sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Eleições à vista e o leilão de propostas


FACTO

"No próximo mandato, se o PSD ganhar as eleições, as mensalidades no pré-escolar serão reduzidas em 40% (...)" - excerto de uma peça jornalística publicada na edição de ontem do DN-Madeira.

COMENTÁRIO


As legislativas regionais da Madeira de 2019, entre os dezassete partidos concorrentes, estão a ser fertéis em promessas, uns mais do que outros, com centenas de propostas para os próximos quatro anos. E nisto há qualquer coisa de leilão, onde o eleitor é convidado a sentar-se na plateia a ver "quem dá mais". Sempre foi assim, mas hoje, parece-me evidente, assiste-se a um abrir a boca e deixar sair, o que denuncia uma contínua fome de poder ou, apenas, de acesso a um poderzito! Grosso modo, não propõem aquilo que tem natureza estrutural e que poderia alterar, substancialmente, a prazo, a capacidade de resposta das famílias às diversas necessidades, sobretudo a maioria, antes prefere alimentar a ideia que abrirá os cordões à bolsa para distribuição de algumas migalhas do orçamento. A parte de leão, sendo outra a conversa, sabe-se para onde irá! 
Ora bem, são dois aspectos aparentemente distintos: o valor das mensalidades e a política de acção social educativa. Todavia, são, claramente, convergentes. Mas isso conduziria a uma análise mais fina e profunda. Quero ficar por esta proposta, não de 10, não de 20, não de 30, mas de 40% inferior nas tabelas em vigor! É leilão. Só falta acrescentar se "comprar a proposta" ainda leva mais... isto ou aquilo!
Trago aqui um texto que publiquei a 06 de Setembro de 2008, há onze anos (!). Nessa data, no tempo de uma maioria absolutíssima, o DN-Madeira publicou um comunicado da minha autoria, no qual era salientado que a "Acção Social Educativa" era "manifestamente indecorosa" (...) que o governo se mostrava cego à realidade económica e social, preferindo distribuir umas migalhas aos pobres e excluídos (...). Que o governo apostava na "obra física", em estádios e outros, naquilo que não é social e objectivamente relevante, deixando de lado a "obra educativa" que é a base do futuro da Região, pelo que, salientei, a (...) existência de muita miséria escondida ou disfarçada que condiciona o sucesso escolar. Referi, ainda, que no meio de uma aparente vitalidade e bem-estar que os mais distraídos podem ser levados a percepcionar nos pátios das escolas, existe muita carência a todos os níveis. O telemóvel e o vestuário que trazem no corpo nada significam em relação ao mundo de carências afectivas, económicas, sociais e culturais que transportam (...)". Curiosamente, ou talvez não, quer na Assembleia, quer publicamente, este tipo de preocupações não teve qualquer eco. Na Assembleia as propostas foram completamente bombardeadas. Mais. Passados quatro anos (2012), o secretário regional da Educação da altura, afirmou, naquele período de significativos constranfimentos financeiros resultantes da crise, que o apoio era "suficiente". Agora, leio que, se o actual partido no poder obtiver uma "maioria confortável" de deputados, operacionalizará uma redução de 40% nas mensalidades. Não assume que sendo a EDUCAÇÃO uma preocupação pública (Constituição da República), irá reforçar este sector; não fala sobre a dupla tributação a que muitas famílias estão sujeitas, pagando em sede de IRS (justiça fiscal) e, depois, na acessibilidade aos estabelecimentos de aprendizagem; não quantifica o acréscimo das transferências para o sector privado, embora o sistema seja prioritariamente público; e não esclarece se esses 40% irão ou não repercutir-se em uma futura Portaria da Acção Social Educativa. A tal que considerei (2008) e considero "indecorosa".
Ora, o problema é muito mais vasto do que este leilão face à qual o exercício da política se transformou. Há onze anos defendi "o princípio de políticas integradas, a necessidade de um novo olhar para a estrutura familiar, para o modelo económico vigente, para o acesso, segurança e contrapartidas no trabalho, para a exigente educação dos valores e respectiva co-responsabilização no projecto educativo de longo prazo, para o rigor e disciplina que devem nortear as condutas gerais e específicas (...) e que todos deverão estar em pé de igualdade no tiro de partida para a vida (...). Sublinhei que as crianças e jovens não têm culpa do seio familiar onde nascem (...) pelo que a acessibilidade e a acção social educativa, mais do que um apoio à família, constitui um apoio directo no enquadramento formativo da criança e do jovem". Escrevi que "o Governo estava resignado a ver crianças e jovens a viverem da esmola e da caridade". Exemplo disso, "as 73 instituições de solidariedade social espalhadas pela Região que constituem a prova dos constrangimentos familiares que urge combater". 
Passados onze anos, em momento de aflição, o leilão das propostas leva-os a falar de 40% na redução dos valores das mensalidades. Não é difícil compreender as razões.
Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Uma reflexão e dois vídeos


Uns vendem formação, outros tecnologia. Ambos, obviamente conluiados, dizem o melhor um do outro. Ambos ganham e ambos faltam à verdade sobre as alternativas no quadro das aprendizagens. No meio disto, uma terceira figura, aproveita-se e tenta demonstrar ao povinho que o sistema está na vanguarda do que melhor se faz. Em síntese, todos enganam com a sua verdade. 

Pouco importados estão com a sociedade e com o futuro, com a estrutura organizacional dos estabelecimentos de aprendizagem, com as questões curriculares, programáticas e até sociais.
Uns metem os manuais no digital, porque precisam de vender; outros vendem a tecnologia porque precisam de ganhar. E os espertos da selva, em parceria, formam os professores. Sabem que está tudo na net e que o problema é outro, mais profundo e transversal, mas é mais fácil fazer passar a ideia política de grandes mudanças em direcção ao sucesso. No fundo, continuará tudo na mesma, qual pescadinha de rabo na boca. E o político, que apenas pensa na eleição seguinte, diferente do estadista que coloca os olhos na geração seguinte, vai dando para o regabofe da propaganda inútil. 
Leiam, por favor, leiam livros, revistas e tenham a coragem de abanar o sistema, sem fazer espuma ou vender fumo. Façam do sector educativo uma grande mesa de diálogo, procurem as instituições que investigam, lancem mão aos homens e mulheres de ciência, saiam da terreola e vão por aí fora ver como se faz em países de referência, em vez de aconselharem aos outros a saírem da tal "zona de  conforto", digo eu, saiam dos "empoeirados" gabinetes que não permitem ver o mundo e depois apareçam com a cabeça arejada e com projectos consistentes. 
Deixo aqui dois vídeos, curiosamente, brasileiros, que se completam. O primeiro com o Professor Tião Rocha; outro sobre "tecnologias educacionais".  

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Escola e Família


É normal ouvirmos que a educação vem de casa. À escola pede-se a "instrução".  Em síntese, à família compete desenvolver as faculdades inerentes ao ser humano e à escola espera-se que faculte o conhecimento. Como sublinhou o meu ex-Professor Albano Estrela em um seu artigo: "(...) Mais incisivamente, escreveu Gandhi: "na minha opinião, a educação consiste em extrair globalmente da criança e do homem tudo o que têm de melhor, quer se trate do corpo, da inteligência ou do espírito. Saber ler e escrever não é o fim da educação (...). Este conhecimento é um dos meios que permitem educar a criança, mas não deve ser confundido com a própria educação" (...) "a educação é o fim (enquanto) a instrução não é mais que um dos meios" - Dupanloup.


