nosso desenvolvimento sustentável, são evidentes e, por muito que tentem esconder, as estatísticas desmascaram o insucesso. 
A taxa de abandono escolar ou de atividade de formação entre os jovens dos 18 aos 24 anos era de 13,7% em 2019, segundo dados do Observatório de Educação, sob a tutela da Secretaria Regional, porque o Eurostat, vamos lá saber porquê, deixou de publicar a taxa de abandono escolar precoce na Região a partir de 2016, nessa data, situava-se nos 23,2%. 

A estrutura de habilitações dos desempregados inscritos atualmente no Instituto de emprego mostra que cerca de 46% desses cidadãos sem emprego possuem habilitações inferiores ao 3.º ciclo do ensino básico, demonstrando grandes dificuldades em encontrarem trabalho devido à falta de competências e qualificações. E se incidirmos a atenção nos trabalhadores em funções, por conta de outrem, observamos que 31 743 trabalhadores possuíam apenas o ensino básico ou menos. 

Ao analisarmos a situação dos “nem nem”, jovens com idades entre os 15 e os 34 anos que não se encontram empregados nem frequentam qualquer sistema de educação, formação ou estágio, no final de 2019, a Madeira apresentava uma percentagem de 13,1%. 

As taxas de escolarização e de conclusão do ensino secundário dos jovens, na Região, entre os 20 e os 24 anos, rondam os 71,2%, isto é, quase 30% dos jovens madeirenses não concluem o ensino secundário. 

O investimento na qualificação dos quadros da administração pública segue o mesmo rumo. Ora, segundo o relatório da Direção Regional da Administração Pública de 2019, nos últimos 5 anos, as ações de formação alcançaram somente 11,6% dos funcionários e, no último ano, apenas 1,2% dos funcionários públicos participaram em ações de formação. 

Apesar desta dura realidade, que deveria exigir uma verdadeira aposta nas qualificações dos madeirenses, o PDES 2030, todavia, é pouco ambicioso na definição das prioridades para o eixo da educação e da formação. 

As linhas estratégicas definidas não são suficientes para se promover a mudança necessária da escola, das práticas pedagógicas e da formação profissional. Os objetivos traçados e as metas inscritas não apresentam uma ideia no sentido de se investir numa estratégia regional que inicie a estruturação de um novo modelo educativo, um modelo de escola diferente, assente nas aprendizagens, promotor de competências, de conhecimentos e do saber fazer, maior diversidade, mais inclusivo, mais próximo das exigências, dos desafios da sociedade de hoje e das expetativas dos alunos e das alunas. 

Como tem sido visível, o PSD e o CDS insistem no mesmo modelo de desenvolvimento assente no betão armado e não pretendem substituí-lo por outro, baseado no valor acrescentado, que exigiria mão-de-obra qualificada, com salários elevados. Ou seja, não só não mudam, como repetem o mesmo e mais forte – baixos salários e mão-de-obra desqualificada. Usando as palavras de Charles Talleyrand noutras circunstâncias, não aprenderam nada (o PSD) nem esqueceram nada (o CDS), aliás, no caso do CDS, esqueceram tudo - o que disseram. 

Rui Caetano

O que falta a Portugal para ter um sistema de educação de sucesso?


O relatório da OCDE Políticas Eficazes, Escolas de Sucesso, divulgado nesta terça-feira, tem por base os resultados do PISA 2018, estudo internacional que se realiza de três em três anos e avalia a literacia de alunos de 15 anos, de 79 territórios, em leitura, matemática e ciências. Embora o desempenho dos alunos portugueses no PISA 2018 tenha estado acima da média da OCDE,(...) o que ressalta deste novo relatório é que Portugal pode melhorar no que diz respeito ao sistema de ensino.



Ainda assim, no prefácio do documento, o nosso país é mencionado pela positiva. Manifestando a desilusão que é, tendo em conta que a despesa pública com a educação cresceu mais de 15% nos países da OCDE na última década, o facto de isso não se ter traduzido num aumento do desempenho dos seus alunos desde que o primeiro PISA foi realizado, em 2000, o relatório dá conta de que só sete dos 79 sistemas de educação analisados demonstraram melhorias na literacia em leitura, matemática e ciências ao longo da sua participação e só um deles pertence à OCDE: Portugal.

