terça-feira, 28 de junho de 2022

A tempestade perfeita: aumentam as desigualdades educativas e cresce a falta de professores

https://www.publico.pt/2022/06/28/opiniao/opiniao/tempestade-perfeita-aumentam-desigualdades-educativas-cresce-falta-professores-2011616

Por
Paulo Prudêncio
28 de Junho de 2022
Público

Devemos pugnar pelo referido quadro da transição para a democratização. Mas não será suficiente. É também elementar suprimir de vez o que o neoliberalismo nos trouxe na avaliação dos professores e na gestão das escolas e agrupamentos.



Sucedem-se os factos. Ao aumento brutal das desigualdades educativas, associou-se a crescente falta de professores. A novidade, ou a tempestade perfeita, é que os dois fenómenos cresceram paralelamente, em consequência do desinvestimento na escola pública e na valorização social e profissional dos professores. É fundamental debater as causas e encontrar soluções.

Mas antes do mais, recorde-se que a massificação escolar no Ocidente conseguiu uma escolarização quase plena nos primeiros nove anos de escolaridade. Os países que mais avançaram fizeram-no sem turmas numerosas, sem educação a tempo inteiro na escola, com currículos completos, com avaliação contínua e exigente e com confiança nos professores. Digamos que foi o quadro da transição para a democratização. O que agora se regista é a queda desses pilares da prosperidade.

E para a compreensão da descida, é crucial estudar as teses de Daniel Markovits e Michael Sandel muito críticas da armadilha meritocrática, ou “tirania do mérito”, que travou a fundo o elevador social. No fundamental, os autores explicam como o investimento financeiro na educação se sobrepôs ao talento e ao esforço e originou, com efeito de bola de neve, um fosso crescente entre os ricos e as restantes classes sociais.

Nos EUA, um exemplo que já detalhei neste artigo, há explicadores de alunos do ensino secundário que cobram 530 a 880 euros por hora e o investimento anual por estudante nas escolas privadas com propinas mais altas é de 66.200 euros contra 13.200 na escola pública. Para além disso, há estruturas privadas, do pré-escolar ao universitário, que também recebem fundos públicos (Princeton, por exemplo) e que têm uma média impressionante de oito alunos por turma.

Por tudo isso, concluiu-se que o aumento das desigualdades educativas condenou ao empobrecimento as classes com menos recursos e gerou uma polarização política com votações extremadas. Se é fundamental agir a partir das causas para, no mínimo, se atenuar a tragédia, Joe Biden declarou (10 de Junho de 2022) que "quer enterrar o neoliberalismo e promover empregos mais bem pagos", no que parece ser acompanhado por outros governos ocidentais, e Olaf Scholz denunciou a farsa meritocrática na campanha eleitoral; e se é difícil declarar o diagnóstico, é dificílimo concretizar caminhos alternativos a políticas tão enraizadas.

Descritos os pontos prévios, faça-se um exercício produtivo a pensar no futuro. Procurem-se variáveis críticas que associem as desigualdades educativas e a falta de professores a partir da inevitabilidade - que tem vantagens e desvantagens - da transição digital, que é, sublinhe-se, uma prioridade de negócio para as gigantes tecnológicas.

Uma causa que relacionou as componentes da tempestade perfeita, e por estranho que pareça, foi a “abolição” da lentidão nas salas de aula das escolas públicas. Ensinar, e aprender, devagar e com tempo, ficou fora das prescrições didácticas. A voracidade do digital acelerou a impossibilidade do humano como professor no ensino público, já que exigiu um manancial de soluções rápidas como condição para se ter alunos atentos, motivados e entretidos.

Foi, portanto, só com relativa surpresa que se confirmou que o digital “absoluto” não favoreceu as aprendizagens; pelo contrário: não só aumentou a adição tecnológica, como autorizou o protesto nos momentos vagarosos. Os professores testemunharam a substituição da transmissão de conhecimentos pelo entretenimento, com um detalhe curioso: em regra, os adolescentes transformaram-se em narcisistas desagregados na sua bolha digital. Há até posições peremptórias para a proibição dos dispositivos digitais antes do ensino secundário, fundamentadas no que foi referido e na necessidade da aquisição de várias destrezas intelectuais através do uso do papel e do lápis.

Foto Daniel Rocha

O universo descrito acelerou as desigualdades educativas e a exaustão de todos os professores; e, obviamente, independentemente da idade. Até a consistente Finlândia "confessou" uma década muito difícil na educação e já enfrenta a desistência em se ser professor. O Governo conservador (de 2015 a 2019 e coligado com a extrema-direita dos “Verdadeiros Finlandeses") de Juha Sipilä, um milionário das telecomunicações, foi pioneiro na estratégia das “políticas rápidas” e das reformas alicerçadas em projectos velozes, descontextualizados e fragmentados. O resultado foi mais privatização, mais instabilidade e menos investimento.

Um outro sinal desesperado foi dado pela França. A recente aplicação digital que "recruta professores em 30 minutos" está condenada ao insucesso; até pela indiferença dos destinatários. Mas para além da “preocupação com a fragilidade dos recrutados”, a crítica incide na inexistência de uma reserva de professores já formados e recrutados por concurso, nos desperdícios em projectos, ou organizações representativas, que implicam milhares de professores sem componente lectiva e no uso de avultadas quantias em profissionais e programas das federações de encarregados de educação.

Outra causa fundamental centrou-se numa espécie de paradoxo da velocidade. Os decisores do digital “absoluto”, e veloz, nas redes de recursos educativos, foram incapazes de acelerar a construção de software moderno nas redes de recursos administrativos e provocaram a hiperburocracia digital que infernizou o exercício dos professores.

Chegados aqui, afirme-se que em democracia nunca se está bloqueado. Neste caso, e desde logo, devemos pugnar pelo referido quadro da transição para a democratização. Mas não será suficiente. É também elementar suprimir de vez o que o neoliberalismo nos trouxe na avaliação dos professores e na gestão das escolas e agrupamentos.

E apesar do saber muito insuficiente sobre o modo como cada um aprende, já se inscreveram dois imperativos para enfrentar a tempestade perfeita: 1) sensatez, equilíbrio e prudência no uso do digital; 2) professores confiantes que ensinem a sério em escolas públicas e não apenas nas dos mais ricos.