Nesse artigo, a propósito de posições diversas e até contraditórias, salienta o Professor: "(...) Repare-se, por exemplo, no que escreveu E. Renan, ao dizer que "a instrução dá-se na aula, no liceu, na escola; a educação recebe-se na casa paterna". Ou ainda, no que referiu E. Faguet ao escrever que "a criança, nas mãos de um professor (...) aceita a instrução instintivamente, com um instinto que talvez não seja mais do que a voz da educação ancestral (...)". Um texto (2012) que vale a pena espreitar.
Ora bem, tenho por assumido, não apenas por leituras mas também pelas vivências da acção docente e da própria vida de relação, que educação e instrução caminham lado a lado. E, neste pressuposto, não há que separar a escola da família ou vice-versa. Talvez, melhor dizendo, professores, pais, avós, tios e outros da comunidade devem assumir a mesma responsabilidade. Diz o provérbio africano que "é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança".
Estou aqui a juntar palavras e conceitos, mas não quero afastar-me do que aqui me traz. O que realmente quero transmitir, como preocupação última, situa-se na responsabilidade da escola constituir-se como espaço determinante na formação global que ultrapasse a simples ou complexa tarefa de transmissão de conhecimentos. No essencial, "se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha". Isto implica, entre outros, dois aspectos: primeiro, há muito que defendo, verdadeiras políticas de família; depois, a reorganização da escola a todos os níveis. 

A montante, sem desvirtuamento das culturas e do respeito pela privacidade das famílias, há políticas que podem ser desenvolvidas subtilmente, no quadro dos comportamentos adequados, do sentido de responsabilidade, do rigor, da disciplina, das inúmeras regras de cidadania, do respeito pelos outros e do sentimento que existem direitos mas também deveres. 
Há uma nova mentalidade a semear. 

A jusante, na escola, mais vale ter presente esse conjunto de princípios e valores do que metralhar com um enciclopedismo sem sentido, destinado a ser debitado no dia das avaliações, para logo ser esquecido. Até, neste aspecto, a escola tem de ser diferente, exigindo-se uma outra postura dos professores e dos auxiliares de acção educativa. 
Um exemplo: a luta iniciada nas escolas na sensibilização pela defesa do ambiente. Paralelamente, junto das populações, a dinamização de políticas, por exemplo, na separação dos lixos. Hoje, são sensíveis os resultados dessa acção que caminhou em sentido convergente com um objectivo. Este exemplo pode ser compaginado a todos os sectores, áreas e domínios da actividade humana. 
Ser cortez tanto deve ser mister da família como da escola; intuir regras de etiqueta tanto é uma responsabilidade da família como da escola; fazer todas as perguntas, como as fazer e obter todas as respostas é uma responsabilidade da escola como da família; saber sentar-se à mesa, utilizar os talheres e pedir licença para sair da mesa, faz parte da família como da escola; saber utilizar a tecnologia, em todas as situações, onde e quando, depende da escola mas também da família; não interromper quando os outros falam, faz parte da escola, mas também da família; ceder o lugar aos mais velhos, grávidas e portadores de alguma deficiência, faz parte da família, mas também da escola; assumir com rigor e determinação todas as tarefas, tanto é da responsabilidade da escola como da família; ser culto, capaz de fazer sínteses de tudo quanto rodeia, faz parte da escola, mas também da família; não ser violento depende da família, mas  também da escola; assumir a disciplina faz parte da família, mas também da escola; entre tantas situações, cumprimentar, ajudar ou estacionar uma viatura não ocupando dois espaços, tanto é da responsabilidade da família como da escola; até o exercício de votar, ter opinião, possuir e demonstrar capacidade de interpretação na vida democrática, em toda a sua extensão, faz parte da escola, mas também da família. Trata-se de um processo combinado e integrado que, a prazo, creio, tornará a vida, a vivência e convivência melhores. 
Leva tempo, muito tempo, é óbvio que sim. Nada disto é possível por decreto, antes é como uma tela, feita, ponto por ponto, pacientemente, até ao resultado final. Consegue-se, por outro lado, dando uma outra atenção aos que vivem nas margens, junto daqueles onde em cada mês falta mais mês. E aí estão cerca de 30% da população. A pobreza impede muita coisa! Começa por aí. O resto, o tal CONHECIMENTO, vem obrigatória, sequencial e naturalmente. Porque tudo se aprende e a escola é vida e não apenas preparação para testes e exames. O que não é razoável é, quarenta anos depois, confrontarmo-nos com situações que explicam bem a desequilibrada sociedade que foi construída.
Ilustração: Google Imagens.

Publicado no blogue
www.gnose.eu

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Os níveis de educação entre os povos da Europa (1ª parte)


Por estatuadesal
Vítor Lima,
in Blog Grazia Tanta, 
18/08/2019

As desigualdades no seio da Europa são muitas e profundas; e Portugal destaca-se pelas piores razões. Muitos anos depois da queda do regime fascista, o atual regime pós-fascista revela-se um digno sucessor, mantendo a tradicional posição do país na cauda da Europa e da Península Ibérica; em termos de escolaridade e muitos outros.



1 - Níveis de escolaridade nos países europeus


Pretendemos aqui, neste ponto, proceder a uma avaliação dos níveis de escolaridade na Europa, comparando os dados fornecidos pelo Eurostat, relativos aos anos 2000 e 2018[1], para a população com 15 a 64 anos.
Esses níveis de escolaridade agregam-se em três grandes grupos:
Ø Níveis 0 a 2 – inferior ao ensino primário, primário e primeiro ciclo do secundárioØ Níveis 3 – 4 – segundo ciclo do ensino secundário e pós-secundário não superiorØ Níveis 5 a 8 – ensino superior
Nesse lapso de tempo, relativamente dilatado, estão subjacentes as diferenças na composição etária da população (maior longevidade e menores taxas de natalidade) e que se revelam também sob a forma de retrocessos populacionais em muitas regiões europeias[2].
Observe-se, para começar, a evolução da representatividade, para os 33 países europeus considerados, da população com 15-64 anos nos diversos graus de escolaridade concluídos.

1.1 - Nível de educação - (0-2) 

Para os níveis mais baixos de escolaridade, a média europeia passa de 30.8 para 25.5% no referido lapso de dezoito anos.
· Não se verifica um único caso de retrocesso, de aumento do segmento populacional com as mais baixas qualificações;
· Em 2000 ou 2018, Portugal surge com os indicadores mais negativos do conjunto com valores de 67.3% e 49.8%, respetivamente; e regista, também a maior redução da representatividade desta população. Que impacto terá tido o programa Novas Oportunidades? No alargamento e aprofundamento de conhecimentos, certamente; e no capítulo da melhoria de rendimentos ligada a uma passagem a trabalho mais qualificado?
· Os indicadores mais elevados, depois de Portugal, recaem em Malta, Espanha, Itália, nos dois anos objeto de comparação;
· As maiores quebras na população com este nível de escolaridade, observam-se em Portugal, Malta e Islândia e são muito mais modestos em Itália e Espanha, a despeito da grande representatividade desta população. É de presumir que essas quebras se devam bastante à mortalidade entre os mais velhos no ano 2000.· Em qualquer dos anos considerados, os indicadores mais baixos de população menos qualificada pertencem todos a países que pertenceram ao chamado Bloco de Leste, que não os balcânicos e a Hungria - Rep. Checa (14.4 e 12.1% em 2000 e 2018, respetivamente), Eslováquia (16.3 e 14.4%), Lituânia (17.1 e 11.7%) ou Polónia (18.0 e 13.5%)…
· Os casos de menor variação registam-se no Luxemburgo (-1.3%) Alemanha e Estónia (-1.4%) e Noruega (-1.8%). 