O documento, de 330 páginas, analisa as escolas e os sistemas educativos e o impacto de uma série de indicadores nos resultados escolares dos alunos e, no fim, ressalvando que não há uma "receita" mágica, aponta algumas características partilhadas pelos sistemas de educação que têm melhor desempenho (a escola pública sai-se melhor do que o ensino privado, segundo os dados deste relatório) e que, por contribuírem para diminuir o impacto das diferenças socioeconómicas entre os estudantes, promovem a equidade e o sucesso na educação.

Uma distribuição mais equilibrada dos recursos materiais entre escolas desfavorecidas e favorecidas ou, existindo diferença, é a favor das primeiras; uma menor diferença de recursos educacionais entre alunos favorecidos e desfavorecidos; um maior e melhor acesso às novas tecnologias e à internet e a existência de programas de promoção de um uso correto e responsável das mesmas; frequência do pré-escolar por dois ou mais anos; um menor número de retenções; mais professores qualificados; menos alunos por turma; um número adequado de pessoal não docente; horários letivos equilibrados, nem horas a mais nem horas a menos (o ideal é entre 24 a 27 horas por semana. Menos de 20 e mais de 39 são nocivas); existência de espaços na escola para os estudantes fazerem os seus trabalhos de casa, com funcionários que os ajudem e supervisionem nessa tarefa; disponibilização de atividades extracurriculares culturais, desportivas ou musicais; programas de tutoria para os alunos; comunicação assídua com os pais e um maior envolvimento destes na comunidade escolar. Em traços gerais, estes são os pontos fortes de um bom sistema de educação.

Os pontos fracos do sistema português, identificados no relatório Políticas Eficazes, Escolas de Sucesso, da OCDE, são a falta de pessoal não docente, a taxa de retenções, a falta de equipamento informático, plataformas de ensino online e acesso rápido e eficaz à internet e a falta de equidade. O mais flagrante é a falta de pessoal não docente. Enquanto a média de países da OCDE, em que os diretores de escola a reportaram como fator que afeta a capacidade de ensinar, é de 32,8%, por cá chega quase aos 70% (67,7%), colocando o nosso país no fim da tabela.

Outro indicador desfavorável é o da percentagem de alunos que repetiram pelo menos um ano ao longo do seu percurso escolar: 26,6% contra os 11,4% da média da OCDE. Portugal, apesar da evolução positiva que tem feito neste campo, continua a ter mais do dobro da média e a estar entre os países que apresentam pior desempenho. A falta de equidade, demonstrada pelo peso que as diferenças socioeconómicas e regionais têm no desempenho dos alunos, será um dos desequilíbrios a corrigir para melhorar não só este, mas todos os outros indicadores

As queixas relativas à falta de professores também superam a média, com 31,8% dos diretores de escola portugueses a referirem-na como obstáculo ao cumprimento da sua missão (por comparação com os 27,1% da média), e o acesso às tecnologias ainda deixa muito a desejar: só 34,9% dizem ter disponível na escola uma plataforma de ensino online e 32% acesso a internet rápida e eficaz, contra os mais de 54,1% e 67,5% respetivamente da média da OCDE.

Quanto à frequência do pré-escolar, um indicador tido como fundamental para o desempenho dos alunos na literacia em leitura, está abaixo, mas de forma não relevante - 7,2% dos alunos portugueses de 15 anos não frequentaram ou frequentaram apenas um ano de ensino pré-escolar - da média da OCDE, que é de 6,2%.

Fonte: DN por indicação de Livresco. Publicado, também, no blogue "Incluso"

sábado, 17 de outubro de 2020

A verdade que engana...

 

FACTO

A Escola "deve continuar a ser um espaço de reflexão, de troca de experiências e de abordagem de novas temáticas" para que continue a dar respostas às novas gerações. Fonte: Dnotícias.



COMENTÁRIO

A frase, hoje assumida, é do actual secretário regional da Educação. Lida sem contextualizar eu diria que é irrepreensível, embora com tons "lapalissianos". Concordo em absoluto. O problema está quando desviamos o olhar e o conhecimento para as circunstâncias que a rodeiam. Aí caímos, inevitavelmente, no aforismo do "bem prega...". É que, ai daqueles que, no quadro da autonomia dos estabelecimentos de aprendizagem, saem do rebanho na convicção que se pode e deve fazer melhor. Tenhamos presente o que aconteceu na Escola do Curral das Freiras, entre outros casos menos mediáticos. 