Mas só se reduzirão as desigualdades, se a generalização do ensino de qualidade se fizer sem os recreativos modismos de “learning coaches” porque a finalidade não é a produção de indivíduos não gregários, passivos, acríticos e hedonistas. Aliás, a democracia exige a dimensão pública da educação e a insubstituível e vagarosa relação humana: olhos nos olhos e corpo a corpo.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

"O jogo é a fonte comum de todas as actividades superiores"


A propósito de um texto que aqui deixei, subordinado ao título "Educar para a vassalagem", o meu Colega e Amigo Joaquim José de Sousa, o da Escola do Curral, o tal que foi, claramente, perseguido e vilipendiado, apenas por desejar uma escola desenhada para o êxito das crianças e jovens (não para o mediatismo do poder político), deixou uma mensagem, simpática, que achei curiosa. Escreveu: "E o diagnóstico está feito...". Quando li tive duas reacções para comigo mesmo: primeiro, no quadro do que escrevi, considero que existem muitos importantes aspectos a juntar ao "diagnóstico". Diagnóstico que só será possível quando a mesa do diálogo for aberta a todos os intervenientes no processo educativo; segundo, mesmo que o diagnóstico estivesse feito, falta o mais importante: "fazer". Porque, tal como os chapéus, diagnósticos "há muitos"! Ou melhor, para já, o mais importante será desfazer os nós cegos que deram no sector, que conduziram à apatia dos professores, à doentia normalidade, ao desinteresse dos alunos e ao silêncio da sociedade.



Meu Caro Amigo, percebo o seu comentário, mas num outro patamar, eu diria que o diagnóstico está feito há dezenas de anos, bastando para isso ler, interpretar, cruzar e perceber o que deixaram escrito tantos autores. Por isso, deixo aqui mais uma mera reflexão, em jeito de exemplo, por ter lido, ainda ontem, um texto publicado por Rejano Regio, a 24 de Abril de 2022:

"(...) a escola na Finlândia é muito diferente até os 7 anos de idade, os alunos são livres para fazer o que quiserem, podem brincar e explorar o quanto quiserem. É nesta idade que as crianças aprendem a socializar, a gerir as suas emoções e simplesmente a viver em comunidade com os outros (...) e resultados provam-nos que é inútil impor uma disciplina de ferro aos alunos desde cedo para que se tornem brilhantes.".

A verdade é que aprendem e muito. A liberdade dessas crianças designa-se por aprendizagem, onde a pergunta tem mais importância que a resposta. E mais tarde aparecem no topo das provas comparativas entre países. Mas o que li, sublinho, não tem nada de novo, tem apenas de conhecimento, de inteligência política e de ambição em quebrar a nociva mentalidade infelizmente reinante. Há um livro de Jean Château (1908/1990 - Professor da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Bordéus - Biblioteca Filosófica), publicado em 1961, que assume (cito de cor): "se o jogo desenvolve as funções latentes, compreende-se que o ser mais bem dotado é aquele que mais joga". Aliás, Schiller, muito antes já defendera que "o Homem não é completo senão quando joga". Para ela, escreveu Jean Château, "quase toda a actividade é jogo e é pelo jogo que ela descobre e antecipa as condutas superiores" (...) "A infância é, portanto, a aprendizagem necessária para a idade madura".

Ora bem, o que assistimos não é a prevalência do jogo (entendido no sentido lato) do movimento libertador e inteligente, mas a presença do adulto que limita ou mesmo castra a afirmação do seu Eu, o das crianças. Assumiu o Psicólogo Eduardo Sá, com o qual concordo: "A escola é um novo tipo de trabalho infantil (...) retirámos as crianças do trabalho para lhes devolver infância e, agora, empanturramo-las de escola (...). A escola está a roubar a infância (...) Nunca vi falarem tanto das crianças e nunca vi que se espatifasse tanto a infância".


Desde as primeiras idades que elas têm metas a atingir. Os educadores e professores foram empurrados para a vertigem de uma pseudo-aprendizagem. E neste processo quase todos ficam felizes, menos as crianças. Os próprios familiares ficam contentes, porque elas já sabem fazer isto ou aquilo, esta ou aquela habilidade. Poucos param para pensar no processo, se não estaremos a queimar etapas importantes do crescimento. Diz Château no seu livro: "o jogo desempenha para a criança, o papel que o trabalho desempenha para o adulto (...) a infância tem, pois, por finalidade, o treino, pelo jogo, das funções tanto fisiológicas como psíquicas (...) a infância é, portanto, a aprendizagem para a idade madura". O desprezo pela criança é tal que a loucura na busca de resultados já conduz à entrega de prémios (de produtividade) entre € 100 e 500,00 aos que mais "produzem"! Dir-se-á que as taras da sociedade entraram na escola.

Caro Professor Joaquim Sousa, ao diagnóstico falta muito, muito mesmo, desde as primeiras idades até ao 12º ano. Até ao ensino superior. Há uma clara ausência de formação dos políticos. Guiam-se pelo passado, digo eu. Genericamente não sabem onde estão e onde desejam chegar. Por isso, o sistema assenta em bases erradas, ou melhor, em pressupostos que os adultos criaram, para gáudio deles próprios, na pressa de tornar adultas aquelas que são, apenas, crianças. O problema é que a maioria das pessoas, influenciadas e pouco esclarecidas, ainda acredita que, tal como disse o Professor José Pacheco, é possível, hoje, uma consistente aprendizagem e de sucesso junto de "crianças do século XXI, que são acompanhadas por professores do século XX, que utilizam as metodologias do século XIX". Só podia e só pode dar erro. Não apenas por isso, mas aqueles trágicos resultados que apresentei na minha reflexão de 18 de Junho, revelam, a montante, muitas insuficiências de pensamento. Então, pergunto, pressa para quê? Queimar etapas para quê? De que serve subir de três em três os degraus da aprendizagem? Ler, escrever, contar, perceber o mundo e as relações e conexões de tudo não devem estar sujeitas a currículos e programas ditados de forma uniforme quando cada criança é única. 

Não precisamos de ir à Finlândia para importar um paradigma diferente da aprendizagem. Portugal tem autores e investigadores de qualidade. E tem exemplos de escolas que funcionam de forma distintiva. Não as matem. Basta que os políticos estejam disponíveis para perceberem que "(...) as crianças aprendem pela brincadeira e através do relacionamento com as outras crianças, com os professores à sua volta, e é assim que fazem sentido do mundo, desenvolvendo suas habilidades e construindo conhecimento", assumiu a pedagoga Rejano Regio.

