quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

“A educação não pode ignorar a curiosidade das crianças” - Edgar Morin


Entrevista a Edgar Morin, pseudônimo de Edgar Nahoum, nascido a 8 de Julho de 1921 (100 anos). É um antropólogo, sociólogo e filósofo francês. Esta entrevista foi publicada há dois anos.

Mudanças profundas ocorreram em escala mundial nas últimas décadas do século 20, entre elas o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização ideológica nas relações internacionais. Diante desse cenário, o sociólogo francês Edgar Morin, hoje com 98 anos, defende que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, Morin propõe um dos conceitos que o tornaram um dos maiores intelectuais do nosso tempo: o da complexidade.



Em entrevista, o pensador critica o modelo ocidental de ensino que, segundo ele, separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. Para Morin, as disciplinas fechadas ensinam o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas impedem a compreensão dos problemas do mundo e de si mesmo.

Entrevista concedida à Andrea Rangel/O Globo

Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação?
A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal” de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor. Então, eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado. É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.

Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual?

O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo. O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.


O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento?
Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar. Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana. O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis. A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.

O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento?
As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa. O meu livro O homem e a morte é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.

Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional?
É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional. O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise económica que a Europa está vivendo atualmente.

A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê?
Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento. Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.

Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino?
O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão.

sábado, 27 de novembro de 2021

Tudo ao contrário

 


FACTO 1

Tenhamos em consideração: um aluno, no quadro do actual sistema educativo, considerado excelente, pratica uma determinada modalidade desportiva. Planeia a sua vida diária no sentido de responder bem às duas exigências. No desporto, entre os do seu escalão, é seleccionado para a equipa representativa, neste caso, da Região da Madeira. Na véspera da concentração e jogos diz ao treinador que não poderá estar presente porque, na semana seguinte, tem cinco testes de avaliação. Assume a "responsabilidade" e fica com a profunda mágoa de não poder participar. Um dos testes, imagine-se o contra-senso e o paradoxo, de Educação Física, com uma catrefada de páginas, teóricas, como se tratasse de um aluno universitário de um curso de professores de Educação Física e Desporto.



FACTO 2

"Três milhões investidos em formação de desempregados". Título na edição de hoje do Dnotícias, página 2/Economia.


COMENTÁRIO

Tento compaginar as duas situações. À partida parecem constituir contextos distintos, mas, à lupa, existe uma interligação de fundo. Isto é, nem o sistema educativo tem tido em atenção a vida real, e a vida integra, também, uma qualquer profissão, como se sobrepõe à cultura (o desporto é cultura). E sendo assim, surgem três milhões para a "formação de desempregados", o que, na prática, corresponde à falência do sistema educativo. E ao outro nível, continuam com o blá, blá, blá que o desporto é, na esteira de Pierre de Coubertin, "essência de vida", "beleza", "arquitecto do edifício que é o corpo", "justiça", "audácia", "ousadia", "honra", "lealdade", "paz" e "progresso". (Fonte: Ode ao Desporto). Tudo o que um jovem precisa. Mais, ainda, corriqueiramente, dizem que ajuda nas questões de natureza psicológica, no desenvolvimento de capacidades, inclusive, cognitivas, e até na formação do carácter! Digo eu, apenas paleio. Na prática, o que existe é um gigantesco divórcio entre o que é considerado "escola" e a vida que existe para além dessa incompreensível obsessão pela avaliação no quadro de um enciclopedismo gerador de muita frustração. Os "três milhões na formação de desempregados" explicam uma significativa parte do problema. E assim continuará, enquanto os vários sistemas se apresentarem estanques, portanto, sem qualquer abertura e interligação na formação global do ser humano. 

Não me admira o facto, segundo um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que 30% dos jovens queiram emigrar, 23% estejam medicados por perturbações mentais e que Howard Williamson, Professor  e especialista em políticas europeias de juventude, assuma que "(...) Falhámos a esta geração" (...) Negámos a oportunidade de, dignamente, planearem o futuro" (...) porque se "esqueceram que existe um grande espaço de vida entre a escola e a comunidade" (...) é, por isso, preciso repensar "a ligação entre educação formal e informal". Fonte: edição de hoje do Expresso.

Ai escola, escola! Oh governos abram os olhos!

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Ponto de Ordem


A verdadeira formação só tem sentido quando não existe hipocrisia, isto é, quando os comportamentos contraditórios não colocam em causa a nobreza das promessas.



Centenas de formações para professores são produzidas todos os anos sobre temas diversos e com painéis de ilustres convidados, muitos perante os quais me curvo. Sem qualquer menosprezo, dei até conta de uma sobre a “colocação da voz” quando, hoje, o professor deve ser mais um mediador da aprendizagem do que um pregador do manual. Mas apesar dos apelativos títulos e objectivos das iniciativas, a maioria delas não serve para transformar seja o que for, apenas para juntar um determinado número de horas necessárias à “tentativa” de subida na penosa carreira profissional. Durante um, dois, três dias, escutam-se pensamentos diversos, que entusiasmam, que fazem, por momentos, acreditar que é possível uma escola de vida e para a vida, mas logo a rotina regressa, a lei pisoteia e, subtilmente, o despacho esmaga numa espécie de tecla de computador: “delete”. O entusiasmo gerado pela audição de quem conduz a pensar e reflectir sobre a escola que temos e a escola que deveríamos dispor, tem sempre vida curta. A formação, muitas de incalculável interesse, mor das vezes, morre na casca. O político comparece, dá as boas-vindas, enaltece a iniciativa, faz o número mediático que lhe interessa, a plateia aplaude e na Segunda-feira seguinte, sua excelência a rotina manda prosseguir o vaivém inconsequente que mata a curiosidade e de caminho esmaga professores e alunos. Porquê?

Ininteligível. São tantas as razões, uma delas, digo eu, com alguma perversidade, aceito que assim interpretem, talvez seja o interesse por um certo grau de ignorância, ao mesmo tempo que propagandeiam que temos a “geração mais bem preparada de sempre”. A própria Lei, por vezes vem enfeitada de excelentes propósitos, parece aberta ao mundo, à liberdade das escolas, à protecção da sua autonomia, à defesa dos grandes princípios orientadores que devem enformar a aprendizagem de qualidade para este tempo de incerteza, de paradoxo e até de irracionalidade, um tempo que sobejamente diz não ao enciclopedismo e que exige ousadia que coloque em prática o direito individual ao sonho. As linhas da Lei parecem, apenas parecem. A Lei é, de facto, tramada! Na prática, volto a sublinhar as excepções, a hierarquia continua a dormir, ressonando intensamente na almofada dos princípios orientadores da Sociedade Industrial que Alvin Tofller tão bem sintetizou: a maximização, concentração, centralização, padronização, sincronização e especialização.

E isso conduz, inevitavelmente, a uma sequência de procedimentos que coarctam a percepção da oferta de um sistema educativo inclusivo e de superior qualidade, mata qualquer obsessão para o conseguir, assassina os rasgos criativos, destrói a possibilidade de uma visão estratégica e portadora de futuro, arruína a originalidade e o amor pela mudança. E surge o Burnout, a paixão pelo nobre acto de ser professor amolece e faz adoecer, surge o desencanto, o abandono e o silencioso conflito entre pares, por via de uma ridícula e competitiva avaliação de desempenho, geradora de uma atmosfera de desconfiança e hostilidade; e surgem as reuniões, sufocantes e improdutivas, que não só repetem os problemas há muito identificados como sustentam a burocracia desnecessária, a promoção de centenas de projectos disto e daquilo que ajudam a enfeitar os relatórios e a tranquilizar as consciências. Documentos que, tarde ou cedo, sabemos, destinam-se ao arquivo morto.


E a “formação” continua (deveria ser contínua e com os olhos colocados na mudança de paradigma), cega e distante do rol das novas exigências do mundo e das necessidades de cada indivíduo. A verdadeira formação só tem sentido quando não existe hipocrisia, isto é, quando os comportamentos contraditórios não colocam em causa a nobreza das promessas. Só existe formação quando ela se transforma no embrião da mudança, quando, no plano científico, se interioriza e aplica ao encontro das necessidades daqueles que são a razão da existência do professor. No centenário do eterno Paulo Freire trago em memória duas sínteses perfeitas: “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre” (…) porque “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”. O político ainda não percebeu a dimensão do pensamento de Freire.

NOTA
Artigo da minha responsabilidade a incluir na edição de Dezembro de A Página da Educação

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ensinar e aprender Filosofia

  

1. A cada ano que passa, a perigosa – e muito séria – situação é várias vezes noticiada nos meses de setembro e outubro, comentada pelo poder político e diversos “especialistas”, mas depois de absorvida a agenda mediática e o (parco) tempo consagrado ao debate, não emerge qualquer decisão política relevante que inverta ou resolva o problema da falta de professores nas escolas e, como é expectável (e habitual), este agrava-se. Seja em território continental ou na Região Autónoma da Madeira, continua-se a “assobiar para o lado” sem se investir robusta e eficazmente na Educação e, malfadadamente, assim prossegue a “gritante” falta de meios tecnológicos nas salas de aula, mas agora também dos indispensáveis recursos humanos com a devida habilitação profissional!