Ora, quando se fala de "espaço de reflexão", tal obrigaria a uma liberdade para pensar e, consequentemente, agir de acordo com novos olhares. Seja o secretário honesto com a sua verdade, não é pedir muito, mas tal não é possível, por um lado, porque o sistema está amarrado a uma absurda centralização, onde tudo ou quase tudo, tem de ser autorizado pela hierarquia; por outro, porque o sistema, desde sempre, denuncia incapacidade para responder "às novas gerações". O sistema continua, teimosamente, a assemelhar-se a uma máquina, velha, mas todos os dias oleada, que produz um só produto (de aluno) e um único modelo (de funcionamento). Não conheço uma única escola pública na Região que saia do regime hierarquicamente imposto. E quando sai, caso do Curral das Freiras, foi o que se viu. Portanto, é uma falácia o que foi dito. Não é para levar a sério!

Se fosse possível "pensar", "experimentar" e actuar em conformidade, obviamente que há muito que, pelo menos alguns estabelecimentos de aprendizagem, tinham assumido a possibilidade de seguir caminhos distintivos. Certamente que outros preferissem a rotina que o vértice estratégico entende como o melhor para o sistema. Porém, o tempo, distante de experimentalismos bacocos, encarregar-se-ia de provar quanto estão errados os que optam por navegar em um mar sem ondas. E assim sendo, hoje como ontem, nem possibilidade de comparação existe, porque o sistema, repito, está preso no seu emaranhado, não fecunda nem se deixa fecundar pelas ciências. E quando aqui se chega, são muito raros aqueles que espreitam por um fresta e descobrem a possibilidade de sair desse escuro cruzamento, optando por um caminho de novas experiências proporcionador de luz. O sistema, leia-se secretário regional da Educação, está no cruzamento, com um olhar vago para as várias saídas, porém, dali não é capaz de sair. Completamente angustiado, vejo-o sentado, preferindo deixar o "marfim correr". 

De qualquer forma, distintos professores, aproveitem a oportunidade, tornem as escolas em "espaços de reflexão, de troca de experiências e de abordagem de novas temáticas". Talvez nunca ninguém tenha sido tão claro. Politicamente, foi um raro assomo de consciência. Aproveitem, porque estão escudados nas palavras circunstancialmente ditas! Ah, doravante, coloquem as crianças e jovens no centro das políticas educativas.

Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Currículo, Pedagogia e Avaliação para uma Escola mais Democrática


Por
Domingos Fernandes
Professor Catedrático
Instituto de Educação, Universidade de Lisboa

Nunca foi nem será fácil mudar práticas de instituições que, como as escolas, tendem para uma estabilidade e até para um certo imobilismo decorrentes de rotinas pedagógicas que foram sendo construídas e instituídas ao longo de décadas. A grande maioria dos docentes é indubitavelmente bem intencionada, esforçada, conhecedora das suas matérias e claramente envolvida com os seus alunos. Porém, está algo desconectada com questões tais como as que se relacionam com o currículo e o seu desenvolvimento, com perspetivas acerca do ensino e da aprendizagem e com o papel que a avaliação pedagógica pode desempenhar para melhorar a qualidade da educação. Esta situação dificulta a discussão fundamentada acerca do que, por exemplo, está em causa quando se afirma que o principal propósito da avaliação pedagógica é ajudar os alunos a aprender mais e melhor. Consequentemente, um número de profissionais tem dificuldade em reconhecer que nas questões curriculares, pedagógicas e avaliativas, que devem ser discutidas de forma integrada, há opções que se podem tomar com consequências muito diferentes ao nível das aprendizagens dos alunos e, por isso, ao nível do combate por uma educação mais igualitária e democrática. Este texto foi pensado e organizado para ajudar a clarificar as opções com que, presentemente, as escolas estão confrontadas.



Sendo necessário enfrentar desafios nos domínios do Currículo, da Pedagogia e da Avaliação Pedagógica, importa discernir consequências das opções que se fazem. Na verdade, as escolas deverão definir políticas claras e tão articuladas quanto possível nestes três domínios. E, ao fazê-lo, têm de compreender que as suas opções nunca serão neutras e têm consequências muito distintas na vida das crianças e dos jovens. Por exemplo, um currículo que se diz e que se reproduz verbalmente e/ou através de slides do power point, está associado a uma pedagogia em que o ensino e o papel do professor estão no centro do processo educativo e a uma avaliação centrada em testar se os alunos são ou não capazes de reproduzir o que lhes foi primorosamente transmitido através de imaculadas coleções de slides. Nesta visão de currículo e de desenvolvimento curricular os alunos têm sobretudo uma relação verbal e pouco crítica e pouco concreta com o conhecimento, limitando-se, em geral, a reproduzi-lo através de testes. Assim, os alunos não são preparados para observar e para analisar o que se passa à sua volta, nem para experimentar, refletir e escrever com sentido crítico. O sistema escolar, nestas condições, pouco ou nada faz para que se aprenda a pensar e pouco ou nada faz para que todos os alunos se envolvam nos processos de ensino, aprendizagem e avaliação.