Obrigado por, através do seu comentário, ter-me dado a possibilidade de escrever este texto. Juntei mais um exemplo, o das crianças. Imagine-se o que não está por fazer até ao final da escolaridade! Um abraço.

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 18 de junho de 2022

Educar para a vassalagem

 

Preocupa-me o estado da Educação. Num plano mais vasto, todo o Sistema Educativo. Quanto mais procuro interpretar o pensamento dos autores e investigadores de vários quadrantes, directa ou indirectamente ligados a este sector, mais perplexo fico com o estado de apatia e até de insensibilidade que os actores do sistema manifestam. À excepção de uma manifestação, em 2007, onde cerca de 120.000 professores se concentraram em Lisboa, ruidosamente, contra a ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, após sucessivas trapalhadas, daí para cá, há a evidência de um preocupante silêncio. As periódicas manifestações sindicais, os posicionamentos de diversos articulistas, as reportagens, os seminários e outros fóruns de debate, tornaram-se quase irrelevantes no sentido de uma verdadeira sacudidela no sistema. A saudável inquietação deu lugar ao conformismo.



Não sei se devo considerar desânimo geral por circunstâncias várias, se medo ou incapacidade de reagir por fragilidade de pensamento sobre os desígnios de uma Educação portadora de futuro. Talvez um pouco de tudo isto. Para milhares, a instabilidade profissional, a incerteza de colocação, o poder hierarquizado e extremamente centralizado, o receio de uma perseguição por actuação desconforme com a lei, o normativo, a circular, o despacho, as consequências da permanência das mesmas figuras que se eternizam nos lugares de direcção dos estabelecimentos de aprendizagem, etc., tudo isto e muito mais, estou convicto que conduz ao desinteresse. Mesmo sufocados por uma enervante e crescente burocracia, os novos entendimentos sobre como fazer aprender, de uma maneira geral foram colocados a um canto. Há excepções, obviamente, mas o objectivo raras vezes vai além daquilo que configura o superiormente definido. Se está certo ou manifestamente errado o estipulado pela linha hierárquica, tal pouco interessa ao debate. O exercício da docência que, em circunstância alguma, devia ser um acto solitário, está, convicção minha, mergulhado nisso mesmo, na solidão. Cumpre-se o currículo e o programa, adormecendo, serenamente, na almofada de quem está no vértice estratégico. E essa sonolência concede a sensação que os problemas deixam de existir. 

É a escolha entre ser convicto, participativo e a eventualidade de se meter em sarilhos. Eu que vivi uma significativa parte do Estado Novo, que passei por essa escola directiva, selectiva, limitadora e sem horizontes, que apreciei comportamentos e fui docente antes de 1974, tenho dificuldade, naquilo que é essencial, eu diria estrutural, encontrar significativas diferenças na submissão, na vassalagem, no conformismo e na doçura perante a "autoridade" política. O formato da centralização, apetece-me dizer, entre aspas, da "polícia política" é que é outro. Há uma falsa sensação de liberdade, porque é sensível um genérico medo em ditar uma opinião frontal que abale os alicerces do sistema. São poucos os que o fazem. E os que por aí se aventuram, estando no activo, são silenciados de diversas formas. Pela subtil pressão, pela avaliação de desempenho castigadora ou até pela oferta de lugares de algum relevo. Acredito que muitos sintam essa necessidade de pensar alto em função das suas leituras do mundo, do esgotamento em que se encontram, do desejo que chegue a aposentação, porém, o rolo compressor da uniformidade passa, esmaga e neutraliza vontades. Caímos no abismo de uma educação para a vassalagem.

Será que não é preocupante perceber as razões e actuar em conformidade, a montante da sociedade e a jusante na escola, em função dos dados que a estatística oficial nos coloca à frente dos olhos? Por exemplo: que dez em cada cem jovens ficam para trás? Que a Região tem o mais alto índice de risco de pobreza e de exclusão social (32,9%)? Que os últimos censos mostraram que 49,7% dos madeirenses possuem, apenas, o ensino básico e 15,3% não têm equivalência a qualquer grau de ensino? Que 53% da população activa tem apenas o ensino básico e 46% dos desempregados têm menos do que o 9º ano? E que 10.500 jovens entre os 16 e os 34 anos não trabalham nem estudam? 

Já agora, outras perguntas: e na escola, qual a razão para 84% dos professores desejar a aposentação rápida e sem penalizações? O que está na causa de um em cada cinco professores tomar medicamentos e outras drogas para suportarem o dia-a-dia da profissão? Quais as razões de tanta depressão que conduz ao absentismo? Quais os motivos da generalizada desmotivação dos alunos? Qual a relação existente entre o desinteresse, a pobreza, os currículos, os programas e a organização da escola?

Já estamos a pagar, em vários domínios, a factura da irresponsabilidade. E o fosso será cada vez maior quanto mais tempo demorarmos a pensar e propor um caminho baseado no conhecimento trazido por tantos pensadores e autores de diversas áreas. Acordem para a realidade.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 14 de junho de 2022

“A escola é uma seca”

 

Intervenção 
do Doutor Francisco Gomes
na Feira do Livro do Funchal  



Muito boa tarde e parabéns ao autor pelo brilhante trabalho que hoje é apresentado.

O livro do Professor André Escórcio constitui um dos raros exemplos de uma obra que vale antes sequer de começarmos a ler a primeira página.

E isto tem a ver com aquilo que a obra é na sua essência: um trabalho sério de um pensador íntegro que, de mente e coração abertos, rompeu com a demagogia de reflectir sobre a Educação com base em impulsos pseudo-modernos e politicamente correctos, mas, pelo contrário, ousou pensar a Educação nas linhas daquilo que a mesma pode e deve ser, isto é, um processo de crescimento físico e mental que assume, sem receios, o objectivo de transformar o mundo numa comunidade de gente bem formada e que trabalha, com determinação e gosto, para se transcender no alcance desse privilégio colectivo que é a felicidade.

Um trabalho desta abrangência e desta profundidade só nos poderia chegar pelas mãos de um homem como o Professor André Escórcio e não é difícil perceber porquê.