O Dia do Professor foi a 5 de outubro, simultâneo com o da implantação da República e da assinatura do Tratado de Zamora, em 1143, entre D. Afonso Henriques e Afonso VII de Leão e Castela. Significante data, é um facto, mas pouco exaltada e contidamente festejada pelas dezenas de milhar de profissionais da Educação que ainda exercem, aposentados ou aqueles que por um ou outro motivo viraram as costas à docência. Hoje, muitos destes últimos fazem falta ao sistema – conheço pessoalmente uma boa soma –, mas já não estão dispostos a abraçar a carreira (ou a ela retornar), pois esta não é economicamente atrativa nem valorizada (e respeitada) pelo poder político, assim como por parte significativa da sociedade. O velho ‘prestígio’ do professor cessou.

Paralelamente a isto, o discurso propagandeado nos órgãos de comunicação social está maculado. Considera-se, erroneamente, que o facto de 60% dos professores portugueses sofrerem de exaustão emocional (“burnout”), que o excesso da burocracia existente nas escolas, o crescente desgaste da profissão (a que se associa uma avultada porção de baixas médicas), a não aceitação de colocações em escolas que ficam, em alguns casos, a mais de 300 km de casa (e consequente afastamento da família) ou de horários incompletos, temporários e precários, para além dos múltiplos pedidos de aposentação antecipada – não descurando que o número dos que agora estudam para serem professores caiu cerca de 70% desde o início deste século –, enfim, tudo o que de negativo está a suceder na Educação (e que até já obriga à contratação de licenciados sem habilitação profissional) é direta ou indiretamente culpa dos professores. 


Pior, como em Portugal não se planeia e os nossos atores e decisores políticos vivem (e convivem) mal com a culpa ou responsabilidade, então, quando há problemas na Educação eles têm infalivelmente de cair sobre “o elo mais fraco”, os professores. Contudo, aqueles que abraçaram a missão (e vocação) de educar são, de facto, seres extraordinários! Mais uma vez comprovaram-no nesta recente “luta” contra um adversário desconhecido, inesperado, invisível, extraordinariamente perigoso e letal – e que a todos ainda coloca em risco –, num contexto deveras desafiante, mas onde a mobilização e todo o seu profissionalismo veio ao de cima e não descuidaram e prosseguiram com as aprendizagens (e avaliação) dos seus alunos. Apesar de impedidos de se deslocarem para as salas de aula, isolados da rotina e da azáfama das escolas, inobstante confinados, a arte e o dever/compromisso de ensinar e fazer aprender não pereceu e desenrolou-se satisfatoriamente no último ano e meio com um novo e improvisado modelo de Ensino à Distância.

Nas palavras de um dos grandes intelectuais do século XX, George Steiner, mesmo numa conjuntura adversa e desprovido de grande (ou exíguo) apoio institucional, o professor tem sempre “consciência da magnitude e, se quisermos, do mistério da sua profissão”, tem o discernimento de que lida com o que existe de mais vital num ser humano, neste caso, numa criança ou jovem, em suma, tem a noção de que alimenta a “chama nascente na alma dos seus alunos”. Dito por outras palavras, tem a lucidez de que é uma referência (ou bússola) para os seus alunos, pois cabe-lhe a difícil e crucial tarefa (e esforço) de despertar nas mentes dos seus aprendizes as novas e originais ideias que povoarão o amanhã e de por esta via ajudar (e participar) na construção de um futuro.

Entretanto, retornados agora ao seu “habitat natural” – a sala de aula –, local de experiência(s) e onde por excelência é transmitida uma herança às mais jovens gerações nas quais se deposita uma esperança e se procura a excelência (quase a perfeição), aqui, professores e alunos aprendem, herdam e partilham conhecimentos e estórias, pensam, testam modelos, divergem no entendimento ou na interpretação sobre a realidade e até chocam nas orientações/rumos para o futuro. Sem margem para dúvidas que se trata de um exercício difícil, todos os dias desafiante e por vezes até extenuante, sobretudo agora com o livre e ininterrupto acesso à internet e às redes sociais nos telemóveis, mas o equilíbrio é possível e desde há séculos que anões continuam a subir aos ombros de gigantes e começam a ver mais longe do que eles, “não pela penetração do próprio olhar ou pela estatura do corpo, mas porque foram erguidos ao alto e alçados pela grandeza de gigantes” (Bernardo de Chartres). Despertar nos outros sonhos e poderes além dos nossos, induzir um amor por aquilo que amamos, começar a erigir hoje as mudanças que precisamos para um porvir melhor – sem ignorar ou menosprezar o passado –, eis uma aventura inigualável e só realizável por aqueles que têm uma paixão e vocação por ensinar, os autênticos professores.

2. No dia em que escrevo estas linhas, e a poucos dias de se celebrar mais um Dia Mundial da Filosofia, estabelecido pela UNESCO, em 2002, para destacar a importância desta disciplina e saber/conhecimento com mais de 2500 anos, sobretudo para os jovens, recebo a informação de que o governo espanhol vai acabar com a lecionação da Filosofia no ensino secundário. Em 2017 a ideia já tinha irrompido, mas foi depois abandonada. Todavia, assiste-se a um novo e forte ataque, que a surtir efeito terá graves consequências para as próximas gerações e é mais uma “baixa” nas Humanidades. Para quem guarda alguma memória, em 2002 também tivemos, em Portugal, uma “investida” sobre a Filosofia, quando o ministro David Justino, mediante um equívoco ou não, retirou a disciplina dos currículos do 12º ano. A medida gerou forte contestação na opinião pública – e junto das associações de professores da especialidade –, e o ministro lá recuou dizendo que na origem de toda a contenda estava um “puro lapso”, acrescentando que não estava “satisfeito com os conteúdos dos programas”, os quais tinham de ser “repensados”. E foram… sendo que as alterações introduzidas deixaram-na pior, numa espécie de introdução à Filosofia ou “montra” das suas diferentes áreas de estudo, silenciando importantes autores e problemas/questões filosóficas e chegamos hoje ao ponto de já nem sequer existir um Programa para disciplina (revogado pelo despacho 6605-A/2021, de 6 de julho), mas somente as famosas “Aprendizagens Essenciais”.

Relevante, útil, difícil, inquietante, dispensável, incómoda, aborrecida, abstrata, são alguns dos muitos adjetivos usados pelos (meus) alunos para a descrevem. Ainda assim, para além do (crucial) momento de ceticismo sempre presente, no final do ano letivo lá confessam que esta não é um assunto exclusivo para especialistas e que os/as ajudou a ampliar sua compreensão do mundo, expandiu horizontes e fomentou a liberdade de um pensamento que se tornou bem mais prudente e crítico. Afinal de contas, mesmo com mais de dois milénios e meio de existência, a sua aprendizagem continua a ter valor e “alguma” utilidade.

Miguel Alexandre Palma Costa

domingo, 14 de novembro de 2021

Avaliar competências. É mesmo assim?


No passado dia 26 de outubro o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) publicou o enquadramento geral que vai presidir à conceção das provas de avaliação externa das aprendizagens dos alunos dos ensinos básicos e secundário para o presente ano letivo. Refere o referido enquadramento que a avaliação externa implementada por provas e exames tem em consideração a necessidade de avaliar a capacidade de mobilização e de integração dos saberes disciplinares. E apresenta como documentos de referência para a conceção das provas de avaliação e exames o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e as Aprendizagens Essenciais.



O perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória foi publicado em julho de 2017 e é um documento bem construído e bem estruturado, que define uma proposta concreta de referencial de aprendizagens, construído com base em áreas de competências e respetivos descritores. Podemos discutir se é o perfil adequado, mas não se pode colocar em causa a qualidade técnica do trabalho que o suporta.

As Aprendizagens Essenciais foram homologadas em agosto de 2018 e são uma forma inovadora de apresentar os programas curriculares e as metas de aprendizagem, procurando que tenham uma ligação às áreas de competências do perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória.

Mas os exames, por muito que se escreva no seu documento enquadrador as palavras “competências”, “itens de avaliação” ou “capacidade de mobilização e de integração dos saberes disciplinares”, não são instrumentos que avaliem competências no que se refere à mobilização de conhecimentos, aptidões ou capacidades para a abordagem de situações e resolução de problemas. Querendo que o seja apenas por que se diz que o é trata-se de camuflar o que realmente é.

Os exames não avaliam competências. Os exames não avaliam capacidades. Os exames não avaliam atitudes. Estas dimensões dos resultados de aprendizagem dos alunos existem e estão implícitas nos modos e formas como os alunos abordam e ultrapassam este “Adamastor” que lhes aparece à frente no caminho ambicionado do prosseguimento de estudos. Mas não são avaliadas pelos exames. Os exames avaliam essencialmente conhecimentos. Os exames são instrumentos de avaliação paradigmáticos de um ensino centrado na transmissão de conhecimentos e no papel do professor como detentor do conhecimento. Onde o aluno tem pouquíssima margem de manobra para apresentar as competências que desenvolveu ao longo do seu processo de aprendizagem. E, na melhor das hipóteses, permite avaliar a resiliência dos alunos para resistir a toda a carga da pressão social que acompanha a realização dos exames quando estamos a falar de exames decisórios para a frequência do Ensino Superior.