Fica assim claro o que se pode esperar de um currículo que se diz, de uma pedagogia centrada no ensino e de uma avaliação que se limita a produzir juízos, muitas vezes definitivos e irreversíveis, sobre os desempenhos dos alunos. E fica igualmente claro que a opção por este tipo de desenvolvimento do currículo mantém afastados do acesso à educação, à cultura e ao conhecimento, largos milhares de alunos. Por uma razão muito simples: é claramente favorecido quem domina o código sociolinguístico que predomina no ensino e é claramente desfavorecido quem provém de meios sociais, culturais e económicos mais pobres. Consequentemente, o sistema escolar mantém e até aprofunda as desigualdades existentes entre alunos, com manifesto prejuízo, é mesmo esta a palavra, dos que são socialmente mais vulneráveis.

As escolas estão confrontadas com a necessidade de desenvolver uma renovada, flexível e dinâmica perspetiva do Currrículo, uma Pedagogia que traduza uma visão integrada, reflexiva e problematizante da aprendizagem, da avaliação e do ensino e uma Avaliação Pedagógica consistente com aqueles desígnios. Trata-se de uma opção que contrasta com a que acima se referiu. Aqui o currículo não é dito! É pensado, é questionado, é discutido e tem a ver com as vidas das crianças e dos jovens e dos seus professores e das suas famílias. O currículo é construído e reconstruído e é Vida, ou não o será de todo, pois o conhecimento e a sua utilização têm a ver com a vida. É um currículo que exige uma gestão mais flexível e inteligente para que todos e cada um dos alunos possam aprender. A pedagogia, nesta opção, prioriza a aprendizagem em vez do ensino e isto significa que os alunos são participantes mais autónomos e ativos em todas as ações que se desenvolvem nas salas de aula. Os professores são profissionais do ensino altamente qualificados que sintetizam o trabalho dos alunos, fazem pontos de situação, orientam, propõem tarefas e proporcionam as condições para que todos possam aprender. São, assim, um inestimável recurso.

A avaliação tem de ser um processo pedagógico cujo propósito fundamental é apoiar os esforços de aprendizagem dos alunos e de ensino dos professores. Por isso se assume que avaliar é diferente de classificar. Avalia-se para tratar das aprendizagens dos alunos, isto é, para lhes distribuir feedback que os torne conscientes acerca de três questões essenciais: a) o que é preciso aprender; b) em que ponto se encontram em relação às aprendizagens a desenvolver; e c) os esforços e as estratégias que têm de utilizar para chegarem lá. Avalia-se também para regular os processos de ensino. 

Nestes termos, é preciso analisar o currículo, refletir acerca dele, identificar os seus domínios fundamentais, distinguir o essencial do acessório, para definir critérios que, no fundo, indicam aos alunos o que se vai avaliar e, por isso, o que é preciso aprender. Os critérios têm de ser simples, claros, facilmente compreendidos pelos professores, pelos alunos e pelos pais ou encarregados de educação. Idealmente, numa escola, deveria definir-se um conjunto de critérios de natureza transdisciplinar e independente dos níveis de ensino e ano de escolaridade. Imagine-se a simplificação que se introduziria e o que se ganharia em termos de aprendizagem, ensino e avaliação, se os alunos, os professores e os pais pudessem estar todos focados num conjunto limitado, mas muito relevante, de critérios. 

Obviamente que tudo isto tem de estar fortemente articulado com o currículo e com a pedagogia para que, por exemplo, seja possível gerar diferentes dinâmicas de trabalho nas salas de aula, recolher informação acerca do que os alunos sabem e são capazes de fazer através de uma diversidade de processos e tornar os alunos mais autónomos. É necessário que a avaliação formativa, para aprender, acompanhe os processos de ensino e aprendizagem para que o feedback possa ser distribuído atempadamente, é necessário fazer pontos de situação, balanços, para que, num dado momento, seja possível conhecer o que os alunos sabem e são capazes de fazer, mobilizando essa informação para distribuir feedback (avaliação sumativa sem fins classificatórios) ou para efeitos da classificação dos alunos (avaliação sumativa com fins classificatórios). E vem a propósito voltar a sublinhar que é necessário compreender que a avaliação e a classificação são de natureza muito diferente. A avaliação tem a ver com pedagogia, isto é, com os processos de aprendizagem e de ensino. A classificação é a utilização de um mero algoritmo, mais ou menos inteligente, mais ou menos significativo, que permite, tecnicamente, determinar a nota de um aluno. A classificação determina-se a partir dos dados gerados pelas tarefas de avaliação sumativa que se planearam exclusivamente para fins classificatórios e só essas. Estas tarefas devem ser diversificadas e desenvolvidas de forma a que os alunos tenham oportunidade de mostrar o que sabem e são capazes de fazer no que se refere aos aspetos mais relevantes dos domínios do currículo.