É porque pensar a Educação requer tempo, ponderação e a humildade de estar disposto a aprender com as lições que nos são transmitidas por aquilo que se tem vindo a passar dentro das nossas escolas, dentro das nossas salas de aula e dentro de cada aluno e de cada professor.

Por isso, pensar a Educação não se coaduna com a pressão que é típica de quem quer, de quatro anos em quatro anos, dizer que, antes, tudo estava mal e que, agora, tudo é brilhante.

É também porque pensar a Educação requer a paciência e a objectividade para olhar para os factos, para os testemunhos de quem vive a Escola e de quem faz a Escola na sua dimensão humana, respeitando os sentimentos, as opiniões e as ilações que são passíveis de extrair dos testemunhos de quem está na linha da frente e de quem, nessa linha da frente, testemunha o que o autor caracteriza tão bem como o “desencontro inevitável que está instalado entre a escola e a vida”.


Por isso, pensar a Educação não se compagina com a apetência para massajar os dados, moldar as estatísticas e reduzir aquele processo a números que não medem (e que nunca medirão) a dimensão Humanista de uma área onde, como o autor aponta, “qualquer coisa de podre está lamentavelmente instalada”.

Minhas senhoras e meus senhores,

Neste livro, está um percurso de décadas. Um percurso muito pessoal e de alguém que percebeu, há muito, que um país que se divorciou da delicada tarefa de educar, não serve para nada, da mesma forma que um país que forma os seus e depois os exporta por qualquer preço, não é um país de verdade.

É, porventura, um Estado a prazo ou, por demasiadas vezes, um manicómio em auto-gestão.

Mas, de uma maneira ou de outra, é um país está a odiar-se e a suicidar-se, pois não entende as sementes que anda a jogar à terra e os frutos que, para prejuízo de todos nós, já tem vindo a colher.

E o que são esses frutos?

O autor é claro: “Uma escola onde ninguém é feliz.”

Mas – e atenção – quem pensa que este trabalho se limita a pensar a Educação de um ponto de visto teórico ou fundamentado em exercícios hipotéticos de experimentalismo intelectual ficará certamente desiludido. A esses, que porventura adoram se banhar em discussões estéreis sobre currículos, programas, organigramas, padronizações do sistema e uma suposta meritocracia que não existe - a esses, definitivamente, não recomendo a leitura desta obra. Pois a mesma é um trabalho que, recusando mediatismos, aponta, com rigor e visão estratégica, caminhos práticos e exequíveis para reformas que tardam.


E que este importantíssimo livro, pelo qual devemos estar gratos, nos chegue quando estamos a sair de uma crise pandémica, que suspendeu a vida durante dois anos, não é coincidência nenhuma.

Durante esse tempo, de uma forma mais visível ou mais discreta, assumimos o compromisso de fazer parte de uma nova construção, de repensarmos estratégias, de sermos diferentes e de agirmos diferente relativamente aos outros e a tantos aspectos da sociedade.

Mas o confinamento passou e nós voltamos às ruas como delas tínhamos saído: enormes na pegada que deixamos no carbono, cheios de protagonismo e até aborrecidos com o tempo que nos parece ter sido roubado e que urge compensar.

A Escola também está de volta. Sobreviveu.

Da noite para o dia, teve de responder ao maior desafio da sua existência moderna. Mas sobreviveu! E nunca será demais recordar que os grandes responsáveis não foram as tutelas, nem as autarquias.

Os grandes responsáveis foram os professores.

Não abandonaram os seus alunos e imediatamente iniciaram o trabalho nas suas casas, com os seus próprios meios e com as condições que tinham ao seu dispor: o seu computador, o seu ‘tablet’, o seu telemóvel, a sua Internet e a sua energia eléctrica.

Mais! Exerceram a sua profissão no seu espaço familiar e íntimo, com os alunos a entrar virtualmente pela casa dentro, sem que ninguém lhes tivesse sequer pedido licença para abdicar da sua privacidade.

Mas, se há problemas que o profissionalismo, a competência, a dedicação e a paixão dos professores ainda resolvem ou vão disfarçando, há muito outros que, como este livro sabiamente indica, perduram no tempo, delapidando um sector que é nevrálgico, mas vítima constante da inépcia da parte de quem mais deveria fazer para preparar o futuro.


Destaco, destas ponderadas e profundas páginas, seis desafios que se colocam à Educação e para o qual o autor muito nos sensibiliza.

O primeiro desafio é também o mais básico: o facto da generalidade dos professores nem um lápis tem da escola. Pagam as suas ferramentas de trabalho com os salários que recebem, e, com o apoio das mesmas, dão o melhor para, dia e noite, estarem disponíveis para os alunos e para os encarregados de educação.

Não são mentira os telefonemas que recebem dos pais às oito, nove e dez da noite e os quais atendem para que os assuntos sejam resolvidos.

Não são mentira os e-mails que recebem dos alunos a essas mesmas horas (e até mais tarde), mas que respondem para que as dúvidas fiquem esclarecidas e para que os trabalhos sejam validados.

Sobre estes esforços – que permitem que o Sistema de Ensino funcione, apesar das lacunas elementares que perduram – nem uma palavra de reconhecimento público, nem um galardão.

E este livro ajuda-nos a perceber que é também por causa de atitudes dessas que o espírito de missão e de entrega que caracteriza a generalidade dos professores é também, e tantas vezes, desconsiderado e secundarizado pela opinião pública.

O segundo desafio é o da tecnologia, e, sem qualquer desprimor para com as facilidades comunicacionais que as novas plataformas trouxeram, este livro convida-nos a não esquecer que a Educação é, acima de tudo, um acto relacional. E é só através dessa relação humana que a escola poderá conseguir lutar para garantir os cuidados, a protecção, os afectos, a igualdade de oportunidades e os estímulos que potenciam um desenvolvimento individual e coelctivo.


Por isso, insistir de forma simplista na revolução tecnológica ou até no Ensino não-presencial faz, como tem feito, com quem muitos fiquem para trás – ou porque não têm computador, ou porque não têm acesso à rede, ou porque têm necessidades especiais que não se coadunam com tal modelo de aprendizagem, ou, simplesmente, porque os seus pais têm de optar entre adquirir um computador ou por comida em cima da mesa.