Prova de que os exames são meros medidores de conhecimentos transmitidos pelo professor foi a gestão efetuada durante a pandemia de COVID19. Com receio que os resultados dos exames espelhassem a insuficiência das aprendizagens dos conteúdos curriculares, o IAVE emanou a orientação de que nos exames de 2020, 2021 e, agora, de 2022, devia existir a possibilidade de os alunos escolherem conteúdos preferenciais. O que se fez nos exames, e se continua a fazer no presente ano letivo, é simplesmente baixar o referencial de medição de conteúdos para que os resultados não reflitam de forma evidente a ausência de transmissão de conteúdos curriculares aos alunos que terminaram a escolaridade obrigatória em 2020, 2021 ou 2022. Na prática, adultera-se a “balança” para que a mesma não reflita o “excesso de peso”.

Fala-se de competências à saída da escolaridade obrigatória, mas ninguém referiu a necessidade de identificar quais foram as competências que os alunos deixaram de desenvolver devido ao contexto pandémico ou quais foram as que tiveram de desenvolver por terem de se adaptar tão rapidamente a uma realidade completamente nova e inesperada.

Se queremos ser coerentes com os tais documentos orientadores da organização do ensino secundário temos de implementar processos de avaliação que permitam medir de forma efetiva resultados de aprendizagem na plenitude das suas representações: capacidades, atitudes e conhecimentos. Mas para isso é necessário repensar todo o modelo de avaliação externa das aprendizagens que não pode, apenas, estar assente de forma cómoda na simplicidade de aplicação de provas escritas e exames. E é definitivamente necessário mudar o paradigma do acesso ao ensino superior. Enquanto não o fizermos, este modelo de exames será sempre um “peso” demasiado pesado sobre os “ombros” dos professores e alunos e um constrangimento demasiado limitador das aprendizagens dos alunos e da flexibilidade e diversidade de respostas que o ensino secundário ambiciona oferecer aos jovens alunos portugueses.

Gonçalo Xufre
Fonte: Observador

sábado, 30 de outubro de 2021

Entre a Escola que oferecem e a Escola que deveriam desfrutar


Ontem regressei a um filme notável: "Sociedade dos Poetas Mortos". Duas horas onde o espectador é confrontado com a realidade de um colégio que tem como lema: "Tradição, Honra, Disciplina e Mérito" e a de um professor que provoca os seus alunos a seguirem os seus sonhos e aproveitarem cada dia ("Carpe diem quam minimum credula postero", em tradução literal aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã) - Ode de Horácio, 65 a.C. - 8 a.C.



O filme é de 1989 e reflecte a atitude de professor (magistralmente interpretado pelo actor Robin Williams) ex-aluno que, em 1959, estudou na Welton Academy. Ele, agora professor de Literatura, põe em causa a "Tradição, Honra, Disciplina e Mérito" e incentiva os alunos a pensarem por si mesmos, o que gera, naturalmente, "um choque com a ortodoxa direcção do colégio".

Para mim que continuo a viver, digo-o, sinceramente, uma enorme paixão pela Educação e, obviamente, pelo sistema educativo, este filme trouxe-me, uma vez mais, emoção, em certos momentos a lágrima e a tristeza pelo sentimento de, passadas quase cinco décadas, tudo ou quase tudo continuar como ontem.

Ao contrário de tantas formações para professores, repetitivas e ineficazes, melhor seria que passassem este filme e debatessem o que dele se pode extrair de pensamento. Melhor seria que acompanhassem tantas e extraordinárias intervenções disponíveis no youtube e que as debatessem em todas as particularidades. E que, depois, exigissem um novo paradigma resultante da escola que oferecem e a escola que os alunos deveveriam desfrutar.

Ontem li, também, um texto do professor Rui Correia, docente de História e vencedor do Global Teacher Prize Portugal 2019. Aqui deixo excertos para uma reflexão de fim-de-semana alargado:

“A escola é conforto, alegria e esperança no futuro". Mas a escola também "serve, apenas, como um cobertor de infelicidades caladas". (...) Chegar aos dezoito anos sem perspectivas de carreira converteu-se numa pandemia do nosso tempo. A precariedade laboral ajuda muito. (...) Seria talvez melhor começar a pensar que a escola pode, e ainda não sabe, gerar os estímulos cruciais que auxiliam os nossos miúdos a tomar decisões pequenas e a imaginar objectivos grandes. Desenhar currículos apertadamente conciliados com os interesses pessoais de cada rapaz ou rapariga. A escola como uma alfaiataria educativa. O professor convertido numa espécie de costureiro de futuros à medida. Um sistema corajoso que escutasse mais do que fala. Que pedisse mais perguntas do que as que faz". Porque, todos os dias eles "(...) mordem uma maçã envenenada".

Foi, para mim, um dia em cheio: o filme e este artigo.

Ilustração: Google Imagens.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A escola como uma gigantesca perda de tempo


Opinião
27.10.2021




Pode ser Eva. Fez um teste de Geografia e foi a única da turma a ter negativa. Dos seus olhos formosos e inexpressivos, num rosto negro como o touro do Herberto Helder, ruíram-lhe duas lágrimas. Mas daquelas que represam tanta água - tanta mágoa - que deixam cicatrizes aquosas. 43%. Não estava a chorar, quando a encontrei. Fui eu que a fiz chorar, quando depois da aula, num corredor, me aproximei, interrompendo aquele presídio íntimo onde ela se confinara e quis recordar-lhe que nada está perdido e que havemos de dar a volta à coisa. Que ainda agora estamos no início e que, no ano passado, aconteceu o mesmo e conseguimos, e que este ano também havemos de conseguir. Em completo silêncio, abanou-me que sim com a cabeça, empurrando outra lágrima para longe. Nem eu, nem ela acreditámos em nenhuma das verdades que ali arenguei.



"A ESCOLA, QUALQUER ESCOLA, NÃO LHE SERVE PARA NADA"

O facto é que a escola não lhe serve para nada. E não é “esta” escola, como que pressupondo a ideia pela qual, se mexêssemos aqui e ali em algumas coisas, tudo iria ao sítio, com tempo e paciência. Nada disso. Mexa-se e faça-se o que se quiser, a escola é, para a Eva, pouco mais do que um pecado original. A escola, qualquer escola, não lhe serve para nada. É um lugar sem espírito. Um claustro de desalento.

Imigrante de um país lusófono chamado desgosto, a Eva é o pesadelo de qualquer professor. Uma alma viva, encerrada, errante. Que erra. 43%. A tristeza que lhe causou esta prova, concebida e executada com recurso às mais avançadas e modernas tecnologias educativas, não se cura com a melhor retórica motivacional. E não, a miúda não é depressiva por natureza, nem tem sequer uma visão negativa dos outros e muito menos da escola. A escola é-lhe, apenas, inteiramente indiferente. Nada contesta nela. Nada a indigna nela. Por mais que a escola se esforce, nada a surpreende. Nada a interessa. Não é uma amiga. É uma conhecida.

Na realidade, a escola representa somente um pedacinho mínimo daquilo que cada pessoa é. E é assim que deve ser. Excedemo-nos muitas vezes quanto à importância da escola. De nada serve a escola se não servir para que se sinta aventura, hospitalidade, risco, contrariedade e provocação. Nenhuma aprendizagem acontece sem estes elementos. Tudo o mais é patranha. E estas gentes, estas Evas, sentem-no com uma sensibilidade e uma realidade ainda mais imediatas.

EXEMPLOS COMO A EVA, SÃO PRECIOSOS PARA UM PROFESSOR

Pessoas e exemplos como a Eva, são preciosos para um professor. Em mim, devolvem-me sempre ao lugar da minha insuficiência. Ao mais recôndito e carrancudo dos lugarejos. Não ser, notoriamente, capaz de ajudar uma aluna. Como lhe chego? Para que lhe sirvo? Como posso ser-lhe útil?

Enquanto muitos se referem à escola como o lugar de práticas ancestrais e enquadramento institucional ultrapassado, que não prepara ninguém, tendo em conta as escolhas pessoais de carreira. Uma escola que vive exclusivamente de preferências curriculares e metodológicas inabaláveis, que de nada adianta importunar.

Enquanto outros acham que os seus filhos devem ser educados em casa, onde educadores minuciosos conhecem bem as suas necessidades e ritmos e que o Estado deve sustentar essa opção, tal como sustenta o aluno do sistema público, porventura com poupanças substanciais.

Enquanto outros referem que o número de horas passadas dentro de salas é excessivo e que a criatividade, o pensamento crítico, o trabalho de equipa, a empatia e a disciplina de grupo devem constituir premências educativas que a escola teima em não privilegiar. Reclamam um regresso à Natureza e aos elementos, à brincadeira e à exposição ao risco e à adversidade, como mecanismos poderosos para a resolução de desafios significantes, materiais e intelectuais, do mundo real.

Enquanto outros ainda defendem com unhas e dentes o autodidactismo – Educação on demand ou Uber learning – emulando a educação de adultos, como forma de garantir as oportunidades educacionais que o Estado deve acolher, celebrar e creditar – como se fez já em Portugal e que, por todo o mundo, vão fazendo o seu caminho.

