sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pequeno... grande livro


Por
Padre José Martins Júnior


Cativou-me desde a primeira hora: pela singeleza do título, pela dispensa do chamariz publicitário, a que se dá o pomposo nome de Prólogo ou Prefácio, feito por não menos pomposa figura de proa. Cativou-me ainda por duas outras faces da mesma singeleza: a desnecessidade de propaganda nos jornais e nos audiovisuais cá do burgo e, mais ainda, essoutra maior desnecessidade de convidar as brasonadas entidades oficiais para a sua apresentação pública, numa sala tão livre e modesta quanto eloquente na sua simbologia: o Sindicato dos Professores da Madeira.





José Bernardino Gonçalves da Côrte, nascido em Aruba, filho de pais madeirenses emigrados, reside na Região e é docente de Artes Visuais na Escola da Ribeira Brava. Neste seu segundo livro, faz uma radiografia perfeita da idiossincrasia das gentes da Madeira, desde os meados do século XX. Numa bem arquitectada síntese de cinco narrativas, conectadas sob o signo da tradição natalícia regional, o Autor faz desfilar um vasto cortejo da tipologia identificativa de personagens ilhoas, trajes, usos e costumes, de onde sobressai o linguajar endémico da nossa mais profunda ruralidade, características estas que nos aproximam do estilo do nosso maior romancista, o madeirense Dr. Horácio Bento de Gouveia.

Merecem especial menção os recursos estilísticos disseminados ao longo de todo o texto, nomeadamente o manejo da antítese (um sorriso condoído nos lábios), a sinestesia (o assobio frio do vento), a personificação (os quatro peros arrepiaram-se; as pedras ajudaram a propalar a maledicência), os indícios, monitorizados nos nomes de algumas personagens tipificadas (Zé Carrega, Rafael Dedos-Leves, António Aqui-Vamos,) e nalgumas expressões peculiares (os 366 degraus da Vereda do Calado; a efígie de Custódio na estrela Sírius). O realismo queirosiano está bem patente na descrição de todos os cenários onde se movimentam os intervenientes. Noutro excerto, o desassossego esquecido e o esquecimento desassossegado remetem-nos para o “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa. De registar a utilização de uma apropriada terminologia técnica, sobretudo quando aplicada às alfaias de uso agrícola, às armas artesanais de defesa e à ambiência sócio-económica, cultural e religiosa das populações rurais. Neste item, o Autor traz reminiscências de Saramago no rigor vocabular e, remontando mais longe, de Aquilino Ribeiro n’A Casa Grande de Romarigães. Por onde se prova que a estética literária não tem uma única direcção nem se identifica como um feudo reservado aos grandes épicos ou aos romancistas de eleição. Tanto se revela nos históricos temas de fundo como se espelha na ingenuidade nativa do microcosmos de uma aldeia perdida nas montanhas.

Enfim, um pequeno livro, pelo escasso número de páginas. Mas um Grande Livro, pelo alcance das matérias em jogo, desde a riqueza anímica de quem tem o berço e a sepultura na terra que cultiva, de sol a sol, até aos escusos meandros dos instintos negativos da condição humana, nitidamente expressos no ofício d’Os Pilhas. Quem ler esta enciclopédia de bolso – Às Voltas – não ficará insensível à galeria de Mulheres, as vulgarmente designadas ‘mulheres de campo’, as viloas, todas iguais e todas diferentes na forma de estar, agir e reagir perante as circunstâncias do mundo rural, mais incisivamente em situações dramáticas, como aconteceu com Rosalina no confronto dos camponeses com as forças militares no Largo do Regedor: O coração puxava-a para um lado, o instinto de sobrevivência para outro.

As questões sociais, indissociáveis nestes aglomerados, não foram esquecidas pelo Autor, as mais penosas, a carência alimentar (uma cavala para dez pessoas de casa: nesse dia, o almoço fora milho cozido com cebolada e um cheirinho a cavala, um festim), o êxodo rural (tanta gente do campo a trabalhar na cidade), o contrabando local (Zé Preto Cabouco ia tentar comercializar a aguardente de cana, às escuras das autoridades, com os vendeiros locais da sua zona ou particulares), as lutas, em 1936, contra os monopolistas da manteiga.