Minhas senhoras e meus senhores,

Este livro sensibiliza-nos, e muito, para o facto de que, em vez de insistirmos na noção de que a tecnologia é uma panaceia para uma Educação em crise, seria muito mais útil e importante recuperar a relação pedagógica, a qual é o único canal para conquistar o que o autor pertinentemente classifica como uma escola “que assegura a curiosidade de cada aluno”.

Pelo contrário, insistir em plataformas que não estão ao alcance de todas as famílias, ainda mais numa sociedade com níveis crescentes de pobreza, é fazer com que o modelo de Educação se converta, ele mesmo, num canal para o aprofundamento das assimetrias sociais existentes. Ou seja, a escola a espelhar o fosso entre ricos e pobres que corrói e corrompe a nossa fibra humana e de comunidade.

Temos que fazer melhor!

O terceiro desafio é a inaceitável e incompreensível sobrecarga de trabalho que hoje recai nos ombros dos professores, que já não estão na escola apenas para patilhar conhecimentos ou aprofundar a busca pelo Saber. Não!

O professor é psicólogo, é educador para a sexualidade, é conselheiro nutricional, é formador Ético, guia Moral e até polícia.

O professor é funcionário das fotocópias, pois a fotocopiadora está sempre avariada ou porque não há papel.

O professor é agente de Acção Social, pois organiza recolha de alimentos para as famílias dos alunos mais carenciados.

O professor é funcionário da limpeza, pois a higienização das instalações e dos materiais pedagógicos não se faz sozinha e os poucos auxiliares que existem estão ocupados no outro lado da escola ou, simplesmente, de baixa.

O professor é técnico de ocupação de tempos livres, pois idealiza e materializa actividades extra-curriculares que procuram estimular o desenvolvimento dos alunos.

O professor é burocrata, pois passa uma porção irracional do seu tempo a preencher papelada inútil que só serve para certos terceiros fazerem brilharetes.

O professor é pai e mãe, pois as famílias estão, numa confrangedora generalidade, alienadas do processo educativo, olhando para a escola como uma espécie de entreposto onde depositam os filhos o mais cedo possível e de lá os recolhem o mais tarde possível.

E, no meio de tudo isto, alguém ainda pensa que os professores têm o tempo e a disponibilidade mental para ensinar?

Não! Muito pelo contrário! A situação é tal que, na maioria das nossas escolas, no meio das tantas folhas, tabelas e exigências, ensinar transformou-se numa mera e triste nota de rodapé.

Temos que fazer melhor!

O quarto desafio que este livro nos traz é o facto de que as escolas são, todos os anos, sem excepção, brindadas com orientações que introduzem naquelas instituições um quadro de indefinição, confusão, desorientação e incertezas.

A juntar a isto, e falando concretamente dos tempos mais recentes, as escolas têm que lidar com disposições legais que, na prática do contexto escolar, valem uma tábua rasa.

Ou não se sabia que era totalmente impossível andar atrás de cada aluno para saber se tem a máscara posta ou tirada?

Ou não se sabia que era totalmente impossível cumprir distanciamento social em turmas com vinte e cinco ou trinta alunos?

Ou não se sabia que era totalmente impossível manter três metros de distância nas aulas de Educação Física?

Claro que se sabia!

Temos que fazer melhor!

O quinto desafio que este livro nos apresenta é o de perceber que a escola é um centro de formação, no qual deve ser nutrido o respeito pela capacidade de pensamento dos intervenientes, pelo quadro de Valores que formam a nossa identidade e pela integridade moral, que deve ser estimulada e acarinhada.

A escola não é um centro de doutrinação, onde os programas e os currículos estão orientados para certas directrizes filosóficas, estéticas e até ideológicas que são consideradas desejáveis e boas por quem assumiu que manda na Educação. Este problema é uma questão demasiado séria, pois choca directamente com o tipo de cidadãos que estamos a produzir e o que eles e elas irão, por sua vez, considerar bom ou mau na vida quotidiana.


Temos que fazer melhor!

O sexto desafio que o autor nos lança é o de corrigir o problema estrutural que existe no Ensino, nomeadamente a sua desadequação para preparar um país de futuro.

O Sistema de Ensino tradicional, que é o praticado na esmagadora maioria das escolas públicas, foi construído para servir as necessidades de uma sociedade industrial.

Como tal, os alunos eram (e ainda são) forçados a receber grandes quantidades de informação estandardizada, que têm de memorizar de forma mecânica, pois serão posteriormente testados através de exames padronizados.

Nesta lógica, o Ensino torna-se num mero sistema que tem na conformidade e na concordância as noções que levam a bons resultados académicos e a uma mente supostamente inteligente.

Mas, e como o autor indica, nada poderia ser mais errado!

O mundo em que hoje vivemos é muito mais acelerado e complexo do que era, e, como tal, o mercado de trabalho das próximas décadas será muito diferente daquele de há algumas décadas atrás.

Portanto, para enfrentar os desafios desta nova vida, as crianças e os jovens que hoje realizam a sua formação não precisam de conformidade e concordância e metodologias ditas adequadas, as quais só levarão ao agravamento das taxas de abandono e à subida na proporção de estudantes considerados ‘especiais’, ‘hiper-activos’ ou com ‘défice de atenção’ porque, simplesmente, não se enquadram nos padrões definidos como normais. Pelo contrário, precisamos de um Ensino que potencie e valorize as competências que são fundamentais para a vida e para o trabalho numa sociedade globalizada, nomeadamente competências de comunicação, competências colaborativas, competências digitais, criatividade na resolução de problemas complexos e pensamento crítico.


A juntar a isto, precisamos de um Ensino que invista mais na determinação, na perseverança, no auto-conhecimento, no optimismo e no reconhecimento do valor que existe nas diferenças entre os seres humanos.

Pelo contrário, insistir nas ideias de sempre é insistir nos crimes que andam a matar a escola.

Aliás, como o autor sugere, a escola morre.

E os professores sabem-no.

E é também por isso que a classe não se rejuvenesce. Em breve, não teremos professores suficientes. E, também assim, pagamos o preço de lideranças sem competência, nem visão, para tornar a carreira docente atractiva para os bons e para os melhores.

A escola morre.

E os alunos sabem-no.

E é também por isso que o abandono escolar é uma realidade.