Ao fazer-se uma opção desta natureza ao nível do Currículo, da Pedagogia e da Avaliação Pedagógica estaremos a contribuir decisivamente para diminuir as desigualdades entre alunos provenientes de meios social, cultural e economicamente diferenciados. Estaremos a incluir e não a excluir milhares de alunos. Tem sido esta a opção das atuais políticas públicas materializada numa diversidade de programas nacionais (e.g., Autonomia e Flexibilidade Curricular, Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, Plano Nacional das Artes, Projeto de Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica – Projeto MAIA) que constitui um ambicioso desafio para todas as escolas.

É preciso prosseguir os esforços para que as escolas vão eliminando ou reformulando drasticamente as listas e as grelhas infindáveis de tudo e mais alguma coisa, disciplina a disciplina, com poucas relações entre si. É importante criar condições para que os professores, em vez de listas e grelhas de questionável utilidade, criem autênticas comunidades de estudo e aprendizagem para dialogar, pensar, refletir e trabalhar em conjunto acerca das coisas do currículo, da pedagogia e da avaliação pedagógica. Professores profissionais do ensino, intelectuais, gente da cultura e da educação, que se assume integralmente como tendo um papel insubstituível neste duro e difícil combate social pela democratização da escola. Uma escola em que cada um dos seus alunos possa ter reais oportunidades para aprender mais e melhor, com mais profundidade e compreensão.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os professores: sal da terra, luz da humanidade


“Os professores não têm futuro. Eles são o futuro.” - Philippe Meirieu


“Ensinar não é uma atividade como as outras. Poucas profissões serão causa de riscos tão graves como os que os maus professores fazem correr aos alunos que lhe são confiados. Poucas profissões supõem tantas virtudes, generosidade, dedicação e, acima de tudo, talvez entusiasmo e desinteresse. Só uma política inspirada pela preocupação de atrair e de promover os melhores, esses homens e mulheres de qualidade que todos os sistemas de educação sempre celebraram, poderá fazer do ofício de educar a juventude o que ele deveria ser: o primeiro de todos os ofícios.”
Pierre Bourdieu


Sabemos que ser professor é uma profissão única e singular. Sem professores, nenhuma outra profissão existiria. Sem professores, a herança científica, tecnológica e artística tenderia a desaparecer. Sem professores, a vida social e cultural ficaria mergulhada num deslaçamento caótico. E por isso, deveria ser o primeiro de todos os ofícios. No entanto, esta óbvia centralidade não tem tido o reconhecimento devido, seja no exterior, seja no interior da profissão.

No exterior, assistimos frequentemente a uma desvalorização do seu papel e estatuto. A uma desconsideração sobre o seu lugar no mundo educativo. A uma proletarização das suas condições de vida e de trabalho. De facto, basta lembrar a precariedade laboral de muitos milhares de professores sucessivamente contratados durante repetidos anos; a peregrinação recorrente por múltiplos lugares numa exigente adaptação a muitos contextos geográficos; o bloqueamento na progressão da carreira, congelando legítimas expetativas e burocratizando o regime de avaliação; a muito difícil tarefa de ensinar, muitas vezes, quem não quer aprender e de interagir semanalmente com muitas dezenas de alunos, todos únicos, todos diferentes; a intensificação (e a crescente complexidade) do trabalho que tende a ultrapassar largamente as horas legalmente prescritas; um estatuto da carreira docente estrangulado, funcionarizado e mal pago; um tempo pandémico que exige tudo às escolas e aos professores numa missão de alta complexidade; e a desautorização praticada por instâncias políticas e administrativas que se não coíbem de ordenar e de mandar executar ações que deveriam ser da responsabilidade exclusiva de cada profissional ou do colégio docente.

Os fatores enunciados fazem da profissão uma prática socialmente desprestigiada e pouco atraente, havendo o risco de uma crescente falta de professores, já hoje visível em diversos grupos de docência. A conjugação desta escassez com o envelhecimento crítico da classe é de molde a instituir um grave grito de alerta que tem de ser urgentemente considerado.