Enquanto outros se indignam com a ausência de respeito pelos ritmos e modos de aprendizagem de cada pessoa e da indiferença que a escola continua a reservar a esta dissemelhança elementar, mais do que documentada cientificamente, terraplenando métodos e práticas didácticas e docimológicas, reduzindo tudo a um ou dois ou três métodos que são aplicados de forma indiferenciada.

Enquanto outros ainda sentem que a educação online pode constituir uma saída airosa para os problemas de sociabilização, na individualização modular de currículos customizados. E é indesmentível que, ao contrário do que muitos se apressam em defender, a aprendizagem a distância durante a pandemia Covid19 permitiu que muitos alunos que não se destacavam em contexto de sala de aula, o fizessem no contexto telemático, com enorme sucesso e impacto pessoal.

Enquanto outros tudo apostam nos sistemas experimentados do ensino de formato vocacional e pré-profissional, numa ligação intensa, concretizadora, com empresas e segmentos laborais da função pública.

E por aí fora.

Enquanto o mundo hesita entre escolas de pensamento e pensamentos de escola, nós vamos tendo miúdos como o Adão. O Adão tem fobia da escola. Odeia-a. Bem sei o que estão a pensar. Todos tivemos “fobia” de escola. Especialmente às Segundas de manhã ou Sextas à tarde. Não é nada disso. Gozaram tanto com o Adão quando era miúdo por ele ser como é, que agora, só de pensar em ir à escola, fica fisicamente prostrado, com acessos de febre, cefaleias fortes e diarreias. Intelectualmente vazio e muscularmente estafado, não sai do quarto e, há uns dias, chegou mesmo a empurrar a mãe. A polícia foi lá e ele morreu de medo que o mandassem para uma família de acolhimento, como ameaçaram. Voltou à escola para uns dias de absoluto pânico e não aguentou. Adoeceu e voltou para casa. A escola não sabe como lidar com isto. Exige um atestado médico que justifique as suas faltas. A pedopsiquiatria não o recomenda. Isso eterniza o problema. A escola e a psicologia amuam.

O PROFESSOR CONVERTIDO NUMA ESPÉCIE DE COSTUREIRO DE FUTUROS À MEDIDA

“A escola é conforto, alegria e esperança no futuro. Estes alunos são excepções”. É inegável. Mas, qual é o aluno que não é uma excepção? E de que modo é que a estatística dá aqui uma ajuda ao Adão? O rapaz diz que sim a tudo, desde que todos se calem e que não saia do quarto. Para ele, a escola não passa de um martírio inútil. Aprendeu isto: a escola não serve para nada de bom. E quem estiver a pensar que a escola não tem “culpa” – palavra inútil em educação – porque, no fundo, foram os “recreios” que lhe fizeram isto e não “a escola”, recordemos que “a escola” é o “recreio” também. Existe muita vida para além das salas de aula. Portanto, sim, é da inutilidade da escola que falamos. No seu melhor, a escola serve apenas como um cobertor de infelicidades caladas.

As oportunidades que a educação proporciona não são devidamente percebidas por muitos dos nossos miúdos. Não realmente. Chegar aos dezoito anos sem perspectivas de carreira converteu-se numa pandemia do nosso tempo. A precariedade laboral ajuda muito. 

Seria talvez melhor começar a pensar que a escola pode e ainda não sabe gerar os estímulos cruciais que auxiliam os nossos miúdos a tomar decisões pequenas e a imaginar objectivos grandes. Desenhar currículos apertadamente conciliados com os interesses pessoais de cada rapaz ou rapariga. A escola como uma alfaiataria educativa. O professor convertido numa espécie de costureiro de futuros à medida. Um sistema corajoso que escutasse mais do que fala. Que pedisse mais perguntas do que as que faz.


ESTAS EVAS E ADÕES MORDEM TODOS OS DIAS UMA MAÇÃ ENVENENADA

Estas Evas e Adões mordem todos os dias uma maçã envenenada. Chama-se solidão infantil. Existe, nas suas vidas, um divórcio assanhado entre a casa e a escola. Estes seres, nascidos num Paraíso original, crescem no segredo, na mudez. Não contam nada aos seus professores, aos seus amigos, porque têm vergonha do seu inferno familiar. Habitam um exílio, um purgatório postiço, feito de distância e de humilhação. Aquilo que os envergonha é que as suas vidas existam como existem. Um pai ébrio e violento é uma menina rebaixada e ofendida, de olhos postos na sua colega que todos os dias saltita para a escola, de mão dada com o pai. Como me desabafou um dia, outra destas Evas, “Eu nunca fui uma pessoa triste. Tenho é tanta vergonha da minha vida, que não quero que a minha vida exista”. Como pode a escola servir para alguma coisa, quando a vida existe assim?

*Rui Correia é professor de História, conferencista e autor de numerosos estudos de história, património e educação. Foi gestor educativo, external expert em educação para a Comissão Europeia, vereador da Câmara Municipal das Caldas da Rainha e vencedor do Global Teacher Prize Portugal 2019.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Correr, saltar, brincar. É isto que querem as crianças do pré-escolar


É a porta de entrada no sistema de ensino, ainda sem matérias para estudar. É tempo de perguntar, experimentar, descobrir o mundo. Liberdade para escolher e crescer sem pressas.

Por
Sara R. Oliveira





É uma fase de descoberta, de começar a caminhar pelos próprios pés, perguntar e perguntar vezes sem conta, satisfazer a curiosidade. Brincar, correr, saltar, jogar, experimentar, imaginar, aprender com o que se passa à volta. No pré-escolar, absorve-se o mundo com todos os sentidos em alerta. Meninos e meninas, dos três aos cinco anos, curiosos por natureza, começam a entender o que os rodeia antes do início do tradicional percurso escolar.

Querem saber tudo. Porque assim, porque assado. Mexer, tocar, experimentar, jogar, explorar. Brincar. Brincar sempre, vezes sem conta. Todos os dias. É uma etapa importante do crescimento, desenvolvem a linguagem, as emoções, a cognição. Com desafios constantes que fazem parte do desenvolvimento. Ouvir histórias, saltar à corda, observar ilustrações, usar lápis de cor, jogar à bola, ver filmes, ouvir música, cantar, dançar, brincar com diversos materiais, ora mais flexíveis, ora mais rígidos. Ampliar a curiosidade, esticar capacidades. Crescer, sobretudo crescer.

No jardim de infância não há metas curriculares, nem aquela pressão do sucesso escolar. Privilegia-se o que se vive em cada momento, cada aprendizagem. Aprende-se a aprender. Usa-se a palavra educação e não ensino, não há professores, mas sim educadores, não há aulas, há atividades. Motiva-se, facilitam-se experiências, preparam-se os mais novos para novas etapas. A educação pré-escolar facilita a entrada no 1.º Ciclo do Ensino Básico. Os mais pequenos adquirem competências de socialização essenciais para trabalhar com os outros.

Mas, atenção, muita atenção, nunca esquecer as brincadeiras e todas as suas virtudes. Brincar é um fim em si mesmo. Carlos Neto, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, um dos maiores especialistas na área da brincadeira e do jogo, tem vindo a destacar elementos importantes da infância, dos primeiros anos de vida. “Brincar é, para a criança, uma atividade de exploração do seu envolvimento físico e social, procurando sempre que possível descobrir, e repleta de curiosidade de colocar o seu corpo face a situações adversas e de risco controlado. O contacto com a Natureza e a capacidade de confronto com o risco são também experiências fundamentais na estruturação de uma cultura lúdica infantil”, escreve no seu livro “Libertem as crianças”. Brincar, em diversos contextos de vida, é, sublinha, “essencial para o desenvolvimento da capacidade adaptativa, criativa e de resiliência.”

Na educação pré-escolar, desenvolvem-se expressões, o pensamento crítico, a comunicação. Há um mundo de possibilidades. “É objetivo da educação pré-escolar preparar a criança e potencializar as suas capacidades cognitivas, emocionais e comportamentais, prevenindo o insucesso no ingresso no 1.º Ciclo”, escreve Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica infantojuvenil, no seu livro “A psicóloga dos miúdos.”

“Estas capacidades incluem os conhecimentos, ainda que muito elementares, de preparação para a aprendizagem da leitura, escrita ou cálculo, mas as fundamentais relacionam-se com o repertório necessário de preparação da criança para a aprendizagem: saber dirigir e manter a atenção, conhecer e adotar as regras necessárias em sala de aula, ser persistente, ter curiosidade pela aprendizagem, acreditar que é capaz, ser capaz de se controlar e ter a capacidade de escuta, memória, resiliência e tolerância à frustração”, acrescenta.

As crianças comunicam umas com as outras, com os adultos, com os educadores, com os pais, com o mundo ao redor. E querem saltar, correr, brincar, jogar. Na infância, principalmente nesta fase, há vontade de testar limites em relação ao corpo e ao espaço. Carlos Neto não tem dúvidas. “Através do brincar, as crianças vão ensaiando progressivamente experiências novas e mais complexas quanto ao nível de risco, de acordo com o desenvolvimento da sua maturidade motora e cognitiva”, escreve no seu livro.