Apresar das exigências serem cada vez menores e de ser praticamente impossível para um professor chumbar um aluno nos dias que correm – ou seja, estamos totalmente focados no facilitismo e em criar uma geração de medíocres – muitas das nossas crianças e jovens continuam a espelhar uma apatia preocupante e que é comprometedora do futuro.

A escola morre.

E os pais sabem-no.

E é também por isso que estão fartos que lhes peçam que contribuam para fundos de maneio para a aquisição de material escolar básico.

Fartos que os filhos cheguem a casa a queixar-se da ‘qualidade’ das refeições nas cantinas.

Fartos dos pavilhões em que chove dentro.

Fartos das janelas da sala que não fecham e levam a constipações e gripes.

Fartos dos edifícios que, há anos, são deixados ao abandono.

Assistem à falência do Ensino público e sabem, lá no fundo, que, por muito motivados que estejam os professores, eles e elas, só por si, não têm a capacidade para fazer a mudança.

Intenções? Sim, estão lá. Mas, no inferno, também.

Minhas senhoras e meus senhores,

Numa era em que tanto gostamos de falar dos modelos seguidos nos outros países, o autor deste brilhante trabalho sabiamente recorda-nos que era bom que percebêssemos que não precisamos de copiar nada, nem ninguém.

Precisamos, só e apenas, de fazer o que o Professor André Escórcio nos desafia a fazer neste livro:

Olhar com carinho para o que temos

Valorizar o que de bom ainda conservamos

Avançar para a mudança cuja urgência conhecemos

Perceber que a Educação é a argamassa que nos une

E sentir, com responsabilidade e respeito, que, enquanto não pensarmos a Educação, nunca poderemos, nem conseguiremos, pensar um país.

Muito obrigado, Professor André Escórcio, pelo muito que as suas palavras nos ensinam.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Feira do Livro do Funchal - "A ESCOLA É UMA SECA"




A organização da Feira do Livro convidou-me, aceitei e ontem tive mais uma oportunidade para falar sobre Educação. Estou grato à Drª Sandra Nóbrega, líder da equipa responsável por esta edição.

O tema deveria ser motivo de um alargado debate entre professores, alunos, pais e políticos. Sinto, infelizmente, que o sistema continua a ser passado pelo rolo compressor da uniformidade. A minha convicção é que vamos pagar muito cara esta apatia, desde logo no plano da economia e da felicidade das pessoas. A centralização dos processos, a aflitiva burocracia que invadiu as escolas, a rotina, os currículos, os programas e o formato pedagógico estão a matar talentos e sonhos. É o que dizem tantos estudos, reportagens, filmes e desabafos. A escola manifesta-se incapaz de olhar o mundo e de respeitar as crianças e os jovens.

Mas, ontem, senti-me acompanhado e, permitam-me, com uma sensação que vale a pena "meter o pauzinho nesta engrenagem". Fiquei feliz, após uma minha mensagem de agradecimento, a Drª Andreia Batista, que no evento representou o Departamento de Cultura da Câmara, ter escrito: "Tudo o que partilhei vem do fundo do meu coração, porque acredito mesmo que está na altura de parar e olhar para a educação e para a cultura de outra forma: com os olhos do coração e a mente de um ser humano!" Esta frase diz tudo.

Convidei para apresentar o livro o Doutor em Ciência Política Francisco Gomes. Uma só palavra: emocionante. Pelo pensamento profundo que transmitiu e pelas preocupações enunciadas. Excelente. Um dia destes publicarei aqui o seu texto. Vale a pena lê-lo, creiam.

Obrigado a todos.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

sábado, 4 de junho de 2022

Para ler e reflectir... com muitas interrogações!


NOTA
https://www.publico.pt/2022/06/04/sociedade/noticia/escola-nao-ha-professores-aulas-conhecimento-base-ha-2008861
Daniela Carmo (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia) 4 de Junho de 2022,

Nesta escola não há professores nem aulas. “O conhecimento é a base, mas há muito mais do que isso”

A Brave Generation Academy é um projecto educativo que nasceu em Portugal e pretende ir além da simples transmissão de conhecimento. “Quando eu e a minha esposa fomos à primeira reunião com a learning coach da Inês, sentimos, pela primeira vez em tantos anos de ensino, que a pessoa com quem nós estávamos a falar conhecia a nossa filha.”

 
Foto Fundador da BGA diz que o método de ensino tem de ser 100% focado no aluno Daniel Rocha


O relógio ainda não marca as 10h nesta manhã de quinta-feira em que o sol pouco se mostra. Na sala, um grande espaço aberto dividido numa espécie de ilhas com mesas e que este mês se vestiu de arco-íris (em alusão ao Pride Month, LGBTI+), contam-se meia dúzia de caras, já com os computadores ligados à sua frente. Pouco a pouco os aprendizes (learners, como por ali lhes chamam) chegam ao Hub da Brave Generation Academy (BGA), do Centro Cultural de Belém. Falamos de uma escola que não é bem uma escola: não há aulas, nem professores e os alunos são aprendizes. Alguns deles, enquanto chegam, vão mastigando os últimos pedaços do pequeno-almoço.

O entusiasmo é partilhado por todos de cada vez que uma nova cara entra pela porta que, por enquanto, fica aberta. Dão os bons dias, alguns cumprimentam-se com um aperto de mão e conversam. Quando assim decidem, sentam-se e começam a estudar. Na última mesa do canto direito, mesmo encostada à parede do fundo, encontramos Lucas e Fausto, de 15 e 14 anos respectivamente.

Estão ambos a ligar-se, por via Zoom, para assistir à lição de Português. É assim que funciona a aprendizagem por ali, feita através de um ecrã de computador. Mas isso não significa que os aprendizes não tenham de ir “à escola” diariamente. Eles são, aliás, encorajados a passar pelo menos cinco horas diárias no Hub, dessa forma convivem, conversam, conhecem os colegas, interagem. Voltamos à aula de Português, o tema de hoje: podcasts. Alguns minutos depois de ouvirem a course manager (cargos que exigem formação em ensino para leccionar), Fausto e Lucas têm liberdade para ouvir alguns minutos de programas que foram deixados na plataforma online da disciplina.