Mas não são só do exterior que surgem estes sinais preocupantes. No interior da classe, há uma excessiva tentação do rebanho, uma grande dessintonia em relação às funções chave do que deveria ser um professor, uma persistente subserviência face a orientações superiores que deveriam ser ilegítimas e por isso não acatadas, um excesso de obediência burocrático-normativa que faz esquecer o dever primeiro de fazer aprender, uma clausura no fechamento da sala de aula, uma solidão existencial que tende a não ver a vantagem do trabalho colaborativo no enfrentar e no resolver os problemas de aprendizagem, uma adesão a práticas avaliativas tendencialmente seletivas e excludentes, um investimento provavelmente insuficiente na capacitação e desenvolvimento profissional.

A profissão vive, assim, entre a proletarização e o profissionalismo. E seria bom que um número crescente de professores preferisse e praticasse uma ordem profissional mais autónoma, mais crítica, mais reflexiva, mais comprometida, mais solidária, mais colegial e mais inscrita no território onde se exerce. Pois só esta ordem nos redime da tentação canina e nos salva.

Mas esta opção exige uma radical desaprendizagem e uma reinvenção da pedagogia. Neste tempo tão exigente e cruel, precisamos de olhar, ver, reparar e intervir. Desaprender o vício da exposição, a servidão do dar a matéria e cumprir o programa, a comodidade do ensinar a todos como se todos fossem um. Fazer a identificação do que é dispensável ensinar e aprender, prescindindo de tudo o que sobretudo visa operar a distinção e a segregação escolar. Selecionar o que é social e humanamente relevante, nunca descurando a empregabilidade social dos saberes. Implicar os educandos na procura dos problemas e das soluções, organizando situações didáticas de participação, de pesquisa, de debate, de produção de conhecimento que ilumine a ação. Diversificar e contrastar as fontes de informação, escrutinar a fiabilidade, perceber a verdade e a falsidade. Multiplicar os canais de comunicação, os sistemas de entreajuda e complementaridade. Clarificar as metas ou os objetivos a alcançar e os caminhos e recursos que poderão sustentar um trabalho progressivamente mais competente, responsável e autónomo. Clarificar ab initio os critérios, os instrumentos e os procedimentos de avaliação, as condições de êxito e inêxito, as regras do jogo avaliativo. Valorizar a função reguladora, emancipadora e democrática da avaliação que deve ser muito mais importante do que a função classificativa/certificativa. Reconhecer e valorizar as inteligências múltiplas e saber que o sucesso tem de ser conjugado no plural, porque não há um, mas vários sucessos e a escola tem de os ver, reconhecer e valorizar. Criar e adotar múltiplos instrumentos de avaliação, relegando o teste escrito (os dois por período) para um secundaríssimo plano. Exercer a autoridade no seu sentido pleno e original de fazer crescer o outro em responsabilidade e autonomia. Dispensar a ameaça que inibe e o medo que paralisa procurando fundar uma comunidade exigente e solidária.

Também por estas razões, este é, como disse Bourdieu, o primeiro de todos os ofícios: o mais exigente, o mais necessário, o mais sensível, o mais delicado, o mais difícil. Um ofício que deveria merecer um outro suporte social e político, um outro olhar, um outro reconhecimento. A esperança e a confiança passam, necessariamente, por aqui.

José Matias Alves
Fonte: Público

domingo, 4 de outubro de 2020

O pintor e o 5 de Outubro


Sexta-feira passada tive uma interessante conversa com um jovem pintor, julgo não ter mais de trinta anos. Estava a aplicar massa fina em uma parede quando o abordei. Meu caro, aí está uma coisa que eu gostaria de saber fazer. Ripostou, com um suave sorriso: "está sempre a tempo de aprender. É começar a fazer até dar certo". Respondi: Já experimentei, e em linguagem de pintor, porque vos oiço dizer: "embexigou"! Não tive outro remédio senão chamar um pintor. Repetisse, disse-me. Fiz umas fotos e, já próximo das seis da tarde, olhou-me e disparou: "Segunda é feriado". Pois é, respondi. E o senhor sabe a razão por que é feriado? Resposta rápida: "só sei que o calendário diz que é feriado e mai nada". Aproveitei e, sumariamente, expliquei-lhe o fundamental: certamente que sabe (!) que vivíamos em uma monarquia. Em 1910, no dia 05 de Outubro, uma vitoriosa Revolução tornou possível a passagem da Monarquia para a República. O senhor ouviu isso na escola, não é verdade? Ah senhor, eram tantas coisas que eu já esqueci quase tudo, atirou. E continuou: olhe, nem você sabe dar massa nem eu sabia a razão do feriado. Sei é que vou descansar!