População 15/64 anos - Nível de educação (0-2) (% do total) 

1.2 - Nível de educação - (3-4)

Para os níveis intermédios de escolaridade, a variação do seu peso na população com 15-64 anos e entre os dois anos considerados revela uma grande estabilidade - de 46.5 para 45.8% do total.
· Os países europeus repartem-se em dois grupos de idêntica dimensão; um em que a parcela de pessoas incluídas neste conjunto de níveis de instrução aumentou e outro em que os indicadores se reduziram;
· No grupo dos países onde a parcela destas habilitações intermédias baixou, contam-se alguns dos países mais ricos da Europa ou países do Leste, onde, na sua grande maioria aquela parcela é superior ao indicador para toda a UE;
· Por outro lado, as subidas mais acentuadas do peso de pessoas com estes níveis de habilitação (3-4) observam-se em países onde a diferença face à média europeia era mais elevada – Portugal e Malta, nomeadamente – em 2000 como em 2018;
· No caso de aumentos de peso relativo de indivíduos com este perfil de escolaridade, evidenciam-se aqueles onde os indicadores cresceram no período, mesmo já estando superiores à média global em 2000 – Croácia, Roménia, Sérvia ou Macedónia do Norte. Registaram subidas menos relevantes, mesmo com indicadores inferiores à média da UE, nomeadamente Espanha, Irlanda, Islândia, Bélgica, Chipre, Holanda e Dinamarca;
· Em 2010 como em 2018, este tipo de população tem maior representatividade na Rep. Checa, na Eslováquia e na Polónia; sublinham-se ainda as subidas na Roménia e na Sérvia bem como as descidas na Áustria e na Eslovénia;
· Sublinha-se ainda que Portugal, entre todos os países, tinha o indicador mais baixo em 2000, logo atrás de Espanha, uma situação que se mostra invertida em 2018; e isso, porque a representatividade das menores habilitações (0-2) era enorme. 

População 15/64 anos - Nível de educação (3-4) (% do total)

1.3 - Nível de educação - (5-8) 

O desenvolvimento de novas necessidades ou a difusão de outras recentemente induzidas faz-se em interação com o surgimento de novas tecnologias, novos bens e serviços, exigindo competências, tendencialmente mais exigentes de conhecimentos em quantidade e diversidade, do que os anteriores. Nesse contexto, uma vez que todos somos à partida utilizadores/consumidores e simultaneamente produtores, o processo de aquisição de conhecimentos tanto se coloca a quem apenas quer usufruir um aparelho, um som, uma imagem, um itinerário, uma relação com o seu exterior; como aquele que está envolvido na criação ou desenvolvimento de algo para futura colocação no chamado mercado ou, mais simplesmene algo que melhore a qualidade de vida do próprio e dos seus próximos.
Em toda essa panóplia de situações, em constante diversificação, quantitativa ou qualitativa há, historicamente, a necessidade de geração, difusão e recolha de informação; e o preenchimento dessa necessidade exige conhecimentos a montante como na aplicação final; conhecimentos esses em permanente atualização, através da intereação entre inovação e obsolescência. 
Desse processo contínuo e muito complexo resulta o acréscimo e atualização de conhecimentos a disponibilizar, como da agilidade mental para a sua recepção por parte dos destinatários, sejam consumidores ou produtores de bens intermédios, finais ou de meros símbolos, representativos de conhecimento. Em suma, as sociedades vão construindo novas necessidades e novas tecnologias, abandonando outras, frutuosas num passado mais ou menos recente; e daí que a parcela de camadas sociais mais instruidas cresça, tendencialmente, enquanto se afastam outras camadas, ligadas a conhecimentos entretanto tomados como ultrapassados, pertencentes a outros paradigmas de produção de bens e serviços.
Vejamos, em seguida, o padrão da população com os mais elevados graus de qualificação (5-8) para os países europeus, em 2000 e 2018; 
· Se não se observou para os níveis de escolaridade mais baixos (0-2) nenhum caso de aumento da sua posição relativa no conjunto da população, para os níveis mais elevados de escolaridade, pelo contrário, não se apresenta nenhuma situação de redução do peso relativo. Desta compensação resulta uma relativa estagnação do peso do nível de instrução intermédio (3-4) para a grande maioria dos países, sendo o caso de maior variação positiva o de Portugal, apresentando a Áustria o maior decrescimento do peso relativo daquela faixa de população; 
· Em 2000, Portugal somente tinha três países onde o peso da população mais escolarizada era inferior ao seu (13.9%) – Macedónia do Norte (13.3%), Itália (13%) e Roménia (11.9%). Em 2018, a população portuguesa com habilitações enquadradas nos níveis (5-8) passa para 22.5%, mantendo-se à frente dos três países atrás referidos e com uma distância acrescida, juntando-se àqueles, a Croácia, a Eslováquia, a Hungria, a República Checa e a Sérvia. No capítulo da Europa Ocidental, porém, Portugal continua a ter o pior indicador – apesar da melhoria – depois da Itália.
· Entre os países com mais elevadas parcelas de população com os maiores níveis de escolaridade destacam-se, em cada um dos anos em apreço, a Irlanda (31.6% em 2000 e 40.5% em 2018), Chipre (32.1 e 39.4%) e a Grã-Bretanha (31.6 e 39.3%). 
· Os casos de menor incremento da população com os mais elevados níveis de escolaridade (em pontos percentuais) observam-se na Alemanha (2.5), Roménia (3.6 e Itália (4.6). Inversamente, os maiores aumentos da representatividade de gente com estes níveis de escolaridade observam-se na Áustria (13.9), Islândia (10.2) e Malta (10).

População 15/64 anos - Nível de educação (5-8) (% do total)

2 - Abordagem circunscrita à Península Ibérica e suas regiões

Segundo uma publicação do INE dedicada ao 40º aniversário do 25 de Abril, em 1970 o analfabetismo total, em Portugal atingia 19.7% da população masculina e 31% das mulheres; e, esses valores subiam para 47% e 64.6% respetivamente, para pessoas de cada um dos sexos, com 65 ou mais anos.
Em 2011, o analfabetismo global era apenas de 3.5% mas, no capítulo da população com mais de 65 anos ainda atingia 12.6% dos homens e 24.5% das mulheres. Se se considerar que quem tinha mais de 65 anos em 2011, tinha, em 1970 cerca de 25 anos ou, 35 anos se em 2011 tivesse 75 anos, sobressai que muitos adultos jovens, com 25/35 anos em 1970 não foram beneficiados por qualquer esforço de elevação dos seus níveis de escolaridade, depois da queda do fascismo. Recorde-se que há poucos anos, os patrões, em Portugal tinham habilitações inferiores às dos trabalhadores (esses dados, entretanto… deixaram de ser calculados ou divulgados); pelo que não constituíam elemento motor da melhoria das qualificações dos seus subordinados.
Ainda de acordo com aquela publicação, a parcela da população a frequentar o ensino superior era de 4.2% em 1970 (com preponderância masculina observada naquele ano, como no recenseamento de 1981, a partir do qual se consolida um muito maior frequência de mulheres) e de 47.2% em 2011. Ficam-nos, no entanto, dúvidas quanto à valia da formação superior em geral, tendo em conta a forma ligeira como o regime pós-fascista favoreceu o surgimento de universidades privadas, muitas das quais desapareceram envolvidas em burlas – Independente, Moderna, Internacional, havendo outras que continuam a existir, como por exemplo, a Fernando Pessoa; e, entre as muitas existentes, preponderam instituições de venda de diplomas a quem pagar propinas, para além de cursos de qualidade duvidosa (equivalências falseadas, ou docentes pouco qualificados, provenientes da classe política). Daí resultou, desde meados da década passada, uma redução do número de estabelecimentos, docentes, alunos e diplomados.
Vamos proceder em seguida a uma abordagem das variações da representatividade dos três níveis de escolaridade (descritos no ponto 1.) no âmbito da Península Ibérica, entre 2000 e 2018, para cada uma das regiões ou autonomias e contemplando a população com 25-64 anos.