Lucas, que entrou na BGA em Setembro último, escolheu as disciplinas sobre as quais pretende aprender, num total de sete, à semelhança do que acontece com todos os learners. Antes de integrar a academia estudava numa escola pública. Que mudanças? “Tudo”, responde quase sem pensar. E pega no exemplo concreto da aula de hoje. “O tema é a comunicação e as diferentes formas de chegar às outras pessoas. A Isabel [course manager] vai sempre buscar formas diferentes, quase subentendidas, para dar a matéria, não é como na minha antiga escola”, explica o jovem.   

 
A Brave Generation Academy dá liberdade aos aprendizes para escolherem as disciplinas Daniel Rocha

Academia pretende ser um lugar de partilha e colaboração entre todos Daniel Rocha

Cada aprendiz avança ao próprio ritmo Daniel Rocha

 

Ao recordar o sistema de ensino anterior diz que “era tudo mais rígido”, por exemplo, na avaliação, nos horários, nas próprias metodologias lectivas, no contacto com o professor. Se, por um lado, agora tem liberdade para escolher o que quer e quando quer fazer, algo que não acontecia no ensino tradicional público, por outro lado, a responsabilidade também aumentou. “Nós somos os responsáveis pelo nosso sucesso, ou insucesso”, começa por explicar.

Flexibilidade de horário exige responsabilidade

“Onde antes sentia muita pressão, de repente, deixei de sentir e isso também me faz falta”, sublinha. Lucas decidiu entrar na BGA para experimentar um modelo diferente daquele a que estava habituado na escola pública e, volvido quase um ano lectivo, já tomou a decisão de mudar de escola novamente no próximo ano. “Não é por não gostar de aqui estar, mas não se enquadra no que eu quero. Eu gosto de desporto e, por isso, quero ir para a escola profissional no próximo ano.”

Já Luke Gomes (17 anos), que se junta à conversa, quer continuar na BGA “até não poder mais”. Há ano e meio que chegou da África do Sul com o resto da família e encontrou em Portugal um lugar onde permanecer. “A segurança” é o principal motivo, algo que no país de origem não encontra tendo em conta a criminalidade elevada.

Luke não assiste à lição de Português como os outros dois jovens, é mais velho e está num nível diferente. Por isso, trabalha agora de forma autónoma. Começou por escolher Geografia como uma das disciplinas a estudar, mas algum tempo depois percebeu que não é uma matéria que lhe dê gosto aprender e acabou por alterá-la. A BGA permite-lhes fazer essa escolha.

Temos de aprender coisas diferentes, temos de ir atrás daquilo de que gostamos e não apenas focar naquilo em que somos fracos, mas antes naquilo em que somos bons para ficamos ainda melhores. É assim que somos notados no mundo Tim Vieira, fundador da BGA

A academia, cuja mensalidade é de 450 euros (20% dos alunos dispõe de uma bolsa de estudo atribuída pela própria BGA), segue o Currículo Internacional Britânico para alunos a partir dos 12 anos. Ou seja, a base académica incide nos Lower Secondary (12 a 14 anos), IGCSEs (14 a 16) e A-Levels (16 a 18 anos) do modelo britânico. De acordo com Tim Vieira, empresário sul-africano (e luso-descendente) e fundador e CEO da Brave Generation Academy, há três pilares que norteiam aquele modelo de ensino: o conhecimento, as capacidades/ habilidades e a comunidade.
Desenvolver além do conhecimento

Além das actividades lectivas — que por si só pretendem já desenvolver a capacidade de autonomia, a auto-regulação ou a responsabilidade através de um modelo mais focado no estudante que define todo o plano de aprendizagem — existem diferentes clubes que os jovens podem integrar de forma a desenvolver outras capacidades (por exemplo, de inteligência emocional, fotografia, negócios, artes, entre outros). “O conhecimento é a base, mas há muito mais do que isso e é por isso que o nosso segundo pilar são as skills. Temos de aprender coisas diferentes, temos de ir atrás daquilo de que gostamos e não apenas focar naquilo em que somos fracos, mas antes naquilo em que somos bons para ficamos ainda melhores. É assim que somos notados no mundo”, defende Tim Vieira.

Quanto ao terceiro pilar, a comunidade, o pressuposto é o de interagir com o meio em que cada Hub está inserido, por exemplo através de projectos de voluntariado. “Nunca podemos estar felizes se não trabalharmos com a nossa comunidade, se não fizermos coisas positivas para a nossa comunidade.”

Lucas e Fausto integram um clube que leva aulas de português a pessoas refugiadas afegãs. O clube tem lugar na Casa Pia e os dois jovens, a par de mais três colegas, despendem cerca de duas horas por dias, duas vezes por semana nesta actividade. Ambos concordam que é um projecto positivo e que lhes tem permitido conhecer novas realidades. “Eu acho que isso faz parte deste sentido de comunidade. No fim, eles são mais felizes”, diz Tim Vieira.

   
Método de ensino actual é “desconectado” do mercado de trabalho

Nuno Fernandes é pai de uma das aprendizes do pólo de Cascais e não estava satisfeito com o tipo de ensino anterior, num colégio privado. Crítico do modelo de ensino tradicional, defende que “o método aplicado, seja público ou privado, é absolutamente desconectado com as necessidades que os jovens têm de enfrentar no mercado de trabalho”.

Além disso, um dos pontos que destaca e a que dá importância é que os learning coaches realmente conhecem quem está à sua frente. “Quando eu e a minha esposa fomos à primeira reunião com a learning coach da Inês, sentimos, pela primeira vez em tantos anos de ensino, que a pessoa com quem nós estávamos a falar conhecia a nossa filha.”

E exemplifica: “Conhecia-a não só numa perspectiva de que está bem a Inglês, menos bem em Matemática, etc. Foi mais do que isto, foi dizer que ela está com determinadas dificuldades ao nível social, mas por outro lado manifesta muita autodisciplina, muita iniciativa na parte da aprendizagem, por exemplo. Ou seja, [a learning coach] é alguém que conhece a nossa filha além do resultado académico e isto faz muito sentido. Faz-me sentir que ali a minha filha tem uma oportunidade muito mais rica de se desenvolver enquanto ser humano com alguém que a ajuda, em vez de ser alguém que de tempo a tempo faz uma avaliação.”