As crianças querem ser crianças com tudo de bom que isso tem. Saltar, correr, cair, tropeçar, levantar, voltar a cair, esfolar os joelhos, sujar as mãos. “Os comportamentos de risco através do brincar permitem à criança ganhar maior segurança e autonomia, e estão relacionados com a sobrevivência, o confronto com a adversidade, a capacidade adaptativa, a superação e os limites de diversas formas de ação”, sublinha Carlos Neto.

Os mais pequenos sonham, sonham muito, sonham constantemente. E não gostam de estar quietos. “Valorizamos uma escola humanizada, democrática e livre, em que cada sujeito possa buscar o conhecimento por conta própria e produzir algo de novo, ‘fora da caixa’. É necessário pensar nos talentos que a escola desperdiça ao não acreditar nos sonhos, desejos e motivações mais profundos que as crianças transportam dentro de si”, escreve o professor catedrático.

Blogue: Educare

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A grosseira mentira!



FACTO

Afirmou o secretário regional da Educação: "Acreditamos que é pela autonomia de cada escola que damos a melhor resposta aos nossos alunos". - Fonte: Dnotícias, edição de hoje.

COMENTÁRIO


A declaração é inatacável. De resto, há muitos anos que este posicionamento é assumido por tantos investigadores, autores, professores, sindicatos e por todos aqueles que pensam o sector da Educação. Mas uma coisa é o que é dito, porque fica bem, outra é a realidade.

Na prática, essa autonomia não existe. É verdade que a tal autonomia está consubstanciada na legislação, portanto, o que o secretário enalteceu corresponde a uma "chuvinha no molhado". Porém, tudo ou quase tudo tem de ter a chancela de quem, em abstracto, assume que "é pela autonomia de cada escola que damos a melhor resposta aos nossos alunos". Eu diria: "com a verdade me enganas".

Desconheço o conceito de autonomia defendido pela secretaria regional da Educação. Relembro o Professor Licínio Lima que um dia escreveu: "sejam autónomos nas decisões que já tomámos por vós". Complementarmente, sei que, por exemplo, a Escola do Curral das Freiras (Madeira), perdeu a sua autonomia, porque os seus órgãos desejaram ser inovadores, apesar de dentro deste sistema apresentarem excelentes resultados.

Sendo assim, seria interessante, porque esclarecedor, saber se a secretaria da Educação decidiu, doravante, prescindir da sua atitude arrogantemente centralizadora.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Escolaridade obrigatória aos três anos?


Nota

Escolaridade obrigatória a partir dos 3 anos de idade? Não, obrigado! Porque uma coisa é o combate à pobreza, cujas  preocupações, em síntese, podem ser lidas no texto que aqui transcrevo; outra, bem diferente, é escolarizar, numa idade extremamente precoce, quando, inclusive, estão em causa os próprios direitos da criança. É verdade que o círculo vicioso da pobreza quebra-se, a prazo, com a acessibilidade universal à aprendizagem. Mas isso tem um tempo certo, no pleno respeito pelas etapas do desenvolvimento infantil. É óbvia, tal como já hoje acontece no designado pré-escolar, uma subliminar intenção de antecipar aprendizagens, como se "mais escola conduzisse a melhor escola". Não conduz. Se a preocupação é a do combate à pobreza, melhor seria que gerassem novas políticas dirigidas às famílias (direitos e deveres) e novas políticas económicas e de direitos laborais, onde se enquadrassem os tempos de trabalho e os de protecção à família. A escolarização vem depois. A escola não deve constituir-se como “pilar de excelência de sinalização das situações de carência”. Se assim determinarem, tal significará que as outras instituições não estão a funcionar de acordo com a missão que as incumbe. Até falam no apoio através de "técnicos de referência". Depois, há qualquer coisa aqui de inexplicável: quando desejam intervir no ponto de partida (3 anos), é lógico que toda a estrutura dos 15 anos de escolaridade obrigatória deveria ser repensada, pela necessidade de interligação. Como não existe ou, pelo menos, não é perceptível essa preocupação, ressalta que esta medida, tendencialmente, transformará a escola, por um lado, em "armazém de crianças", porque tudo o resto permanecerá igual, por outro, em extemporâneo palco de orientações pedagógicas no quadro da antecipação de aprendizagens. 

Governo pretende que escolaridade obrigatória
comece aos três anos de idade



A medida está inscrita na estratégia do executivo de combate à pobreza. Outras iniciativas passam pelo reforço dos abonos de família, o alargamento do acesso ao RSI ou a facilidade no acesso à habitação para famílias com crianças. Estas medidas fazem parte da versão preliminar da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) 2021-2030 a que o jornal Público teve acesso, sendo que a iniciativa mais ambiciosa passa pelo alargamento da escolaridade obrigatória a começar nos três anos de idade.

Atualmente situado no seis anos de idade, ou seja, a partir do 1º ano de escolaridade, o PS já fazia tenções no seu programa eleitoral de universalizar o ensino pré-escolar, mas esta medida vai um passo à frente e torna obrigatório ensino desde os três anos, perfazendo assim 15 anos de escolaridade obrigatória.

No entender do Governo, a medida passa por "reforçar os apoios à frequência de creches e pré-escolar assegurando às famílias de menores recursos um acesso tendencialmente gratuito, integrando o ensino a partir dos três anos de idade na escolaridade obrigatória no médio prazo”.

Outras medidas que constam da ENCP passam pelo alargamento do acesso ao abono de família e o reforço financeiro do mesmo e também está previsto um reforço da abrangência do Rendimento Social de Inserção, apesar de não serem adiantados detalhes.

Consta igualmente uma proposta de aumento das prestações sociais a agregados com crianças em particular a agregados monoparentais assumindo como prioridade a retirada das crianças da pobreza e a criação de um Sistema de Apoio Social para as Famílias com Crianças

O Governo pretende também que as escolas funcionem como “pilar de excelência de sinalização das situações de carência”.

A estratégia prevê o aumento da rede de psicólogos escolares, tida como essencial para “a deteção precoce de problemas psicológicos em meio escolar”, e a criação de mecanismos de acesso gratuito para crianças inseridas em famílias pobres a cuidados de saúde mental.

A existência de “técnicos de referência” que acompanharão a par e passo as situações de carência das famílias e expandir as equipas comunitárias de psiquiatria da infância e da adolescência nos serviços locais de saúde mental, são outras medidas elencadas no documento.

No campo das prestações sociais, está previsto o aumento da abrangência do Rendimento Social de Inserção (RSI) e no campo da habitação, a estratégia pensada para os próximos nove anos, passa pela existência de crianças no agregado familiar como condição prioritária de acesso.

Ainda na habitação, segundo o documento, as soluções de alojamento de emergência, por seu turno, deverão ser garantidas com a Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário, recentemente criada.

Está igualmente previsto o reforço da habitação com renda acessível com um “parque habitacional público a preços acessíveis”, a construir através da reabilitação do património imobiliário do Estado.

A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 foi aprovada na quinta-feira pelo Governo e seguiu agora para consulta pública, segundo o Conselho de Ministros.

“A estratégia constitui um elemento central do objetivo de erradicação da pobreza, enquadrado no desafio estratégico de redução das desigualdades”, tenso sido aprovada na generalidade “a fim de ser submetida a consulta pública”, refere o comunicado emitido no final da reunião do Conselho de Ministros.

Em entrevista à Lusa em julho, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social já tinha adiantado que o documento iria ter medidas especificas para diferentes públicos-alvo, como as crianças, os jovens ou os trabalhadores.

A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 terá também medidas dirigidas aos jovens, aos trabalhadores e aos públicos mais vulneráveis, além de “medidas transversais de preocupação com a coesão territorial”, garantindo uma “intervenção local cada vez mais com capacidade para respostas personalizadas, localizadas no território para garantir o combate às assimetrias, até no acesso aos serviços essenciais”, adiantou na altura.

Fonte: Sapo24 / Blogue: Incluso

domingo, 3 de outubro de 2021

Especialista apela à revalorização do desporto escolar


O professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana Carlos Neto defende à Lusa que "o desporto escolar tem de ser revalorizado dentro da escola", para o relacionar com os clubes, e alçar a importância do "corpo em movimento".


Essa revalorização deve acontecer "da creche ao secundário", defende o antigo presidente da Faculdade de Motricidade Humana (FMH), e vir associada a uma nova importância "das capacidades motoras e atividades físicas na escola", levando também a um projeto de desporto escolar "mais consistente", com mais financiamento e recursos.


Carlos Neto falou à Lusa a propósito do Dia Europeu do Desporto na Escola, que se assinala esta sexta-feira, no âmbito da Semana Europeia do Desporto, pouco depois do arranque do primeiro ano letivo do Programa Estratégico do Desporto Escolar 2021-2025.


IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ENTRE CLUBES, ESCOLA E FAMÍLIA


Essas "coisas básicas" permitem que "depois seja possível ter condições para fazer desporto de formação e desporto de alto nível", e pedem uma relação entre clubes, escola e família.