2.1 - Nível de educação - (0-2) 

Para os níveis 0-2 de escolaridade em 2000 (ver mapa I), verifica-se que em Espanha predominam, na maioria do território, níveis de 60-80% da população com aquele baixo nível de instrução. Em Portugal, a situação é mais gravosa uma vez que todo o território, exceptuando a Área Metropolitana de Lisboa, se pauta por indicadores superiores a 80%.
Em Espanha todas as autonomias do Norte, entre a Cantábria e a Catalunha e ainda a Comunidade de Madrid apresentam os indicadores menos desfavoráveis, com indicadores de 40-60% da população com 25-64 anos com este nível de instrução (0-2); um plano em que se inscreve também a Área Metropolitana de Lisboa.

mapa I 

Em suma, desenham-se, grosso modo, três zonas distintas para a distribuição geográfica da população com os níveis 0-2 de instrução:
· Uma, constituída por Comunidades do estado espanhol, em torno da fronteira francesa a que se junta Madrid e a região de Lisboa, com valores distribuídos no intervalo 40-60% da população;
· Uma segunda que ocupa o restante território continental do estado espanhol, bem como os arquipélagos, com indicadores entre 60-80% das populações respetivas;
· E uma terceira área constituída pelo território português, excluída a Área Metropolitana de Lisboa e, na qual este nível de escolaridade abrange mais de 80% da população. 
Finalmente, sublinha-se que o indicador relativo a Portugal está muito próximo do atingido por Malta que é o país europeu com o valor mais desfavorável. Por seu turno, Espanha e Portugal apresentam valores muito acima da situação apresentada pela República Checa que é o caso mais notório de um baixo índice de dimensão da população menos qualificada. 
O mapa II explicita o relevo da população com os níveis 0-2 de instrução, dezoito anos depois do anterior.
O perfil que carateriza a maior parte do território ibérico é aquele em o nível mais baixo de escolaridade corresponde a 40-60% da população com 25-64 anos; 
Isso é válido para todo o sul do estado espanhol incluindo os arquipélagos e, engloba ainda toda a costa ocidental da Península excluindo a Área Metropolitana de Lisboa;
Destaque-se que o País Basco e a Comunidade de Madrid são as regiões onde um perfil educativo de nível 0-2 é, claramente inferior ao que foi observado para o resto do território peninsular
Em termos negativos registe-se que os Açores são a única região onde a população com este nível de instrução corresponde a 60-80% do total;

mapa II

Os indicadores globais, para Espanha e Portugal tornaram-se menos distanciados do que em 2000. Porém, isso não evita que o perfil observado para Portugal, no capítulo deste tipo de habilitações (níveis 0-2), seja o mais elevado (desfavorável) da Europa, correspondendo a 50.2% da população com 25-64 anos; sobretudo quando se observa que a Lituânia apresenta um indicador de 5.2%, o mais baixo da Europa.

2.2 - Nível de educação - (3-4) 

Na evolução normal das sociedades, a substituição das gerações é acompanhada de um enriquecimento curricular dos mais novos que vão ganhando um maior peso demográfico à medida que os mais velhos, em média, menos qualificados, vão morrendo. Assim, é natural que haja no período em apreço – 2000-2018 – uma redução relativa dos menos qualificados, por morte ou por ascensão do perfil educativo, com a transição para os níveis intermédios ou superiores; como é natural a passagem de pessoas dos perfis intermédios para os superiores. Assim, no âmbito dos três grupos de perfis considerados, o primeiro (0-2) é marcado pela morte ou pela estagnação curricular dos mais velhos, já sem virtualidades de ascensão ou, pela transição dos mais jovens para os níveis superiores, uma vez que não terá cabimento a chegada de elementos vindos dos níveis superiores de escolaridade. E o mesmo sucede com os níveis mais elevados, nos quais a regressão de habilitações não tem significado.
Assim, o conjunto dos níveis intermédios de escolaridade é objeto de um fluxo de entrada de gente que transitou dos níveis inferiores; e de um fluxo de saída para os níveis superiores de escolaridade. A resultante dessas movimentações é pois, uma realidade que permite aumentos, diminuições ou estagnação do peso desse conjunto de perfis educacionais intermédios, de acordo com a dinâmica social; o que não acontece entre os níveis mais baixos (0-2) com uma tendência regressiva generalizada em todos os países europeus (ver gráfico 1), como não sucede nos perfis mais elevados de escolaridade (5-8) para os quais as suas variações são no sentido de reforço do peso específico daqueles perfis (ver gráfico 3). 
Concretamente, no quadro peninsular, denota-se em 2000 uma situação uniforme para todo o estado espanhol de uma representatividade de 10-20% no conjunto da população com 25/64 anos. Essa realidade é extensiva à Área Metropolitana de Lisboa mas, no restante território português este perfil educativo não chega aos 10% da população. 
Note-se ainda que Portugal tem o indicador mais baixo da Europa, embora o referente à totalidade de Espanha não esteja muito afastado, ainda que superior. Em ambos os estados peninsulares evidencia-se um forte contraste face à Rep. Checa onde a representatividade da população com este perfil educativo é francamente superior. 

mapa III 

O mapa IV referente à situação em 2018 revela a continuidade face a 2000 do perfil observado para a Extremadura, Múrcia e Ceuta (10-20%); nesse plano situam-se também os Açores mas, evoluindo favoravelmente face ao seu perfil em 2000.
Todo o restante território da Península mostra um aumento da representatividade da população com a escolaridade ancorada nos níveis 3-4. Porém enquanto na grande maioria das autonomias espanholas a representatividade deste perfil educativo passa de 10-20% para 20-30%, em Portugal a evolução é mais dinâmica, passando todo o território – excepto os Açores, como se disse – de um nível de inferior a 10% para o plano dos 20-30%, dominante na Península.
O dinamismo observado no perfil educativo 3-4 para o caso português fez com que o indicador global para Portugal tenha superado o espanhol em 2018 (24.8% contra 22.9%); uma situação inversa à verificada em 2000, como atrás se referiu.
Assim, a Espanha passou a deter o indicador mais baixo da Europa, cerca de três vezes inferior ao apresentado pela Rep. Checa que detém o valor mais elevado, quer em 2018, como em 2000.

mapa IV

2.3 - Nível de educação - (5-8)

Em 2000, no conjunto do território português, a parcela de gente com este nível educativo era de 8.8% contra 22.7% no estado espanhol, o que se traduzia num grande diferencial; num contexto europeu os indicadores peninsulares balizavam-se então, entre 5.4% em Malta e 42.4% na Lituânia.
Em Espanha, o padrão mais satisfatório observava-se no País Basco e na Comunidade de Madrid, abrangendo 30-40% da população com 25-64 anos. Num patamar abaixo - 20-30% - enquadravam-se, grosso modo as autonomias do norte e do leste (mapa V), excluindo a Galiza e o País Basco, com perfis distintos.
Com valores ainda mais baixos, 10-20% situavam-se, Extremadura, Andaluzia, Castela-La Mancha, Galiza e os dois arquipélagos – Canárias e Baleares; e ainda a Área Metropolitana de Lisboa, a mais dotada das regiões portuguesas.
Abaixo dos 10% de população com formação superior, colocava-se em 2000 todo o restante território português, com um padrão muito inferior à maioria das autonomias espanholas.