Além dos dizeres comuns ao glossário aldeão esparsos em toda a narrativa, não resisto a reproduzir, em formato telegráfico, algumas expressões de fino recorte literário, tais como a gozadora cotovelada na comadre Justina ou Custódio bebeu mais um caneco para embriagar a frustração. E ainda, aquela dor que daí a pouco não saberia o porquê de estar a chorar e Ele recarregou-se de confiança e despiu-se do desânimo do acordar de hoje.
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Aqui ficam, pois, estes breves apontamentos de homenagem e gratidão ao docente Bernardino da Côrte pela exímia radiografia que nos trouxe neste seu livro, bem como aos ilustradores: ele próprio e Francisco José Pereira da Côrte, Orlando de Abreu Ribeiro, Paulo Ladeira, Marta Condez e José Nelson Pestana Henriques. O Autor soube rodear-se de excelentes colaboradores, entre os quais Lília Maria Gonçalves Pereira e Vanda Mónica Gomes Caixas, às quais são extensivas as mesmas saudações e agradecimentos. A actuação de um selecto quinteto musical e a encenação de um dos episódios do livro abrilhantaram condignamente a apresentação ao público, sob a competente moderação de Marisa Silvestre. A palavra final coube ao Senhor Bispo D. Nuno Brás da Silva Martins, que criteriosamente enalteceu a obra e considerou-a como a “expressão da genuína alma madeirense na vivência do seu Natal”.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

"A mentira tem sempre perna curta"


A  expressão idiomática "a mentira tem sempre perna curta" adequa-se ao que aqui me traz. Há políticos, julgo eu, que não estão convencidos disso, e, vai daí, discursam conforme as plateias como se toda a audiência fosse menos capaz para cruzar e interpretar as palavras ditas. Mentem de forma descarada pouco se ralando de serem apanhados na primeira curva. A realidade é uma coisa, porém, o discurso interessa, apenas, na medida que a repetição venha a gerar uma ideia de significativa prosperidade, de lugar único pelo conjunto de medidas políticas que consideram de relevante alcance.


Há dias, a propósito do meritório trabalho realizado pelo Lions Clube do Funchal, no âmbito dos Prémios do concurso Paz - Liderar com Compaixão, o secretário da Educação da Madeira assumiu:

"Todos nós somos diferentes, mas devemos ser todos iguais nas oportunidades. É por isso que procuramos assegurar, nas escolas da Região, as condições para que todos os alunos, todas as crianças, independentemente dos seus traços, tenham a oportunidade de percorrer um caminho de sucesso, que possa conduzir à concretização do seu projecto de vida, dos seus sonhos. Uma escola inclusiva, que recebe todos, integra todos e, acima de tudo procura criar as condições conducentes ao sucesso à medida de cada um (...)" - Dnotícias.

O contexto não interessa, concretamente, se a sessão se destinou aos portadores de qualquer diferença no quadro da inclusão. Interessam-me as palavras ditas face à realidade. E este naco discursivo tem muito que se lhe diga. Falou de igualdade de oportunidades, de caminhos de sucesso à medida de cada um, de projectos de vida e de sonhos. Tudo o que este sistema, pelo qual é responsável, não garante. 

Ora bem, não existe uma política educativa caracterizada pela igualdade de oportunidades, quando as assimetrias são inquietantes, cuja prova está nos 32% de pobres ou em risco. É um erro crasso argumentar a igualdade como se esta pudesse situar-se, apenas, no quadro da acessibilidade à escola. Essa constitui um direito constitucional. Era o que faltava se os governantes não cumprissem a Lei Fundamental! A verdade que contraria a mentira oficial está nos Censos de 2021, divulgada num excelente trabalho do jornalista do Dnotícias, Francisco José Cardoso: 36.485 residentes não terminaram a primeira fase (4º ano); 50,3% tinham escolaridade até ao 9º ano; 15 em cada 100 não tem qualquer nível de escolaridade; 8,1% com 15 ou mais anos não possui nível de escolaridade completo e o analfabetismo continua superior à média nacional. Quase 50 anos depois de Abril! E sabe-se, também, no quadro deste sistema, as pressões sobre a escola no sentido de evitarem retenções. Perguntem aos professores. É a estatística a prevalecer sobre o conhecimento. Ah, os indicadores referem que se verificou uma melhoria em relação à primeira década deste século! Pois, até se formos mais atrás, ao fundador da nacionalidade, obviamente que a comparação se tornará ridícula!  