"Temos que criar aqui um modelo que consiga fazer esta rede integrada para a promoção da educação física e do desporto. [...] No Japão, as crianças têm aula de educação física todos os dias, cinco horas semanais; em Portugal, nem as previstas têm" no primeiro ciclo, devido à dificuldade que, diz, muitos professores em monodocência têm em lecionar ou em encontrar quem os ajude.

Esta falta de investimento, também de financiamento e quadros de recursos humanos, leva a maiores dificuldades no segundo ciclo, em que "a iniciação desportiva como deve ser" acontece.

Com isto, "o abandono desportivo no meio escolar e dos clubes é enorme", sobretudo "quando passam aquela fase mais de refinamento e aperfeiçoamento da sua condição desportiva".

"Há uma capacidade muito reduzida de captar talentos. Para além disso, a especialização precoce tem sido mal interpretada. Muitos revelam-se mais tarde, há inúmeros exemplos de jovens que não foram selecionados nos clubes como praticantes desportivos porque os critérios de seleção não estavam aperfeiçoados. Há atletas olímpicos, de alto nível de rendimento, que só se manifestaram muito mais tarde", alerta.

Antes, as crianças "têm de passar por uma multiplicidade de experiências lúdicas e desportivas, para selecionar aquelas" em que são mais capazes, e, por outro lado, falta um sistema mais atento "aos motivos pelos quais as crianças abandonam".

Isso vai de "falta de tempo" a falta de recursos económicos, falta de apoios, também a nível de transportes, mas também pela crónica "disfunção" na valorização de treinadores de formação.

"São salários miseráveis, os dos treinadores dos primeiros níveis de formação, e depois é preciso melhorar a formação ao nível das formações, rever esse modelo de formação", critica.


"HÁ MUITAS HABILIDADES" QUE OU SÃO APREENDIDAS OU PODEM PERDER-SE


Nestas idades, até aos seis anos, "há muitas habilidades" que ou são apreendidas ou podem perder-se. "Se não são apreendidas aí, dificilmente se consegue ser atleta de alto nível, como músico ou ator de teatro [com outras]", lamenta.

Na dinâmica entre clubes, escola e família, é preciso apoio em toda a linha, para que possa prosseguir os estudos, ter tempo lúdico e a família seja reforçada, até porque um atleta de alta competição "precisa de muitas horas de treino, muito trabalho" até chegar ao sucesso.

"Estudos científicos dizem-nos que os atletas de grande êxito são os que tiveram infâncias altamente preenchidas de experiências. Os campeões não se fazem em laboratório nem à pressa", completa.


"O CORPO EM MOVIMENTO É O ARQUITETO DO CÉREBRO, 
DAS EMOÇÕES E DOS AFETOS"


Para lá do rendimento desportivo, avisa, o desporto tem de ser visto como "uma alavanca essencial na formação de um povo saudável e um cidadão saudável".

"Isso é importante para a economia e o futuro da sociedade, que é imprevisível e incerta. A atividade física tem uma contribuição importantíssima para a mudança vertiginosa que a sociedade está a viver", comenta.

Esta atividade física "não pode ser esquecida", porque ajuda a clarear o pensamento e é importante, do nascimento até à terceira idade, e a base da existência.

"O corpo em movimento é o arquiteto do cérebro, das emoções e dos afetos", remata.

Fonte: SIC Notícias por indicação de Livresco/Blogue Incluso

domingo, 19 de setembro de 2021

Crianças sobrecarregadas


Estudo europeu demonstra: as crianças no início da educação escolar estão demasiado sobrecarregadas – stress, dor de cabeça, cansaço e dores de estômago.

Por
RAUL GUERREIRO
Professor Waldorf; Membro do Conselho Nacional Parental Waldorf da Alemanha; Membro da Amnesty International


O estudo "Jovens famílias em 2019" da instituição alemã Pronova BKK trouxe à luz números alarmantes. Mais do que uma em cada três crianças nos primeiros anos de escola sofre várias vezes por mês de cansaço, dificuldade de concentração e falta de motivação. Um terço das crianças de seis a dez anos demonstra um notável nervosismo e inquietação. No prazo de quatro semanas na escola, uma em cada cinco crianças queixa-se de dores de cabeça ou dores abdominais sem explicação. Isto foi demonstrado por um inquérito realizado entre 1000 entrevistados que tinham pelo menos uma criança com idade inferior a 10 anos.

A razão: excesso de stress. Tornou-se evidente que as crianças estão sujeitas a uma forte pressão na escola para "mostrar resultados". Isto fica agravado por eventuais atividades extras como desportos, aulas de música, ginástica, natação, etc., de modo que as obrigações semanais das crianças resultam praticamente rigidamente programadas como no caso dos adultos.

A associação alemã de medicina antroposófica "Gesundheit Aktiv" criticou como a medicina oficial se está a tornar cada vez mais uma bacia de decantação para uma política de educação fracassada. Hoje em dia, devido ao espírito materialista de concorrência que impera no mundo adulto, as crianças são muitas vezes forçadas a entrar para a escola muito antes dos seis anos de idade. Isto constitui um sério agravamento, em comparação com a situação de há apenas alguns anos. Na fase do primeiro seténio de vida, muitas crianças não estão de modo algum habilitadas, social e emocionalmente, a reagir às constantes exigências de um "desempenho" estruturado na escola.

Mesmo que já existam novas abordagens alternativas promissoras, como por exemplo a Pedagogia Waldorf, de maneira geral as escolas não estão orientadas segundo o nível de desenvolvimento sensorial e anímico dos alunos, mas sim segundo um conceito de desempenho social. Os modernos pais e mães, hoje já semiescravos dos seus empregos, vêm-se eles próprios envolvidos nessa espiral do "desempenho", e assim inconscientemente passam a aumentar a pressão exercida sobre os seus filhos. O lar torna-se uma continuação da escola, enquanto máquina educativa. Uma perspetiva educacional orientada pelo desenvolvimento físico e mental teria mais em conta as necessidades fundamentais de cada criança individualmente. Essa perspetiva iria preocupar-se menos com a forma como as crianças podem ser "motivadas para o desempenho", prestando mais atenção ao problema crucial da razão pela qual a escola está cada vez mais a destruir a motivação já existente de maneira natural nas crianças.


Há muito que os médicos pediatras se queixam de que são obrigados a usar grande parte do seu tempo profissional meramente para cuidar de alunos que exibem um comportamento irregular na escola, mas que talvez estejam a fazer isso simplesmente para afirmar o seu próprio caminho. Em vez de tornar as crianças doentes, seja por decisões ministeriais tortuosas, ou por uma hipnose imagética injetada à força por aparelhagens digitais, a escola deve tornar-se um lugar onde as crianças aprendem a desenvolver sobretudo autoconfiança e a própria personalidade.

domingo, 5 de setembro de 2021

Pedagogia Waldorf. Crescer sem pressa, tal como se é


Os planos não são fechados, nem estanques, nem formatados. Estimula-se o ato de brincar, a livre descoberta, a imaginação. Nas salas de aula, é possível amassar pão, modelar a cera das abelhas, costurar tecidos coloridos, usar materiais naturais como conchas da praia, troncos de madeira, cortiça. Há todo um processo de desenvolvimento neste percurso formativo que reúne as vertentes científica, artística, estética.




A pedagogia Waldorf foi fundada há mais de um século, em 1919, em Estugarda, Alemanha, por Rudolf Steiner, filósofo, educador, artista. Um pensador que defendia que “o nosso mais elevado objetivo deve ser a promoção do desenvolvimento de seres humanos livres, aptos a dar por si próprios sentido e direção às suas vidas”. Tudo começou numa escola para os filhos dos operários da fábrica de cigarros Waldorf-Astória com ideais e métodos pouco comuns na época, ainda hoje considerados alternativos.

A criança é um ser único, as experiências sensoriais nos primeiros anos de vida são essenciais, não se contraria a vitalidade dos mais novos, a criatividade e a imaginação são importantes, respira-se natureza. Mais de 700 escolas espalhadas pelo mundo seguem este método pedagógico até à entrada no ensino universitário.

Os sentidos e a liberdade, a ligação constante ao meio natural, a alegria de viver e a curiosidade são pilares deste método que chegou ao nosso país em 1984. Nos primeiros anos de vida, é o desenvolvimento motor e sensorial da criança que importa, não tanto os aspetos intelectuais e cognitivos. Brincar, expressar, criar, descobrir, sem seguir planos traçados nas agendas feitas por adultos. O ambiente educativo é construído para crescer sem amarras e sem pressas.

Cada criança é um ser único, com a sua própria bagagem, que dá e recebe, que aprende e ensina nessa descoberta do mundo, num crescimento livre e em harmonia com a natureza. Com tempo e espaço para aprender. É um método que se preocupa com a alimentação e com o consumismo, que investe numa maior e permanente ligação à natureza.

Criatividade, responsabilidade, independência. Não há avaliação com números, há um relatório feito por todos os professores no final do ano, valoriza-se o empenho, destaca-se o esforço. Não há chumbos, há várias fases de desenvolvimento naturais e salutares, e espera-se entreajuda na turma. Aprendem-se duas línguas desde o primeiro ano, segue-se o currículo Waldorf com as disciplinas habituais do ensino convencional, há disciplinas individuais, os livros dos primeiros anos são feitos pelos alunos, os temas tornam-se mais complexos no secundário. A essência nunca se perde para desabrochar competências inatas únicas nessa caminhada da educação, da descoberta de cada um e do mundo.

