quinta-feira, 18 de agosto de 2022

José Pacheco: merecemos uma escola muito melhor do que imaginamos


Por
AbrilAbril
15 de Agosto de 2022

A educação do presente está prestes a virar passado. Ao AbrilAbril, José Pacheco, co-fundador de um novo projecto educativo em Portugal, expressou a sua intenção de transformar, de vez, este ensino de «infelicidade dos professores e desinteresse dos alunos».


O professor José Pacheco, numa sessão da ANDEA, Associação Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem (São Paulo, Brasil), em 2019. Créditos/ ANDEA


Se a educação é um direito, não há como fugir a um dilema moral: se os alunos não aprendem, para que é que continuamos a dar aulas? A impingir centenas de testes e exames ao longo da escolaridade obrigatória? Porque é que teimamos em dividir alunos por turmas, de 30 alunos cada? Duzentos anos depois, insistimos num modelo que já provou, uma e outra vez, que não funciona.

Há 50 anos, esta mesma dúvida assolou o professor José Pacheco, recém chegado à Escola Básica da Ponte, em Vila das Aves: «Se eu continuasse a fazer isso [dar aula], seria anti-ético». Não é o aluno que não aprende, são as aulas que não o ensinam.

Desta inquietação nasceu um novo projecto pedagógico, único no mundo, numa escola pública no meio de uma das comunidades mais pobres em Portugal. A Escola da Ponte tornou-se numa referência internacional pelos seus resultados: são os alunos que gerem e organizam o seu próprio tempo, sem divisões por turmas ou idades, sem testes nem exames, numa avaliação verdadeiramente contínua.

A partir de 2007, José Pacheco apoiou a formação de centenas de espaços educativos em comunidades por todo o Brasil (de que são exemplo o Projecto Âncora e a Escola Aberta de São Paulo), sustentados na experiência acumulada em 28 anos de coordenação do projecto da Ponte.

A Open Learning School, da qual é co-fundador, marca o retorno, em definitivo, do professor a Portugal. A escola, do ensino privado, pretende «romper definitivamente com as práticas do passado», oferecerendo «uma educação conectada com as necessidades e desafios do séc. XXI».

Mas a revolução no sistema educativo não fica por aí: em Setembro, centenas de professores da escola pública portuguesa vão assumir o mesmo compromisso ético que norteou a vida de José Pacheco, estabelecendo turmas-piloto em vários pontos do país. A nova escola está a passar por aqui.

A Open Learning School pretende transformar a educação em Portugal pela força do exemplo?

Toda a aprendizagem nasce do exemplo e da imitação.
A intenção é exatamente essa: concretizar aquilo que já o Baden-Powell dizia (o criador do escotismo): nenhum ensino pode prescindir do exemplo. Nesse sentido, a Open Learning parte de uma referência incontornável: a Escola da Ponte.

Essa escola foi a primeira no mundo que logrou fazer aquilo que ainda hoje é um mito: colocar o aluno no centro do processo de aprendizagem. Nos dias de hoje continua, nas escolas, na velha aula, com o professor como centro. A Escola da Ponte deu autonomia aos alunos, criou aquilo que se chama o protagonismo juvenil, há 46 anos. Ela é conhecida em todo o mundo, excepto em Portugal, claro.

[A Open Learning] surge quando voltei do Brasil (estive 20 anos fora) e me deparo com uma situação que nunca imaginaria: alguém, no espaço empresarial, possuía sensibilidade suficiente para criar uma escola na linha da Escola da Ponte, Projecto Âncora, da Escola Aberta de São Paulo (porque a Ponte não está sozinha, no estrangeiro tem muita, não é réplica, mas semelhança com outros projectos). Um empresário que tem dois filhos, e quer para eles a educação que a escola não dá.

Quando eu falo de escola não é apenas a escola da rede pública, de Portugal, que não dá. A escola da rede pública de Portugal é a uma escola do séc. XVIII, séc. XIX. Nós temos alunos do séc. XXI, com professores do séc. XX, a trabalhar no séc. XIX.

As escolas privadas, em geral, são muito diferentes?

Não... As escolas particulares são iguais às escolas da rede pública, apenas têm um marketing muito forte, mais computadores, mais telas digitais, mas é a mesma história... Não, não há diferença nenhuma. Aliás eu digo sempre que toda essa publicidade é fake news. Esta [a Open Learning] posso assegurar que não é.