No Hub do CCB encontramos Kayla Harnage, uma das learning coaches (e não professora), que nos explica que tem como função, além de ajudar os aprendizes em dúvidas que surjam, garantir que “existe um bom ambiente de ensino”. E esse bom ambiente reflecte-se na proximidade que têm uns com os outros, assim como no retorno que os pais sentem.

"A educação está sempre a mudar"

Natural dos Estados Unidos da América, onde se licenciou em comunicação intercultural, Kayla está há mais de três anos em Portugal e sempre quis trabalhar na área da educação. Deu várias aulas e explicações de diferentes línguas antes de chegar a solo português e entrar para a BGA em Janeiro último. “A beleza desta academia é dar-lhes espaço para eles [os aprendizes] serem o que quiserem. A educação está sempre a mudar e ter a oportunidade de aqui estar é mover-me na direcção certa.”

Para a learning coach, na “escola dita normal” o “professor não tem tempo nem espaço para se focar e ter intencionalidade com cada um dos alunos” devido ao elevado número de estudantes que cada turma tem. “Acho incrível que possamos estar a fazer o que fazemos com os learners ao investir tempo neles para que possam ser o que quiserem. É importante que descubram quem são, as suas forças, as suas fraquezas, os sonhos.”

A ideia é partilhada pelo próprio fundador da BGA: “O ensino tem de ser 100% focado no aluno. Os learners são os mais importantes em tudo isto e, sem dúvida, que estamos a fazer a coisa certa porque os vemos a sorrir, a terem mais confiança e a quererem vir para o Hub, a quererem estudar.”
"Ele agora já gosta da escola"

Esse entusiasmo com a aprendizagem não passou indiferente a Gabriel Becker que notou uma grande mudança no comportamento do filho. “Ele agora já gosta e quer vir à escola”, refere o empresário francês, que esta manhã está também no Hub a dinamizar um workshop de negócios.

Faz-me sentir que ali a minha filha tem uma oportunidade muito mais rica de se desenvolver enquanto ser humano com alguém que a ajuda, em vez de ser alguém que de tempo a tempo faz uma avaliação Nuno Fernandes, pai

O grupo é integrado por meia dúzia de aprendizes, que se sentam nos sofás no canto esquerdo do pólo, ao lado da mesa de Lucas e Fausto, que já estão na fase final e a debater com a course manager a matéria dos podcasts. Entre os membros do workshop estão Manuel e Ricardo, de 18 e 17 anos, cujo objectivo é desenvolver uma aplicação móvel para a BGA e outras escolas que a queiram utilizar.

Mas não falam só de negócios e de empreendedorismo. Agora, Gabriel Becker está a lembrá-los da importância de cumprirem com os tempos de entrega dos trabalhos, algo que dá boleia a outro tema: a confiança. “Se nunca cumprirem com as deadlines, se se atrasarem, ninguém vai confiar em vocês”, alerta o empresário. E Rodrigo, learning coach, chama a atenção dos aprendizes que parecem meio distraídos. “Oiçam isto que é importante, têm de ter esta responsabilidade”, alerta. Trocam mais algumas ideias, em inglês, que é a língua usada sempre nos Hubs, e o workshop termina.

Do lado direito da sala, a lição de português dos mais novos também chega ao fim. Lucas passa para Inglês. “Estou mais atrasado do que queria e vou-me dedicar um bocadinho a isso agora.” E Manuel e Ricardo ocupam os lugares da mesa central para passarem eles a assistir à lição de Português que dali a minutos se inicia. Antes disso, brincam com colegas que já ali estavam sentados. Riem.
Aprendizes podem trocar de Hub em todo o mundo

Entre eles encontramos Keily, de 20 anos. Natural de Moçambique, a jovem integrou aquele Hub há um mês, mas já conhecia a academia de Maputo, onde estudava desde Setembro. A BGA é um projecto além fronteiras: em Portugal existem 36 e 21 no estrangeiro, em países como a África do Sul, Moçambique, Namíbia, Espanha ou Reino Unido, entre outros. “O outro Hub era mais pequeno e aqui já conheci novas pessoas, novas realidades. Apesar de ainda estar aqui há pouco tempo, já fiz bons amigos e acho que isso é um bom sinal”, abona Keily.

No futuro, a jovem quer fundar uma organização não-governamental “para ajudar crianças de diferentes países na educação, como um learning coach”. “Não sei se quero ir para a faculdade, mas quero viajar, quero ganhar bagagem, quero trabalhar, fazer estágios e conhecer novas realidades. Acho que é isso que realmente nos educa.”

Apesar de ainda não saber se vai continuar os estudos, Keily vai fazer os A-levels — os exames finais no sistema de ensino britânico equivalentes ao fim do ensino secundário e que servem também para o acesso ao ensino superior — no próximo mês de Novembro, tal como Manuel e Ricardo, e assim terminar o ciclo de estudos. A avaliação por ali também acontece, apesar das diferenças em relação ao modelo tradicional. Além dos exames finais, têm ao longo do percurso avaliações aos diferentes módulos, que podem ser, por exemplo, mensais. Mas defendem que essa avaliação não é feita para dar uma nota, mas antes perceber que o conhecimento foi adquirido. Só passam ao módulo seguinte se tiverem um aproveitamento de pelo menos 80%.

De acordo com Tim Vieira, a BGA não pretende representar “uma cisão para com o ensino tradicional”. “O conhecimento está na base, é ele que abre portas para o futuro.” E como são os próprios a escolher o que querem aprender, os desafios que querem enfrentar, situações de ansiedade extrema no momento da avaliação são praticamente inexistentes. “Não há nenhuma vantagem em ter um estudante que tem ansiedade e que está a tomar remédios para conseguir lidar com a escola e com as emoções. Não é preciso isso, há outras maneiras. Eu acredito mesmo muito que ter uma criança ocupada a fazer o que gosta de fazer, a criança vai estar bem.”

Quanto à avaliação e tendo em conta que a BGA existe há pouco mais de um ano, ainda não é possível fazer um balanço em relação ao sucesso do projecto. Mas Tim garante que “80% dos aprendizes está à frente dos objectivos”. Até ao momento, 40 alunos já fizeram exames. Os resultados vão chegar em Agosto deste ano. Em Novembro será a vez de Keily, Manuel e Ricardo. Acabou a lição de português dos mais velhos. No pólo do CCB voltam-se a contar menos caras: é hora de almoço.