A autoconsciência, a flexibilidade cognitiva, o espírito crítico, a capacidade para preservar a própria identidade. Todas estas componentes interessam no percurso desta pedagogia que cultiva competências para aprendizagens contínuas ao longo da vida. E os pais são sempre peças fundamentais neste caminho.

Forest Schools

Ensinar e aprender não são processos com um sentido único. Há mais métodos alternativos além da pedagogia Waldorf. Em meados do século passado, na Escandinávia, surgiu o conceito Forest School. São escolas na floresta e Portugal tem alguns exemplos. Aprender em contacto constante com a natureza, não em salas fechadas, valorizando-se o ambiente natural para que as crianças corram riscos, desenvolvam atitudes positivas para que, no futuro, sejam adultos confiantes, ativos, independentes.

Corre-se, brinca-se, sobe-se às árvores, escavam-se buracos na terra, enchem-se os pulmões de ar puro. Respeita-se a individualidade, exploram-se as componentes sociais, emocionais e físicas. As atividades são planeadas em conjunto com os mais pequenos num trajeto que coloca na linha da frente o pensamento criativo, as emoções, a comunicação, a resiliência.


Método Montessori

Itália foi o berço de outro modelo alternativo. O Método Montessori nasceu no início do século XX, depois de Maria Montessori, uma das primeiras mulheres a estudar Medicina em Itália, ter percebido que havia caminhos por desbravar. Dedicou-se à antropologia pedagógica, abriu uma escola nas redondezas de Roma adaptada às necessidades e curiosidades dos mais novos.

A criança é protagonista do seu caminho, escolhe os temas que lhe interessam, decide o tempo que quer dedicar a cada assunto, as vezes que quer repetir cada atividade. E assim aprende e entende como pode enfrentar dificuldades e gerir frustrações. Os adultos acompanham as aprendizagens e interferem o mínimo possível, observam, estão atentos, preparam os ambientes. A criança está sempre no centro da sua própria aprendizagem.

Fonte: Educare

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Resultados escolares por disciplinas – 2.º e 3.º ciclos – 2019/2020 - Informação a partir dos resultados das escolas


Os estudos da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), agora publicados, analisam os resultados escolares por disciplina nos 5.º e 6.º anos e nos 7.º, 8.º e 9.º anos, do ano letivo 2019/2020, tendo sido incluída, pela primeira vez, uma análise por género e escalão de Ação Social Escolar (ASE).



Da análise do estudo, destacam-se os seguintes resultados:

Intensificação, em 2019/2020, da tendência de subida das classificações médias e de redução da percentagem das classificações negativas, a todas as disciplinas, observada desde o início da série (2011/2012), o que mostra, à semelhança do que acontece em estudos internacionais, uma melhoria progressiva e consistente do sistema educativo português;
Matemática permanece como a disciplina com uma classificação média mais baixa e com uma percentagem de notas negativas mais elevada (ainda que com melhoria significativa face a 2018/2019);
Educação Física e a Educação Musical são as disciplinas que registam um valor mais elevado, com taxas residuais de classificação negativa e cerca de 70% dos alunos com nota de 4 e 5;
As classificações médias das raparigas são ligeiramente superiores às dos rapazes, em todas as disciplinas, exceto a Educação Física, na qual ocorre o oposto;
As classificações médias dos alunos sem ASE são superiores às dos alunos com ASE-B e as destes superiores às dos alunos com ASE-A, em todas as disciplinas;
As diferenças de médias em função da ASE são ligeiramente superiores em Matemática, Inglês e História e Geografia de Portugal;
Entre os alunos que transitaram com classificações negativas no ano anterior, mais de metade conseguiu obter positiva este ano, com a exceção da Matemática no 6.º, 8.º e 9.º anos;
Mais de 90% dos alunos retidos têm uma classificação negativa a Matemática;
A percentagem de alunos que recuperaram classificações negativas do ano anterior varia pouco com o facto de terem transitado ou repetido o ano (no caso do 5º ano, aliás, a transição teve um efeito positivo na recuperação da classificação negativa a todas as disciplinas, exceto a Matemática, em que o efeito foi neutro).

Este último resultado merece particular relevo, na medida em que atesta, uma vez mais, a baixa eficácia da retenção como medida para a melhoria dos resultados, sendo de estimular outras intervenções, conforme tem sido promovido no âmbito do Programa Nacional para a Promoção do Sucesso Escolar e nas medidas previstas no plano de recuperação das aprendizagens 21|23 Escola+.

Ficheiros:
Blogue: Incluso
Fonte: Governo

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

“A educação escolar está sufocada por enunciados românticos e complacentes”


A educação escolar contemporânea precisa ser repensada. Por várias razões. A tradição de transformar crianças em alunos e alunos em “orelhas”, que debitam informação em instrumentos de avaliação padronizados, continua a fazer escola. Os professores precisam de conquistar mais autonomia escolar e profissional e lançar mão de uma ferramenta essencial. A participação.



“A escola não se transformará enquanto se mantiver fechada sobre si própria e submersa nas culturas escolares seculares que moldam a sua vida organizacional e as vidas profissionais dos professores”, garante Pedro Patacho, professor do Ensino Superior, doutorado em Educação pela Universidade da Corunha, Espanha, vereador da Educação na Câmara de Oeiras, nesta entrevista (...) a propósito do seu livro “Pensar a Educação”.

Que projeto político é este a que chamamos escola? É uma das perguntas que faz no seu livro. Pedro Patacho recua ao passado, para analisar o presente, e pensar no futuro. Há pontos importantes a debater neste caminho umbilicalmente ligado ao desenvolvimento do país. Em seu entender, tomar decisões acerca da educação escolar implica disponibilidade para construir compromissos estáveis e duradouros de política educativa nacional. “Não podemos aceitar que os alunos mais desfavorecidos continuem a ter mais insucesso e dificuldades em construir uma experiência escolar positiva, sendo assim duplamente penalizados”, repara.

A justiça social, a descentralização e o neoliberalismo, a família, a comunidade, os professores, são alguns dos temas da sua obra. Há um longo caminho a fazer. “Não podemos aceitar aprendizagens essenciais decalcadas de programas curriculares muitos deles com 30 anos, sem um profundo trabalho de reflexão sobre os conteúdos culturais que são mais pertinentes para o trabalho escolar na atualidade”, observa.


EDUCARE.PT (E): “Pensar a Educação” é o título do seu livro. O que deve, em seu entender, ser pensado com urgência nessa dimensão tão maior e tão importante sempre colada ao desenvolvimento de um país? O que deve ser a educação, afinal?

PEDRO PATACHO (PP): A educação é um projeto político, coletivo, que transporta uma visão da sociedade, um modelo de pessoa educada. Se pensarmos que a última grande reforma da educação escolar em Portugal aconteceu em 1989, num processo iniciado em 1986, rapidamente chegamos à conclusão de que muita coisa precisa ser repensada. Por uma razão muito simples. Estamos em 2021 e o mundo em que vivemos é muito diferente do mundo de 1989. Não havia Internet, as tecnologias de informação e comunicação davam os primeiros passos, não havia telemóveis, não havia televisão por cabo nem plataformas de conteúdos, o acesso à informação e ao conhecimento era completamente diferente, vivíamos a outro ritmo, tínhamos outras preocupações e centros de interesse, as vivências das famílias e das crianças eram completamente diferentes. Mudaram as famílias, mudou a cultura, mudou a economia e o mundo do trabalho. É evidente que precisamos parar para pensar na educação escolar de que precisamos para fazer face aos desafios do presente, mas muito especialmente aos que emergem no horizonte e dos quais já percebemos os contornos.

E: Fala-se tanto do elevador social da escola, que nenhum aluno pode ficar para trás, do combate ao insucesso e abandono escolares, de um perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória. Os ideais em torno da educação são, de alguma forma, estereótipos repetidos até à exaustão?

PP: A educação escolar está sufocada por enunciados românticos e complacentes, um senso comum de certezas absolutas que ilude uma constatação que todos já perceberam: Não há vitórias fáceis. Porque é um projeto político coletivo, um bem público, tomar decisões acerca da educação escolar implica disponibilidade para construir compromissos estáveis e duradouros de política educativa nacional. Isto significa que todos os implicados têm de ceder nas suas posições de princípio. Qualquer caminho de reforma estrutural requer escolhas ideológicas, desafios burocráticos e administrativos, riscos, planeamento de médio-longo prazo. O que tem acontecido em Portugal é uma gestão casuística dos problemas em função do Governo da ocasião. Enquanto for assim a educação escolar nunca será uma prioridade política, por muito que o digam. Não podemos aceitar que, por esse país fora, as escolas não estejam já todas reabilitadas e requalificadas. Não podemos aceitar avanços, recuos e velocidade de tartaruga na modernização tecnológica das escolas, quando há mais de 20 anos que a Internet e as TIC se consolidaram como bases materiais da maior parte das nossas ações quotidianas e do funcionamento da nossa economia. Não podemos aceitar que o país não tenha uma estratégia para a formação de professores e para o rejuvenescimento e valorização da classe docente. Não podemos aceitar aprendizagens essenciais decalcadas de programas curriculares muitos deles com 30 anos, sem um profundo trabalho de reflexão sobre os conteúdos culturais que são mais pertinentes para o trabalho escolar na atualidade. Não podemos aceitar que os alunos mais desfavorecidos continuem a ter mais insucesso e dificuldades em construir uma experiência escolar positiva, sendo assim duplamente penalizados. Não podemos aceitar muita coisa com que nos habituámos a conviver, não obstante os enunciados românticos, e não termos a coragem de construir o necessário compromisso político nacional para as resolver estrutural e permanentemente. É o desenvolvimento do país e o regime democrático que estão em risco. É o futuro das crianças e jovens, dos nossos filhos, que está em risco.