Depois, quais caminhos de sucesso à medida de cada um, quando o sistema é heterónomo, subordinado à vontade e preceitos de quem se encontra no topo da linha hierárquica, gente política que asfixia a autonomia dos estabelecimentos com uma infernal e paranóica burocracia, onde, genericamente, nada se faz sem uma "devida autorização"; quando a liberdade criadora é cerceada; a centralização de todos os processos constitui norma, onde tudo passa pelo rolo compressor que entende que, ao contrário de um fato à medida de cada um, exige um fatinho de tamanho único. Todos têm de se ajustar, mesmo que, qual metáfora, as calças fiquem abaixo do joelho e as mangas pelos cotovelos. É falso, portanto, que exista qualquer caminho de sucesso à medida de cada um! O sucesso não é determinado pelos alunos, mas por um sistema que estandardiza e, por isso mesmo, afasta os alunos do conhecimento. Os números acima enunciados testemunham isso mesmo. 

Finalmente, projectos de vida e sonho? Mas alguém neste sistema pode aspirar a traçar o seu projecto de vida e de correr atrás do seu sonho? São os alunos que dizem: "não existe um propósito para ir à escola"; "o sistema educativo foca-se em coisas que não são importantes para a vida"; "a nossa formação é demasiado quadrada"; "estamos a desperdiçar tantas qualidades que os alunos têm" - do livro "A Escola é uma seca", página 26. E isto acontece porque, na esteira de Jaume Carbonell, in Pedagogias do Século XXI, "a função do professor não é ditar pensamento, mas ensinar a pensar". Poderá, neste quadro, haver lugar ao sonho? Escreveu uma aluna, Ariana da Silva Araújo, que "o sonho é uma planta que deve ser regada todos os dias para que cresça". Percebeu, Senhor Secretário? Ou, ainda, uma aluna madeirense que passou pelo curso de Medicina Universidade da Madeira. Em artigo, no Dia do Estudante, dirigiu-se aos colegas nestes termos: "(...) não deixes que outros te determinem. Tu és o teu próprio criador. Temos de dizer não a este círculo vicioso". Nesse artigo, dirigiu-se aos políticos com uma frase de potência máxima: "Ousem criar a escola que a sociedade vos exige". Percebeu, Senhor Secretário? É discursivamente obsoleto e falso falar de projectos de vida e de sonhos quando são os alunos a assumirem que esta escola está genericamente desfasada das suas preocupações, interesses, talentos e vocações.

Percebeu, Senhor Secretário? 

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Então o Secundário é acessório?

 

É mais uma particularidade de um sistema educativo estruturalmente desadequado e que integra uma terminologia sem sentido. Pelo menos do meu ponto de vista. Vejamos esta: neste momento, após o terceiro ciclo do básico segue-se o secundário. Certo? Pergunto: secundário, porquê?



Se consultarmos o significado da palavra secundário constata-se: "(...) que é de segunda ordem ou ocupa o segundo lugar em ordem, graduação ou qualidade, relativamente a outrem ou outro. De menor importância, matéria secundária. De pouco valor, acessório, inferior. Do latim secundariu, em segundo lugar (...)". 

Chamem-lhe tudo, menos secundário: "Nível 4 de Aprendizagem", pré-universitário ou pré-superior, agora, secundário, obviamente que sugere qualquer coisa de segunda ordem e de pouca valia. E aquilo que o actual sistema defende é que ele não é de menor importância. Até enquadra exames nacionais de acesso ao superior, logo, de redobrada importância. Que paradoxo!

Parecendo que se trata de uma questão de pormenor, não é. Talvez fizesse algum sentido quando a obrigatoriedade da aprendizagem terminava no 9º ano! O que vinha a seguir, lamentavelmente, era considerado "secundário" nessa lógica da obrigatoriedade do Estado garantir a todos a universalidade "tendencialmente gratuita" (que mal isto me soa) até aos nove anos de escola básica. Portanto, não é aceitável deixar transparecer que, apesar da escolaridade obrigatória ser agora de doze anos, aqueles três anos finais, sejam acessórios. 

E se trago à colação esta designação, muito semelhante a outras na classificação internacional, é porque entendo que, por um lado, não me parece correcto que se siga uma dada classificação assumida por outros, porque sim, por outro, porque o sistema deve constituir-se em harmonia quer nas designações, quer nos currículos, quer, ainda, nos programas ou nos formatos organizacionais. A diversidade é fundamental, o que me faz rejeitar padronizações europeias ou outras.