mapa V

Quando se procede a uma comparação com a situação em 2018 (mapa VI) é evidente um generalizado aumento da população com formação superior face a 2000, naturalmente mais acentuado nos espaços em que a sua parcela era mais baixa. Assim, mesmo o país com menor parcela de gente com formação superior (Roménia, 17.8%) revela um indicador mais de três vezes superior ao de Malta, o país com o valor mais baixo em 2000. Quanto ao valor mais alto no plano europeu em 2018 (Irlanda, 46.9% da população), a sua diferença face a 2000 não é particularmente impressiva.
No território português, em geral verifica-se uma subida de dois níveis; do indicador mais baixo (< 10%) em 2000 para o dos 20-30% em 2018 ou, no caso da Área Metropolitana de Lisboa, do patamar dos 10-20% para o dos 30-40%.
Os Açores constituem a única região portuguesa com a subida de apenas um escalão; e assim, o arquipélago isola-se com o mais pobre perfil de população com formação superior em toda a Península.
A Área Metropolitana de Lisboa, sendo a região portuguesa com o perfil mais rico de gente mais habilitada (30-40% da população com formação superior) situa-se muito aquém das comunidades do estado espanhol mais munidas de gente com formação superior – Astúrias, Cantábria, País Basco, Navarra, Catalunha e Comunidade de Madrid, todas com indicadores no intervalo 60-80% da população com 25/64 anos, em 2018.
O território português, exceptuando a região de Lisboa e os Açores, apresenta um indicador de 20-30% de população com formação superior que só encontra um paralelo em Espanha na Extremadura, Castela-La Mancha, nas Canárias e nas Baleares; todas as outras, onde se concentra a grande maioria da população do estado espanhol têm perfis mais qualificados.

mapa VI

Em breve publicaremos a 2ª parte sobre as taxas de abandono e as dificuldades de aprendizagem.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Aqui quem manda sou eu. Os jogadores valem zero!


Conheci todos os secretários regionais da Educação desde 1976. Nos diversos períodos, inclusive, nos tempos complexos da negociação da regionalização, decorrente da Autonomia, todos quiseram deixar a sua marca. Ainda bem, porque isso significou alguma coisa como semente. E algumas brotaram. De qualquer forma, globalmente, não foi uma sementeira estruturalmente consistente, mas não nego, ao tempo, algumas acertadas decisões. Hoje, a Região está a pagar a ausência de visão e de ambição. Ora bem, eu escrevi, todos? Corrijo, menos um, o actual. Deste mandato nada fica como pensamento e actos portadores de futuro. A Educação viveu estes últimos quatro anos sob um penoso culto de personalidade, na manutenção de uma repetitiva estrutura organizacional, de uma tendência para a meritocracia balofa e ignorante, viveu em aceleração constante da burocracia e omnipresença e sobreviveu porque introduziu, subtilmente, o medo junto da classe docente. Aquilo que parecia se esbater, pelo contrário, acentuou-se. Hoje, quase não existe classe docente. Foi desintegrada, matando toda e qualquer iniciativa inovadora nascida de baixo para cima, perseguindo e, como aviso à navegação, esmagando a autonomia da escola do Curral, suspendendo o seu director por seis meses e sem salário. A história é sobejamente conhecida. Se existe uma marca, extremamente negativa, é essa, a da ausência de diálogo, movida pelo ciúme, mais ou menos ao jeito de Jorge Jesus no decorrer de uma conferência de imprensa: "aqui quem manda sou eu. Os jogadores valem zero".

Confusão no Sistema Educativo

Tenho do exercício da política em geral e da governativa em particular, o princípio de um serviço público à comunidade. Quando um governante "joga" contra os outros e não com os outros, presta um mau serviço à comunidade que jurou servir com elevação. Quando um governante se torna um amanuense de serviço ou, mais propriamente, um sinaleiro de papéis, despachando para ali e para acolá, presta um mau serviço à comunidade. Quando um governante não apresenta um sonho, por pouco visionário que seja, não presta um bom serviço à comunidade. Quando um governante vive da propaganda montada, fica, obviamente, em claro défice relativamente ao que os eleitores esperam. Quando um governante mistura, permitam-me, na mesma panela, o sector público com o privado, abrindo os cordões à bolsa em prejuízo do sector público (Constitucional), presta um mau serviço à comunidade, perante a qual "jurou cumprir com lealdade as funções confiadas". Quando um governante se apresenta como um "chefe" e não como um "líder" não gera a necessária confiança.

Quando um governante mantém falinhas mansas, um ar sorridente com professores e sindicatos e diz "lugares comuns" na abertura protocolar de eventos e, logo depois, funciona, na esteira da rubrica de Herman José, como "(...) eu é que sou o presidente da Junta", obviamente que perde toda a credibilidade, porque veste dois fatos incompatíveis aos olhos da comunidade. Quando um governante é motivo de escárnio em determinados blogues, fundamentalmente por anónimos, o que lamento, porque os cidadãos devem ser frontais, pode ser indiciador de pessoas descontentes.

Deste mandato não fica uma ideia estruturada para o futuro. Repetiu o que vinha de trás, juntou uns pós de perlimpimpim, umas tais salas de aula do futuro, uns arremedos de robótica e uns manuais digitais, repido, manuais (!), encerrou estabelecimentos de aprendizagem e fez muita, muita propaganda. Poderia ter avançado com significativas mudanças paradigmáticas no sistema, nos planos organizacional, curricular, programático e pedagógico; poderia ter assumido uma posição frontal contra a lógica dos exames e das aferições, questionando-os no quadro das aprendizagens com rigor e valor; poderia ter assumido uma preocupação central pela descentralização motivando as comunidades educativas para a criação de ambientes de aprendizagem distintivos; poderia ter acabado com as direcções, tipo "duracel", que se eternizam na liderança das escolas, matando outras formas de construção das dinâmicas de aprendizagem; poderia ter iniciado as necessárias alterações arquitectónicas nos edifícios escolares; poderia ter criado experiências-piloto no sentido de alterar os conceitos de turma e de aula; poderia, de forma integrada no governo, desenvolvido políticas para esbater o problema do saldo fisiológico negativo; na mesma linha poderia ter iniciado um combate, a montante da escola, na família, gerador de novas responsabilidades a aprender, enfim, poderia, poderia, poderia... avançar nesse aliciante mundo que está por construir. Porém, ficou pelo "tudo como dantes, no quartel-general de Abrantes".
Ainda hoje, na edição do DN-Madeira, o Professor Universitário Nuno Nunes escreve um oportuníssimo artigo a que deu o título: "Por favor não se esqueçam do futuro". Leiam o artigo tendo sempre presente, comparando, o mundo que aí está e aquele que se adivinha, com a escola que oferecem às novas gerações. É aterradora a falta de visão!

NOTA
Escrevo com a experiência de mais de quatro décadas a estudar, viver e sentir o sistema educativo. Não escrevo contra pessoas, que me merecem respeito, mas contra governantes que "não sabem estar".
Ilustração: Google Imagens.

Texto publicado no blogue
www.gnose.eu

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Obrigado, Fátima!


Por
Dnotícias - Madeira
15 AGO 2019 

Há poucas semanas, junto aos tapetes florais por onde passaria a procissão, vi a Fátima, feliz, acompanhada da família. A poucos metros dali, há mais de 40 anos, junto à câmara municipal, a Fátima, ainda adolescente, estendeu a mão a uma criança de 5 anos, marcando-a para toda a vida. Essa criança era eu, ainda sou, e estava na Biblioteca Calouste Gulbenkian com os meus irmãos mais velhos. A bibliotecária incentivava-os para que fizessem o cartão e as suas primeiras requisições. Eu ficara de lado, esquecido, por ser demasiado pequeno para os livros, por ainda não entender as letras.