E: A escola, tal como é e está, continua resistente à mudança? A diversidade cultural e social dentro de uma escola tem sido olhada como uma oportunidade ou como um obstáculo?

PP: A escola da modernidade, herdeira do industrialismo, consolidada nas sociedades ocidentais há um par de séculos, baseia-se em estandardizações de todos os tipos. Na arquitetura escolar, na gestão curricular, nas práticas de avaliação, etc. Estamos a ter dificuldade de libertar-nos dessa tradição intelectual que transformou as crianças em alunos e estes em “orelhas”, cuja principal função é ouvir e acumular informação e conhecimento para debitar em instrumentos de avaliação padronizados. Não quero dizer que não sejam relevantes. Mas a escola não pode ser só isso. Há exemplos positivos de mudança deste paradigma, excelentes exemplos, mas são uma minoria. E é claro que a formação de professores tem de ser repensada. Ainda estamos longe da rutura paradigmática. É evidente que este modelo não lida bem com a diversidade. Quanto mais diversidade – e ela aumentou imenso com a universalização do ensino e a extensão da escolaridade obrigatória – mais dificuldades e desafios para uma escola que não está estruturalmente preparada para lidar adequadamente com a diferença. Mas ao mesmo tempo é na diversidade que reside o maior potencial de transformação da educação escolar, quando começarmos a definir políticas educativas e curriculares mais adequadas à diversidade.

E: Professores desmotivados, cansados, exaustos, que se queixam de demasiada burocracia e da perda do reconhecimento social e profissional por parte da tutela e por parte da sociedade. O que está a acontecer? O que precisa ser revisto e repensado?

PP: A cada dia que passa são atribuídas mais tarefas às escolas e colocadas mais exigências sobre os professores. Consequentemente, os docentes são afastados daquilo que deveria constituir a sua preocupação dominante, ou seja, o trabalho com os seus alunos. É desgastante. Alem disso, os professores estão envelhecidos. Já são quase 45% os professores com mais de 50 anos de idade. É um desfasamento enorme de gerações numa sociedade de mudança intrageracional. E praticamente não têm apoio de outros profissionais. Quando um agrupamento de escolas com mais de 1000 alunos tem um único psicólogo educacional, por exemplo, está tudo dito! Com todos os problemas sociais que hoje estão dentro das escolas, através dos alunos, com todas as solicitações que se dirigem às instituições educativas, e com as exigências de maior flexibilidade e diferenciação das experiências de aprendizagem, é necessário reforçar as equipas escolares com outros profissionais. É tremendamente injusto continuar a responsabilizar os docentes por tudo e mais alguma coisa, em vez de criar uma nova atmosfera colaborativa que passe pela colocação nas escolas de outros técnicos. Os professores que estão nas escolas precisam de apoio para operar um processo de metamorfose da organização e funcionamento da educação escolar. Mas além disso é necessária uma nova estratégia para a formação dos novos professores.

E: O sistema de ensino, como base no que se aprende, com currículos definidos e metas de aprendizagem, com exames nacionais, está bem estruturado para as exigências de uma sociedade que se diz moderna e digital?

PP: A minha opinião é que não está. Há pouco referi-me às aprendizagens essenciais e explicava porquê. Decidiu-se agora fazer cair todas as orientações curriculares e programas, mantendo-se apenas em vigor as aprendizagens essenciais, lidas articuladamente com o perfil do aluno e os normativos da educação inclusiva. São avanços positivos e sinais de esperança. Mas claramente insuficientes. Estruturalmente tudo se mantém na mesma. O império das disciplinas não é minimamente questionado, nem as práticas de avaliação. A questão que não está respondida e à qual os desenvolvimentos mais recentes também não respondem é somente esta: Em 2021, na era da informação e do conhecimento, que conteúdos culturais são os mais pertinentes e adequados para uma educação de qualidade que atenda a toda a diversidade? Encontrar a resposta requer um trabalho complexo, profundo e amplamente participado que ainda não foi feito.

E: Pais mais escolarizados e mais exigentes com quem ensina. Até que ponto a relação entre famílias e professores é fundamental para uma educação capaz, robusta e democrática?

PP: A investigação publicada nas últimas décadas, quer quantitativa, quer qualitativa, assim como várias metanálises, mostra de forma inequívoca que o envolvimento e a participação das famílias na vida escolar dos seus educandos, quer em casa, quer na escola, tem um impacto positivo e duradouro na qualidade da experiência escolar e nos resultados académicos dos alunos. Está demonstrado. Há vários modelos de trabalho testados para construir parcerias escolares com as famílias e a comunidade que tenham impacto nos resultados escolares e na qualidade do ambiente educativo. Todas as famílias, independentemente do seu nível de instrução, podem constituir-se aliados poderosos dos professores e profissionais escolares. Claro que à medida que os níveis de escolarização das famílias se elevam vai haver cada vez mais pressão sobre as escolas e sobre os professores. As escolas têm de abrir-se às famílias e à comunidade. E o argumento democrático não pode ser ignorado, porque a educação escolar é um bem público e, portanto, as famílias e instituições da comunidade interessadas nas questões educativas têm o direito e o dever de participar. De maneira que o seu papel deve ser claro.


E: O que falta fazer para que o debate público sobre o que ensinar, o que trabalhar na escola com os alunos, e sobretudo porquê e para quê, aconteça verdadeiramente?
PP: Um segundo movimento de reforma semelhante ao que aconteceu a partir de 1986. Amplamente participado, gerador de um novo pacto social para a educação. Isto é extraordinariamente relevante. É necessário convocar todas as partes interessadas para um processo aberto e construtivo de debate dessas matérias, para o qual todos têm de ir com disponibilidade para fazer cedências e construir compromissos.

E: Os alicerces que construíram a Escola Pública continuam sólidos e firmes ou têm vindo a perder força e resistência?

PP: Nunca como hoje foi tão importante reforçar a solidez desses alicerces, assentes nos valores da justiça social enquanto concretização democrática. A rua e as relações de vizinhança praticamente desapareceram das vivências das crianças e jovens, que têm hoje existências hiper-reguladas. A escola, enquanto grande espaço público de encontro da diversidade, onde todos aprendem a respeitar-se, a cooperar e trabalhar juntos, a partilhar sonhos, ideais e projetos, de forma solidária e tolerante, não foi tão importante como na atualidade. Os espaços públicos de escolarização são a melhor apólice de seguro do nosso modo de vida democrático e o maior instrumento para construir uma sociedade mais justa. No entanto, também nunca foram tão fortes como hoje as ameaças conservadoras e neoliberais a este modelo de escolarização. Mas este é um debate que tem sido constantemente minado por preconceitos ideológicos, quer à esquerda, quer à direita, que apenas lançam confusão onde deveria reinar a serenidade. É possível promover a integração das redes pública e privada de ensino sem beliscar os valores da justiça social que estão na base do ideal público de escolarização.

E: O ensino aprendeu alguma coisa com a pandemia? A sociedade aprendeu a valorizar a classe docente em tempos tão complexos, com escolas fechadas e alunos a aprender à distância?

PP: A pandemia não resolveu nada. E se há coisa que mostrou é que a educação escolar não dispensa a interação presencial profundamente humana na qual os professores têm um papel decisivo. Mas trouxe o mérito de trazer para o espaço público o debate da educação escolar. Não podemos perder esta oportunidade para criar uma plataforma de entendimento que permita construir um pacto social e político para um novo movimento de reforma estrutural da educação em Portugal, amplamente participado.

E: Na contracapa do seu livro, lança a pergunta “como podem os professores liderar a metamorfose da escola?” Devolvemos-lhe a questão. O que podem fazer?

PP: Precisam, desde logo, de conquistar mais autonomia escolar e profissional. Mas, sobretudo, lançar mão de uma ferramenta essencial: a participação. A escola não se transformará enquanto se mantiver fechada sobre si própria e submersa nas culturas escolares seculares que moldam a sua vida organizacional e as vidas profissionais dos professores. A participação de outros atores é a chave da mudança da cultura escolar. Uma participação que só pode ser liderada pelos professores. Ao fazê-lo, enquanto líderes e organizadores de novos contextos escolares, reconquistarão o prestígio social e a autoridade profissional que tem vindo a esboroar-se. Não é tarefa fácil e levará tempo. Mas não podem esperar mais.

Fonte: Educare