Mais, ainda. Porquê 1º, 2º e 3º ciclos? Hoje, não vejo onde reside a lógica da diferenciação dos ciclos. Então, repito, a obrigatoriedade da aprendizagem não é de 12 anos? E a aprendizagem não deve assentar num continuum e sustentada na integração do conhecimento, respeitando a interligação e cadência dos diversos patamares da aprendizagem? 

Ora bem, era aqui que queria chegar. Tenho tido a feliz possibilidade de cruzar muita informação, desde o que leio até aos contactos com professores e alunos, enfim, com pessoas preocupadas com o conhecimento que está muito para além da resposta dita "certa" (!) a um qualquer assunto do manual, por seu turno sucessiva e obsessivamente avaliado. E o que leio e o que oiço leva-me a concluir que o sistema tem de passar por um profundíssimo debate que adeque a sequência da aprendizagem ao tempo que nos coube viver. Temos o dever de virar o sistema de pernas para o ar. 

Não devem os políticos de plantão brincar com o tema Educação. A Educação é política e não partidária. É um desígnio de todos. Eu diria, menos propaganda e mais acção consistente no sentido de, corajosamente, preparar a Região para que o povo seja feliz cá dentro. Para isso, torna-se imperativo revolucionar o sistema educativo. E quem não tem essa capacidade, quem não consegue ver para além do horizonte visual, desampare o caminho. Em nome dos jovens e da resposta aos problemas sempre novos.

Ilustração: Google Imagens.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Ovelhas negras


Por 
Joana Martins

“És mais parecida com a mãe.” – afirma um adulto.
“Não, não, ela é mais parecida com o pai.” – diz o outro adulto.
“Eu sou parecida comigo mesma.” – responde a criança, determinada.



Crescemos a escutar comparações a todos os níveis, como se tivéssemos que seguir sempre as pisadas dos nossos antepassados e não nos fosse dada qualquer escolha. Às crianças, muitas vezes, traçam caminhos que não são os delas e exigem que sejam boas nisto ou naquilo, quando elas têm outros talentos prontos a eclodir para o mundo. Mais tarde, são encaminhadas para carreiras profissionais porque são “as melhores”, ou servem melhor às necessidades da família naquele momento, só que nem sempre as realizam enquanto pessoas. Seguem determinados padrões familiares porque é o mais aceite, e não querem problemas.

Depois, vão tentando colmatar os vazios dentro de si através de escapes como vícios e consumismo. Cada criança é uma pessoa, mas nem sempre é vista como tal. Nasce com um caminho próprio, com capacidades inatas, com defeitos e qualidades, com sentimentos. Em primeiro lugar, precisa de amor e compreensão, para que se sinta segura e seja amparada ao longo do seu crescimento, educada para olhar o mundo duma forma ampla, com respeito, e perceber a responsabilidade de fazer as suas próprias escolhas, e os tesouros e os perigos que o mundo oferece. As crianças e os jovens não são moldes, nem têm que reproduzir as expetativas dos adultos da família. Têm direito à diferença. A serem quem são e a deixarem brilhar a sua luz cá para fora.


Há quem se encaixe nos padrões, ou faça por se encaixar. Seja por achar que só assim terá sucesso numa área, ou que dessa forma irão olhar mais para si. No processo, acabam deixando a sua essência lá bem escondidinha, disfarçando quem são realmente e gerando camadas de proteções à sua volta, tendendo a apontar o dedo “aos outros” por tudo o que de mal lhes acontece. Aparentemente, a vida é mais fácil neste planeta para as pessoas brancas, bonitas, heterossexuais, magras, “com estudos” e carreira estável. Mas onde fica a diversidade? Nesta Era onde se valoriza tanto as aparências, o exterior e os “likes” e os “je suis contra isto e aquilo”, com alguma hipocrisia, esquecemo-nos por vezes daquelas pessoas, crianças, jovens e adultos, que não se encaixam na norma dominante. As ditas “ovelhas negras”, as pessoas “diferentes”, que muitas vezes são silenciosas e discretas, com um mundo gigante e bonito dentro de si raras vezes compreendido pela maioria. As pessoas que diariamente enfrentam desafios para sobreviver, e não têm nem tiveram escolhas, mesmo que quisessem fazer diferente.