A Fátima estava ali, a ver-me por dentro. Aproximou-se, perguntou-me se queria levar um livro. O meu ar cabisbaixo e envergonhado deve ter-lhe respondido. Levou-me pela mão, insistiu com a bibliotecária, preencheu o formulário e ajudou a escolher. Tem de ter muitos desenhos, dizia. Queres este? Nunca ninguém compreendeu tão bem os meus silêncios. Robinson Crusoé, numa versão infanto-juvenil, grande formato, capa dura, ilustrações coloridas em todas as páginas ímpares. 

O meu primeiro livro, pelas mãos e pela sensibilidade da Fátima. Ainda hoje acredito que aquele momento definiu grande parte da minha vida, o gosto pela leitura, a paixão pela natureza, pela vida selvagem, pela aventura e pela descoberta. Até devolver o livro, mesmo sem o ler, absorvi-o com todos os sentidos, a textura, o cheiro e o som das folhas, o brilho da capa, os pormenores de todas as ilustrações. 

Lembro-me bem de brincar com o livro. Sim, também podemos brincar com eles. Sentado atrás da casa, abria-o ao acaso (ao calhas), tentando acertar em cada um das ilustrações. Atrás daquele vieram muitos outros livros.
Eu segui a minha vida, a Fátima seguiu a dela. O seu gesto espontâneo, sensível, e até ternurento, foi uma pequena semente, lançada há mais de 4 décadas, que germinou, cresceu e em mim produziu muitas outras sementes, que também elas germinaram, até ser a floresta que hoje sou.
O gesto oferecido pela Fátima, jovem nascida numa família tão numerosa quanto a minha, mas ainda com menos recursos, foi para mim um dos grandes tesouros que recebi, e que guardo. Obrigado, Fátima!

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Fantasmas nas escolas


Por
Armanda Zenhas
Educare

O “fantasma do arquiteto”, corporizado nas caraterísticas arquitetónicas da sala de aula ou de outros espaços da escola paira, assim, sobre todo o edifício escolar e é sentido de diferentes maneiras pelos vários grupos etários/ profissionais que dele fazem uso, conforme conseguem ou não sentir-se bem em cada um dos espaços e fazer deles um uso proveitoso.


“Fantasmas nas escolas”: estranho título para um texto. “Será certamente sobre o Carnaval, já que foi há pouco tempo.” - poderá o leitor pensar. Mas não, não vou dar conta de nenhum desfile de fantasminhas atempadamente preparado nas aulas com a colaboração das famílias. 
Uma notícia relativamente recente (10/11/2019) saída no jornal Público, “A EB de Matosinhos é uma escola nova mas já a precisar de obras”, lembrou-me uma mais antiga (30/09/2016), “Aulas no recreio devido ao calor nas salas”, referente ao Centro Escolar de Rebordosa (Paredes), publicada pelo Jornal de Notícias. A propósito desta última, publiquei então o artigo “Edifícios escolares: ambientes amigáveis e de aprendizagem?”
Nestas notícias consegui registar pelo menos quatro caraterísticas/problemas comuns às duas escolas, situadas em concelhos diferentes, com alguma distância a separá-los, e com localização em zonas geograficamente distintas. Em ambas existe muito vidro nas paredes; em ambas há janelas nas salas que não abrem; em ambas o calor dentro das salas é excessivamente elevado, mesmo no inverno (o que, obviamente prejudica a saúde e as condições de ensino-aprendizagem); ambas foram concluídas em 2011. Diria eu que os dois primeiros problemas dão origem ao terceiro e quase adivinho que a qualidade do ar que se respira nessas salas não é adequada à saúde.
Falei no tempo presente acerca da escola de Rebordosa; deveria ter falado no passado, pois não tenho informação da continuidade dos problemas e espero que eles estejam sanados; o presente referia-se, evidentemente, ao tempo da notícia saída no JN.
Ao ler a notícia de O Público, de fevereiro passado, e ao recordar a do JN, de setembro de 2016, ocorreu-me um conceito curioso e de muito pertinente aplicação nestes dois casos: o de “fantasma do arquiteto”. Debruçando-se sobre “currículo oculto” (aquilo que se aprende na escola mas que não faz parte do currículo oficial), o sociólogo inglês Roland Meighan (1986) diz que as salas de aulas parecem estar assombradas pelo arquiteto que as desenhou e pelos seus conselheiros. Ilustra esta ideia com a dificuldade/impossibilidade de arranjar a sala de um outro modo (mesas e cadeiras formando grupos em vez de filas, por exemplo) que esbarre contra as conceções de quem a desenhou. Fala também das diferentes camadas de sentido comportadas num único espaço, tendo em conta os diferentes tipos de pessoas que as utilizam: os professores veem uma sala de aula de um modo diferente dos seus alunos e será de uma forma diferente que ela será analisada pelos assistentes operacionais que as limparão.

O “fantasma do arquiteto”, corporizado nas caraterísticas arquitetónicas da sala de aula ou de outros espaços da escola (refeitório, recreio, sala dos professores, etc.), paira, assim, sobre todo o edifício escolar e é sentido de diferentes maneiras pelos vários grupos etários/ profissionais que dele fazem uso, conforme conseguem ou não sentir-se bem em cada um dos espaços e fazer deles um uso proveitoso.

Na notícia citada sobre a Escola EB de Matosinhos, refere-se que o vereador da Câmara Municipal reconhece a existência de problemas de excesso de calor nas salas de aula, mesmo no inverno, já desde o início da construção da escola. Acrescenta que de lá para cá (já lá vão 8 anos!) têm vindo a ser aplicadas, sucessivamente, diversas medidas, por falta de resultado das anteriores, tendo já sido gastos cerca de 200 mil euros. No Centro Escolar de Rebordosa, contava o JN em 2016, o Presidente da Câmara de Paredes afirmava ir resolver a situação por meio de ar condicionado. Ainda que tal solução tenha resolvido o problema do calor, terá deixado em aberto outros problemas: alergias ao ar condicionado, gastos associados ao seu consumo, solução pouco amiga do ambiente. Tanto desconforto e tanto dinheiro que se pouparia com escolas construídas de forma bem pensada, adequada aos seus fins e ao clima!
Que poderoso fantasma assombrará estas duas escolas de vidro? Não me parece que seja apenas o “fantasma do arquiteto” de Meighan”. Por outro lado, serão elas exemplares únicos no país? Não sendo, estarão as outras a padecer dos mesmos males em silêncio? E a saúde de quem as habita? E o processo de ensino-aprendizagem e as repercussões no (in)sucesso escolar? 
Meighan, nos seus estudos, concluiu que as crianças/jovens pretendem também ter uma palavra a dizer na construção das escolas. Concordo plenamente. As escolas devem ser concebidas por equipas pluridisciplinares que integrem não apenas técnicos ligados à construção (arquitetos, engenheiros, técnicos de saúde pública, etc.), mas também representantes dos futuros habitantes das escolas (professores, assistentes operacionais, alunos) e devem obedecer a normativos (certamente existentes) que acautelem condições de saúde e segurança - como o controlo da temperatura ambiente, a renovação do ar, a qualidade dos pisos dos vários espaços - e pedagógicas - a adequação do mobiliário aos fins de cada sala e à idade dos alunos, entre tantos outros aspetos. Termino com algumas questões que gostaria de ver respondidas: Serão as escolas alvo destes cuidados nos seus projetos e no acompanhamento da sua construção? Serão as escolas alvo de fiscalização do respeito pelas condições de saúde e segurança obrigatórias antes de entrarem em funcionamento e, regularmente, após o mesmo se iniciar?