Diálogo interessante, até com alguma pitada de humor, mas que me deixou a pensar em tantos aspectos da política educativa. No fundo, o que ele me quis dizer é que cada um tem um certo grau de iliteracia ou de incompetências. Neste caso, eu na aplicação de massas e ele em cultura geral. O meu interlocutor não disse, abertamente, é verdade, mas ficou claro um "estamos quites"!

Mas isto leva-me a um outro pensamento: que diacho, para quê tantos manuais, tantas disciplinas, tanta memorização, tantos testes de avaliação, tantas folhas de excel com tantas percentagens de "avaliação subjectiva", para isto e para aquilo, tantos relatórios e tantas reuniões, se, no final, muito é destinado ao esquecimento e quase nula é a relação com a vida real? E a vida real constrói-se, a partir das primeiras idades, em uma base cultural e com experiências práticas que possibilitem, de forma transversal a aquisição de competências mínimas mas sólidas. Não tem nada a ver com o pintor, mas, por analogia, eu diria que os alunos têm de "meter a mão na massa". Porque a vida é isso e a aprendizagem básica deve servir a cognição, o despertar da curiosidade, a cultura, mas também, o saber fazer que pode despertar interesses e vocações. Em todos os campos. 

Disse o Professor Miguel Santos Guerra, Catedrático na Universidade de Málaga, em uma entrevista à revista A Página da Educação, referindo-se à pobreza, em sentido lato e restrito: "(...) Há aqui um problema - a Escola está separada da vida, está distante dos problemas da realidade. Eu vejo aí um problema: os livros, os conhecimentos inertes que, por vezes, não têm que ver com a realidade. A Escola não pode permanecer separada dos problemas da vida, porque a Escola é para a vida. Há um artigo que conta a história de uma professora de Biologia que pergunta a uma adolescente quantas patas tem um artrópode. E a adolescente, suspirando, diz-lhe: ai senhorita, quem me dera ter os problemas que a senhora tem (...) Para mim, para a minha vida, isso das patas dos artrópodes, o que significa? A Escola tem de ser uma escola de vida e para a vida". Digo eu, é por estas e por outras, que muitos, de facto, todos os dias entram na escola, a escola é que não entra neles! E assim se dá o afastamento e o insucesso.


Ora, a escola básica vista pela ângulo da cultura não trata os alunos como objectos, mas como sujeitos. Infelizmente, grosso modo, o sistema trata-os como objectos, como inertes, como "coisas" submetidas a uma certa tirania curricular, programática e "pedagógica", porque não lê os sinais da vida real, tampouco se deixa fecundar pelo conhecimento trazido por pensadores de vários sectores e áreas. Tenho presente o Filósofo francês Merleau-Ponty (1908/1961): "o meu corpo é o centro do mundo; tomo consciência deste através dele". Ora, sistema que não se cruze com todos os outros, porque se fecha na sua torre de marfim, melhor, na cerca do espaço escolar, que não interage, obviamente que não permite a interiorização de uma cultura geral essencial, duradoura e consistente, como não permite as experiências com importantes efeitos na descoberta da vida real. Levado ao extremo, nem o pintor, lamentavelmente, conhece o fundamento histórico do 5 de Outubro, nem eu sou capaz de pegar em uma espátula e aplicar massa. 

O sistema preocupa-se, quase exclusivamente, com a memorização, com o teste, com o resultado e com uma saloia meritocracia, quando o saber é muito mais do que isso. Ler e repetir para logo esquecer está nos antípodas do que deve ser uma aprendizagem com alicerce poderoso, onde se encaixam os pilares de novos conhecimentos, pela força interior e pela responsabilidade de ser curioso. 

O dia 5 de Outubro é Dia do Professor, mas também Dia das Aves. Professores do meu País, deixem os vossos alunos voar, não os prendam na gaiola!

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Dia do Professor


Pouco ligo à data. Dia 5 é o "nosso" dia. Pois, e daí? Alguma coisa se altera, por mais enternecedores que sejam os discursos? Que os professores são peças fundamentais na estrutura e no progresso da sociedade, todos o sabem; que para aquilo que fazem a esmagadora maioria tem salários não proporcionais à sua responsabilidade, não tem discussão por tão óbvio que é; que penam para subir de escalão, constitui uma outra verdade corriqueira; que são subtilmente ofendidos e até perseguidos pelos mais diversos canais, muitos factos provam-no; que estão envolvidos em uma burocracia sem sentido, imposta por burocratas que justificam os seus lugares infernizando a vida dos outros, é coisa que de tão badalado já não tem como dela falar. Portanto, o "nosso" dia deveria sê-lo, lá vou eu para um lugar comum, todos os dias, porém com outros conteúdos.