Quando falamos de Direitos Humanos, cujo Dia Internacional se celebra a 10 de dezembro, devemos abordar o direito a Ser. O direito a quebrar estereótipos, ou as caixinhas onde nos querem encaixar à força desde que nascemos. Os meninos também podem vestir rosa, e as meninas também podem ser excelentes jogadoras de futebol. Os homens também choram e demonstram emoções. A nossa orientação sexual não é uma escolha, é simplesmente de quem gostamos. E nem todas as mulheres nasceram para ser mães. Poderia alongar-me indefinidamente nesta lista, que de certeza gerará algum debate. 

Na verdade, nesta quadra natalícia, e apesar daquela tristeza que surge pela ausência física do meu pai e da minha avó paterna, desde há alguns anos, os melhores presentes não se encontram na Black Friday ou nas lojas de marca. Estão dentro de nós e na compreensão e amor que podemos dar a quem nos rodeia, sem qualquer interesse, aceitando naturalmente as características únicas de cada pessoa, sem julgamentos. Desde que haja respeito e a noção de que a minha liberdade termina onde a da outra pessoa começa. Aproveitando a presença de quem cá está e desfrutando a vida.

A criança do início do artigo era eu. E segui e continuarei a seguir o meu próprio caminho. Muita paz, saúde e amor para todas as pessoas neste Natal.

sábado, 3 de dezembro de 2022

O Estado da Educação

 

Na passada Quarta-feira participei, como orador, na Escola Francisco Franco, num encontro sobre o "Estado da Educação". No final do debate, quando já poucos se encontravam na sala, um aluno aproximou-se e sem rodeios disparou: "oh professor, depois do que escutei, considera mesmo que isto está tudo errado?"



A pergunta, acreditem os que me estão a ler, não me surpreendeu, até porque já passei por situações semelhantes. É uma pergunta óbvia de quem deseja perceber os terrenos da aprendizagem que pisa. De professores a alunos, claro. Já fui confrontado com uma professora que me disse de chofre: "discordo da maioria das coisas que disse. Nós trabalhamos muito bem na minha escola". E eu respondi-lhe: ainda bem que discorda, por um lado porque não existem verdades absolutas, por outro, discordar é o primeiro passo para um debate sério, profundo e substancialmente argumentativo. O problema é que não se debatem as rotinas que levam a admitir a inexistência de outros formatos adequados ao tempo que estamos a viver.

Ora, a pergunta daquele aluno reflecte, também, a inteligência de quem não se acomoda. Respondi, serenamente, colocando-lhe a mão sobre o ombro, dizendo-lhe: que importante questão está a colocar! Sabe, não está tudo errado, mas não acha estranho que cerca de 11% dos rapazes e 15% das raparigas assumam que gostam da escola? Há muita "coisa" boa desenvolvida nos estabelecimentos de aprendizagem. Existem excelentes professores, só que, como eu salientei na minha exposição, tal como disse Alvin Tofller, não se pode meter o futuro nos cubículos do passado. Este sistema tem mais de duzentos anos, disse-lhe.

E a conversa continuou até à porta de saída da escola. Pelas escadas fomos conversando sobre as disciplinas e sobre a palavra conhecimento; falámos da tralha que invade os currículos e os programas; falámos do decorar para esquecer; falámos da excessiva burocracia que inferniza os professores e que lhes retira tempo para serem professores; falámos da pouca participação dos alunos na aprendizagem que continuam a ser mais receptores passivos de matéria, muita que para nada serve para a vida e falámos, ainda, do direito ao sonho e ao respeito pelo talento de cada um. Ao contrário de uma escola igual para todos, devíamos ter uma escola à medida de cada um, disse-lhe. Portanto, não está tudo errado. A configuração da estrutura do sistema é que tem de ser completamente diferente. E já no final do diálogo falámos de cidadania. Questionei-o: faz algum sentido, por exemplo, uma disciplina de Cidadania, no Básico, sujeita a avaliação? A cidadania é transversal, pertence a todos os professores, aos pais e todas as situações devem ser aproveitadas para dela falarmos. 