Bibliografia
Meighan, Roland. (1986). A Sociology of educating (2nd ed.). London: Cassell Educational.
ARMANDA ZENHAS Doutora em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Mestre em Educação, área de especialização em Formação Psicológica de Professores, pela Universidade do Minho. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, nas variantes de Estudos Portugueses e Ingleses e de Estudos Ingleses e Alemães, e concluiu o curso do Magistério Primário (Porto). É PQA do grupo 220 no agrupamento de Escolas Eng. Fernando Pinto de Oliveira e autora de livros na área da educação. É também mãe de dois filhos.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

MAIS 17,5 MILHÕES PARA O SISTEMA EDUCATIVO PRIVADO


Para além dos 655 mil Euros para a formação de pessoal do Hotel Savoy, o Governo Regional aprovou, ontem, contratos-programa, a subscrever com 27 estabelecimentos de ensino particular, no valor global de 17,5 milhões de euros. "Uma decisão que teve em conta que os estabelecimentos de ensino particular asseguram uma desejável complementaridade com o sector público, disponibilizando uma oferta que permite a liberdade de escolha das famílias (...)". 


Dois aspectos: primeiro, estes 17,5 milhões, agora anunciados, pergunto, farão parte dos 30 milhões referidos no debate do orçamento regional de 2019, ou trata-se de mais uma ajudinha? É preciso que isto seja esclarecido; segundo, o governo confunde o direito à livre opção das famílias com o direito à Educação. O direito à Educação consubstancia-se no quadro da Constituição da República e daí decorre que seja o sector público a assegurá-lo de forma universal e gratuita. O direito à livre opção deve corresponder ao paralelismo curricular e não às despesas de funcionamento. Quem quer opta e paga. Os governos só devem subsidiar, no justo valor, quando o sector público não consegue dar resposta. Aí é dever do sector público pagar para que ninguém fique para trás. 
Sobre isto, em tempo de campanha eleitoral, seria bom que os partidos se definissem.
Ilustração: Google Imagens.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Serão as crianças vítimas especialmente vulneráveis?


Observador
4/8/2019

Não entendo os motivos pelos quais parece difícil compreender-se que uma criança que presencia a violência física ou psicológica entre os seus pais acabe por ser uma vítima especialmente vulnerável.

Há duas semanas foi votada e reprovada, na Assembleia da República, a atribuição de estatuto de vítima especialmente vulnerável de violência doméstica às crianças que a vivem nas suas casas. Não devo, claro, entrar na discussão — que, entretanto, surgiu — sobre alguns aspectos jurídicos que esse estatuto traz consigo. Não pretendo evocar convenções e recomendações internacionais. Nem fazer considerações sobre os motivos políticos pelos quais ela não terá merecido a aprovação da Assembleia da República. Só quero mesmo conversar convosco acerca destas crianças. Muitas delas, como imaginam, que eu conheço bem.
Imagino que a não promulgação de um estatuto como este possa representar, aos olhos de alguns deputados, um exercício de prudência. De maneira a que não se crie mais um argumento que favoreça manipulações de natureza perversa de alguns pais, que os leve a afastar, arbitrariamente, os filhos do outro dos seus pais, com a alegação de que estarão a proteger as crianças de actos de violência de que sejam vítimas. Receio que, se foi assim, a Assembleia da República esteja a reconhecer que, diante das limitações e da lentidão dos tribunais, face à necessidade de discernirem o verdadeiro do falso numa alegação de vítima especialmente vulnerável, será melhor que esse estatuto não seja consagrado. Mas não é verdade que considerar uma criança em perigo, no contexto da violência doméstica protagonizada por um dos pais, em sua presença, só por si já a proteja. Simplesmente porque são muito raras as vezes em que um Tribunal reconhece uma criança que viva neste contexto como estando em perigo. Porque são muito raras as vezes em que a proteja do contacto com aquele dos pais que, atestadamente, protagoniza essa violência. Porque são muitas as vezes em que confia, inclusive, estas crianças à guarda destes pais, comprovadamente, violentos. E são, ainda, muitas vezes as circunstâncias em decreta guardas conjuntas e residências alteradas quando, judicialmente, se comprovou que um destes pais era violento.
Reconheço que não entendo os motivos pelos quais parece difícil compreender-se — dentro de muitos tribunais e, agora, no Parlamento — que uma criança que presencia a violência física ou a violência psicológica entre os seus pais acabe por ser uma vítima especialmente vulnerável. Oiço, demasiadas vezes, que estas crianças têm muita resiliência, como se fossem ou heróicas ou “apoucadas”, quando, na verdade, elas só tentam sobreviver; todos os dias. 
E os bons resultados escolares que conseguem conquistar, nestas circunstâncias — que atestam (para muitos tribunais) a forma como nada do que de violento se passe entre os pais pareça afectá-las ou comprometer o seu desenvolvimento — só são possíveis porque, vivendo quase sempre em “estado choque”, encontram na escola a única “clareira de oxigénio” onde não têm de estar em “modo de sobrevivência” o tempo todo.
O que me inquieta — muito! — é que, quanto mais estas crianças parecem tornar-se “resilientes” à catástrofe em que vivem, todos os dias, mais se transformam numa espécie de “bomba ao retardador”. Ou seja, somente quando o clima de guerrilha pára — e, às vezes, passados anos, voltam a poder querer voltar para casa, ao fim de um dia de escola, sem o fazerem no pavor de que tudo possa ficar “fora de controle” — é que aquilo que parecia resiliência se manifesta com cicatrizes profundas que se avivam e as acompanham para toda a vida.

Na verdade, por teimosia de alguns agentes de justiça, já vi crianças que ficaram com danos físicos irreparáveis, em consequência de episódios de violência doméstica que as atingiram. Mas os danos mais vulgares — que também as irão acompanhar para sempre! — não se traduzem em fracturas ósseas, lesões cerebrais e outros sequelas que, tivessem sido protegidas a tempo, nunca teriam. Os danos psicológicos são “silenciosos”. Têm a ver, por exemplo, com memórias (que nunca se apagam!), com reacções de pânico (súbitas e descontroladas) perante situações que evoquem aquilo que presenciaram, ou com traços depressivos graves (entre tantas mais consequências) que as condicionam nas suas relações pessoais e sociais, nos desempenhos escolares, nas relações amorosas que venham a ter, mais tarde, ou na forma “encolhida” como abordam os seus sonhos ou os projectos que constroem, por exemplo. 
E, muito pior, com o modo como essas cicatrizes se repercutem e condicionam os seus desempenhos parentais, mais tarde.