O dia que todos os que, com paixão, abraçaram esta profissão, deveria caracterizar-se pela luta, frontal, obstinada (e com ciência), por um sistema educativo que rompesse com a ignorância altifalante de hierarquias politicamente impreparadas; por uma luta pelo conhecimento onde o manual não fosse a bíblia do professor; onde o conceito de aula, de turma e de ciclo fossem postos em causa, em debate sério, no quadro de um processo de aprendizagem transversal, consistente e enquadrado com a vida; onde os estabelecimentos de aprendizagem (não de ensino) gozassem de verdadeira autonomia para desenvolverem os seus projectos não segmentados por disciplinas; esse dia deveria ser de luta, repito, por uma escola onde a avaliação não conduzisse à estupidificação castradora e limitadora de sonhos e de interesses individuais; de luta, ainda, por uma escola com limitado número de alunos, onde os professores deixassem de ser fundamentalmente transmissores para passarem a ser mediadores de processos. Tanto que há a fazer por uma escola onde professores e alunos sejam felizes com substanciais ganhos para o País!

Mas não, por todo o lado repetir-se-ão as cenas de enaltecimento da importância dos docentes, todavia, prenhes de palavras inconsequentes. No dia 6 tudo continuará na enervante rotina, até nos cochichos de corredor ou nos intervalos, nos murmúrios que apenas acrescentam angústia e até síndromes depressivos. O caminho não é esse. Se existe um dia para expressar o descontentamento propositivo, então, esse dia 5 terá de tocar na ferida. Onde dói torna-se necessário meter o dedo nas feridas abertas que provocarão uma dor maior em quem tem o dever de reflectir e de não obstaculizar a mudança de paradigma. De resto, há outros dias e momentos para debater, nos locais próprios, a revisão das tabelas salariais, reivindicar direitos perdidos ou para colocar em causa diplomas, portarias e repetidas circulares. 

O 5 de Outubro marca uma Revolução. Há 110 anos o povo disse não à Monarquia Constitucional e implantou a República. Na Educação, Portugal precisa de uma Revolução na forma de interpretar a aprendizagem consequente, de resposta a um mundo todos os dias surpreendente e que, há muito, não se coaduna com as regras do passado. Recordo o que, recentemente, destacou o Engenheiro Carlos Moedas, ex-Comissário Europeu: "(...) O que é importante não é a inovação, mas o inovador. As políticas públicas que hoje, mais do que nunca, precisamos, é termos uma reforma profunda do sistema educacional (...) o papel do professor será sobretudo de tutor, de ajudar a resolver problemas (...) será necessário fazer uma aposta nas qualificações que cruzem o mundo físico e o digital (...) os que conseguirem navegar melhor nestas duas realidades serão os melhores profissionais". Ora bem, continuar a martelar nas lógicas do passado, é como querer meter o amanhã nos cubículos de ontem. Arrepia-me esta tendência para confinar o aluno à sala de aula, quando hoje a sala é o planeta. Não faz sentido e, por isso mesmo, constitui um grosseiro erro estratégico a fuga ao difícil (o novo é sempre complexo) para manter, de forma fácil, um razoável, previsível e "infeliz conforto" do dia-a-dia.  

Recordo o que escreveu o aluno de Economia João Maria Guimarães, em um texto publicado no Observador e que aqui transcrevi no dia 24 de Setembro último: “(...) Educar não é encher vasos, mas atear fogos” dizia Montaigne. Vamos parar de castrar esta atividade tão nobre que é o ensino, limitando-o a uma simples preparação mecânica do exame, e levá-la a uma abertura do espírito. Libertar o sistema desta forma de acesso era libertá-lo do exame e assim desta pressão da mecanização e memorização gratuita. Sejamos ousados, sejamos piromaníacos!"

Neste 5 de Outubro partamos, então, para a revolução que deponha o velho, caduco, inoperante e desgastante, por um sistema aberto, permanentemente crítico, de qualidade e feliz, que não mate a curiosidade e o sonho. Senhoras e Senhores Professores, deixem de "dar aulas". 

Ilustração: Google Imagens.