Fiquei feliz por este fugaz diálogo com um jovem à procura de uma interpretação da escola na compaginação com a vida. No regresso a casa, pensando sobre aquela sessão e sobretudo no interesse daquele aluno, veio-me à memória um jovem que, quando eu desempenhava funções políticas, irrompeu pelo meu gabinete para me pedir aquilo que considerou o "vosso projecto político para a Região". Estávamos a semanas de umas eleições legislativas e ele que, nesse ano, ia pela primeira vez votar, queria saber mais e daí a sua ronda por todos os partidos concorrentes. O seu voto não podia ser à toa, deduzi, por "influência" familiar ou qualquer slogan de campanha. Entreguei-lhe todos os papéis e apenas lhe disse: é a primeira vez que vivo uma situação destas. Parabéns. Leia todos e decida o seu voto. O voto consciente!

Parecendo nada ter a ver uma situação com a outra, a verdade é que ambos estão unidos na busca da compreensão dos diversos ambientes que a vida confronta: um na escola que frequenta; o outro preocupado com um dos mais importantes actos de cidadania. E isto é salutar. 

No caso daquela sessão sobre o "Estado da Região", oxalá, eu e a Professora Liliana Rodrigues, tenhamos conseguido despertar para a necessidade de um debate muito mais alargado. Bem disse a Professora Liliana que o processo educativo está muito centrado no professor quando devia estar centrado no aluno. É verdade. Só que, aos políticos de plantão, sobra-lhes em teimosia o que lhes falta em conhecimento, acreditam, piamente, numa escola igual para todos quando todos são diferentes; pedem aos jovens projectos "fora da caixa" quando bloqueiam, desde as primeiras idades, a criatividade, a inovação, o risco e a liberdade de cumprir o talento que cada um de nós transporta. Ainda hoje li uma interessante entrevista ao velejador de 83 anos, Sir Robin Knox-Johnston, que a páginas tantas salientou: "(...) Aos 8 anos eu já sabia que ia ser velejador, não sei o motivo, simplesmente sabia". Pois, o talento estava lá! Foi assim com Ronaldo que se esquecia dos livros, mas não abandonava a bola, com o aluno mediano e distraído Albert Einstein que deixou cedo a escola tradicional, foi assim com um outro que passava a vida a fazer riscos e o professor queixava-se de nunca estar com atenção... Pablo Picasso! Foi assim com Thomas Edison, considerado um idiota e aconselhado a deixar a escola. Decididamente, um fatinho de tamanho único não encaixa em todas as vocações.

O drama de tudo isto é que os políticos continuam a viver, ilusoriamente, no pedestal da autosuficiência, incapazes de aceitarem que as traves-mestras da escola de há duzentos anos não se adequam ao exponencial desenvolvimento em todas as frentes do conhecimento. Mantêm, por isso, e porque é mais fácil, uma escola fechada sobre os seus muros, impedindo-a de olhar para além do horizonte visual. Falta-lhes cultura no que concerne à capacidade de cruzar o entendimento de todos os sistemas (económico, financeiro, social, político, religioso, saúde, educativo, empresarial, enfim, todos) para daí partirem para uma aprendizagem compaginada com a vida. Sobra-lhes tempo para a propaganda mediática o que lhes falta para visitar, conhecer, escutar, ler, debater e colocar em dúvida os seus propósitos. Vivem no medo de arriscar na criação de actos portadores de futuro. 

Há dias, um jovem médico, Dr. Francisco Dionísio, num encontro acontecido no Funchal, falou exactamente desta preocupação: é preciso "deixar os jovens saírem da sua bolha para que possam ver o mundo". Assumiu que é "no sonho" que os jovens encontrarão sentido para as suas vidas. Ora, isso implica "partir e quebrar as amarras que os impedem de sonhar", sublinhou.

Ora bem, alguém uma vez me disse que a alguns (políticos) os devíamos confrontar com uma frase simples: "oh amigo, de vez em quando convém ler algumas coisitas".

Ilustração. Google Imagens.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O ESTADO DA EDUCAÇÃO




"O Estado da Educação - Educação, Cidadania e Democracia para o Século XXI" constituiu o tema de exposição e debate promovido pela Escola Secundária Francisco Franco.

Convidaram-me e entendi participar. Foi muito interessante expor aos alunos e a muitos professores, aquilo que entendo como as grandes mudanças a operar para que o sistema educativo se coloque na dianteira e, portanto, na resposta aos novos tempos que nos rodeiam.

Particularmente fiquei muito feliz por reencontrar e partilhar esta acção com a minha distinta Amiga Professora Doutora Liliana Rodrigues. Produziu uma intervenção de excelência.

Obrigado, Dr. Miguel Palma Costa pelo convite.