Todavia, estas crianças presenciam, muitas vezes, um dos pais a insultar o outro. A estas crianças um dos pais “vende-lhes” uma realidade acerca do outro que não coincide com aquilo que elas, inequivocamente, registaram e que parece ter, como única função, confundi-las, perturbá-las, aterrorizá-las ou enlouquecê-las. Estas crianças vêem — inúmeras vezes — quem as devia proteger, de forma inequívoca, a procurar refúgio ao pé de si, para sobreviver, e o outro dos pais a violentar, a ponto de se sentirem com necessidade de ser protegidas de quem as devia proteger. Estas crianças são corajosas e bondosas e colocam-se, muitas vezes, à frente de um dos pais quando ele é agredido pelo o outro, e protegem-no com o seu corpo enquanto são, elas próprias, agredidas. Estas crianças vêem os mesmos pais que as agridem a ser cuidadosos ou atenciosos, fora de casa, e sentem que tanta hipocrisia e tanta loucura as leva a sentir uma revolta que ninguém entende. E — muitas vezes — ameaçam-no, denunciam-no, apelam e, desesperadas, na maior parte das circunstâncias, são deixadas sozinhas. Estas crianças não sabem nunca se, no meio de um fúria descontrolada, poderão morrer às mãos de tamanha violência. E, mesmo assim, voltam para casa para proteger aquele dos pais que consideram a vítima. Estas crianças vivem tão quotidianamente tanta violência que parecem não ter lágrimas; funcionam! E, quando choram, fazem-no baixinho, sozinhas, de noite, como se a sua dor incomodasse. Estas crianças só não queriam sentir-se minúsculas diante do ódio que sentem à volta da relação dos pais!
São estas as crianças que os tribunais protegem, muitas vezes, mal! Quando, apesar de se sucedem as alegações, dadas como provadas, de um dos pais, entendem que os direitos dos pais se devem sobrepor aos direitos dos filhos e, sendo assim, as “intimam” a passar fins-de semana com quem as maltrata. Ou quando, perante o alarme que um perigo de violência conjugal não pode deixar de ter para o exercício da parentalidade, separa as duas realidades como se elas não se influenciassem, mutuamente, ou fossem estanques. Ou quando, em vez de proteger, de forma cautelar, esclarecendo a seguir, de modo urgente, deixa que se passem meses e meses de avaliações psicológicas, de mediações familiares, de terapias familiares e de outras intervenções de outras equipas cujas sessões se multiplicam sem fim. Enquanto isso, ora a vítima (seja quem vitima como quem é alvo, por má fé, de alegações falsas de violência doméstica) se sente ao desamparo, ora — como também acontece — é atropelada por presunções jurídicas e enviesamentos sexistas que, no final, deixam as vítimas especialmente vulneráveis mais vítimas e mais vulneráveis.
São estas crianças que não mereceram ser consideradas como vítimas especialmente vulneráveis pela Assembleia da República. E que mereciam medidas legislativas, práticas judiciais e atitudes de protecção diferentes, seja em relação a quem as violenta como a quem reclama uma violência que não existe. E, devo dizer-vos, que não entendo porquê. E, se já não se entende que não sejam protegidas, como deviam, pelos pais e pelos tribunais, estranho (com tristeza) que não tenham sido, igualmente, protegidas pelos senhores deputados. Como mereciam ter sido!

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

As narrativas são "o aparelho digestivo do conhecimento"


Eduardo Sá tem a certeza: “A escola rouba a infância às crianças”. A escola é um novo tipo de trabalho infantil, que não deixa as crianças brincar. 

Por Rita Pimenta 
PÚBLICO
16 de Junho de 2019


No entender do psicólogo, retirámos as crianças do trabalho para lhes devolver a infância e “empanturrámo-las com escola”. Ou seja, “transformámos a escola numa espécie de trabalho infantil e agora não temos crianças que o sejam quando devem ser”.
Por isso, o psicólogo sugere que se transforme “o brincar” em Património Imaterial da Humanidade. E declara: “A escola está a roubar a infância às crianças. A leviandade com que isto se faz é inacreditável. Da parte dos pais, com a melhor das intenções, e da escola, que vive numa distracção sem fim”, seguindo o modelo do século XIX, mas com datashow.
“Tenho medo de que a escola não conheça as crianças”, disse, esperando que consiga “voltar a ser amiga” delas. Disse ainda: “Nunca ouvi falar tanto das crianças e nunca vi que se espatifasse tanto a infância.”

Gostávamos que Trump fosse só uma personagem…

Provocatório e irónico, repete uma ideia já transmitida noutros fóruns, a de que “as histórias fazem mal às crianças”, porque “trazem personagens em relação às quais nós não sabemos quem são os pais, não têm nomes de família nem um currículo que as justifique”.
Mais: elas “correm o risco de acreditar que as personagens são tão reais, como, sei lá!, o Presidente Trump, que nós gostávamos que fosse só uma personagem de uma história… de classe B”.
Este talvez tenha sido o momento em que arrancou a gargalhada mais sonora da sala do Teatro-Cine de Pombal, só competindo com a altura em que, já no período das questões, sugeriu outro item para Património da Humanidade, “o esganiçar das mães”.
O também escritor recordou um inquérito aos adolescentes norte-americanos sobre quem mais influenciou o seu crescimento. Entre as respostas, houve quem se referisse a presidentes dos EUA, a Deus, ao Pai Natal, mas também a inúmeras personagens das histórias. “A única circunstância em que os pais [norte-americanos] contam histórias mais ou menos a sério é no Natal.” E os miúdos fazem-lhes “o favor de fingir que acreditam”.

Crianças estúpidas (mas doutoradas)

Eduardo Sá não tem dúvidas de que “as crianças que não sabem contar histórias e que não escutam histórias são crianças que não aprendem a pensar”, porque as narrativas “são o aparelho digestivo do conhecimento”.
Se não conviverem com histórias, acredita, “mesmo que venham a ser mestradas e doutoradas, são crianças estúpidas”. Já que “as histórias nos permitem descodificar sentimentos, perceber aquilo que vai do mistério à descoberta”. E lembra que “todas são de encantar, porque o encantamento é a experiência de comunhão entre pessoas”.
Por isso afirma: “Os livros de histórias são os melhores manuais ao longo da vida.” Mas não há pressa em que aprendam muito cedo a identificar as letras. Pede mesmo que nos infantários e creches se afixe uma placa à porta: “É proibido aprender a ler.”

O psicólogo afirma que “as crianças vivem empanturradas de conhecimentos” e que “não lhes damos tempo para pensar através das histórias”. Falta-lhes “tempo livre”, quando o têm, “criam personagens, imaginam, põem problemas, resolvem-nos, colocam hipóteses e são expeditas”.

Está convicto de que “uma história ensina a conhecer, a decifrar e acaba por nos levar a perceber que conhecer é sempre reconhecer”. E não aceita “cruzadas contra as histórias violentas”, exemplificando: “Como se a história da Heidi fosse suave ou a do Bambi, que perdeu a mãe, fosse uma coisa insignificante.”
Diz que se trata de “vender um mundo enviesado” e culpa os psicólogos: “Aí entra o autoconceito, a auto-estima, o ‘ama-te a ti próprio’, o optimismo acima de todas as coisas, mas um optimismo que não é verdadeiro.”
Para ele, “as histórias devolvem-nos à verdade, é aquilo que nos permite religar o mundo”. E recorre à origem da palavra portuguesa “religar”, dizendo que foi ela que originou a palavra “religião”.
“As histórias têm uma dimensão absolutamente semelhante à da religião porque nos devolvem ao indispensável, porque nos põem em contacto com o essencial, porque nos levam a perceber que somos transformados quando lidamos com a realidade olhos nos olhos, porque nos levam a descobrir que nunca somos felizes sozinhos”, diz. E acrescenta: “Tudo o que nos parecia opaco e mais ou menos incompreensível se torna tão simples, tão simples, tão simples.”
Para concluir, disse o professor: “O segredo de cada história é termos ao nosso lado alguém capaz de nos escutar com o coração e de fazer aquilo que as histórias fazem como mais ninguém. Quando são muito minuciosas, tocam-nos tão dentro de nós que depois, convictamente, mesmo quando somos crescidos, acreditamos que aquela história foi escrita especialmente para nós. Esta capacidade única de nos tornar importantes… apesar de sermos insignificantes perante o tamanho do universo.”
Mensagem final e amplamente aplaudida: “Deixem-se de histórias e contem histórias.”
Animação e imaginação no jardim

NOTA
Esta edição teve início a 13 de Junho e contou com os convidados: Ana Mourato, Andreia Nunes, Cristina Taquelim, Eduardo Vera-Cruz Pinto, Elsa Serra, Helena Zália, Mafalda Milhões, Maria Teresa Meireles, José Saro, Luís Carmelo, Rachel Caiano, Rita Moriés, Rosa Mendes (Portugal), Rodolfo Castro (Argentina), André Neves, Lúcia Fidalgo e Tâmara Bezerra (Brasil), Eva Mejuto e Catherine L’Ecuyer (Espanha). E ainda: Trovadoras Itinerantes, La Luna – Compañia de Cuentos e Cleva, Coro de Leitura em Voz Alta de Alcochete.