Esta é uma iniciativa séria, de um homem que quer o melhor para os seus filhos, como todos os pais querem. Só que nós vivemos numa sociedade em que existe uma doença mortal, que é considerar que essa escola que aí está, é a escola que nós merecemos. Não é.

Tal como aceitamos e imitamos os bons exemplos, também repetimos os maus...

Exacto. A sociedade civil, as famílias, vivem com esse pecado, essa doença: foram formatadas naquilo que viveram, enquanto alunos. Mas é possível sair disso. É possível, é necessário e é urgente.

Nós vamos ter, muito em breve, companhia para a Open Learning. O que a Open Learning já fez foi, em muito curto espaço de tempo, conseguir abrir alguns lugares onde os pais assumiram um projecto idêntico. Está a formar tutores, professores-tutores, enfim, está a avançar de uma forma que eu não esperaria.

Isto tudo, embora o mercado da educação seja muito competitivo e onde há, como te disse, muitos maus exemplos, um marketing muito agressivo e que não fala a verdade.

Numa palestra o professor José Pacheco afirma que «ninguém sozinho faz o que quer que seja». Para além dos professores, dos tutores e dos alunos, quem são os autores da nova escola?

A escola, como a temos hoje, também tem referências, tem autores. São é autores do séc. XVII e do séc. XVIII. Tem Comenius (1592-1670), que dizia que é possível ensinar todos como se fosse um só, temos o Fröbel (1782-1852), depois temos, no paradigma da aprendizagem, que é aquele que a Escola da Ponte segue, Maria Montessori (1870-1952), Claparède (1873-1940), John Dewey (1859-1952), Kilpatrick (1871-1965), Steiner (1861-1925), Francisco Ferrer (1859-1909), do movimento da escola moderna, o Piaget (1896-1980), o Wallon (1879-1962)... não faltam autores.

«É essa nova construção social que vai substituir a que está aí há 200 anos e que só cria desigualdade: infelicidade nos professores e desinteresse nos alunos.»


Mas nós estamos a entrar já num período em que reina a inteligência artificial e onde já há, infelizmente, robôs que substituem dadores de aula.

Estamos no tempo do paradigma da comunicação, que também tem autores que são referências para nós, a começar por Seymour Papert (1928-2016), por exemplo, Agostinho da Silva (1906-1994) (o grande Agostinho da Silva, português), Siemens (1970 -), Castells (1942 -), Maturana (1928-2021), Paulo Freire (1921-1997) (incontornável) ou Lauro de Oliveira Lima (1921-2013).

Aquilo que a Open Learning está a fazer tem fundamento científico. Se eu pergunto numa escola particular:

- Olhe, porque é que tem aula? não sabe;

- Porque é que a aula dura 50 minutos? não sabe;

- Sabe fazer a raiz quadrada? Não? Então, mas teve aula sobre a raiz quadrada, aprendeu? Não...

Ninguém aprende numa sala de aula.
Como explica esta perspectiva tão antiquada de escola? Tanta gente consagrada na área de pedagogia, tanto trabalho realizado sobre a questão, professores formados nestas matérias. No concreto, nada acontece...

Esses génios, esses inspirados educadores, acontecem apesar da escola. Tudo o que eles foram, e aprenderam, foi à margem da escola, à margem dessa escola. Um exemplo: houve um aluno cuja mãe recebeu um aviso de que ele era um idiota, que seria melhor tirá-lo da escola, e a mãe retirou-o. Esse idiota chamava-se Thomas Edison. Outro que era um aluno mediano a física e a matemática mas estava sempre distraído, teve que sair da escola: Albert Einstein. Outro passava a vida a fazer riscos e o professor queixava-se de que ele não estava com atenção, saiu da escola aos 14 anos: Pablo Picasso. Queres que continue?

Eu não me comparo a qualquer um desses, é evidente, quem sou eu... Coitado de mim... Mas, repara, eu vim da engenharia, eu resolvi ser professor pensando, e agindo, de forma diferente do professor formado como professor. Eu aprendi a ser professor à margem da escola.

Quando eu tenho que fazer o magistério, a que fui obrigado para poder exercer, eu não aprendi nada, absolutamente nada. O que eu aprendi veio de leituras que eu fiz: Maria Montessori, Ferrer, por aí abaixo. Foi aí que eu aprendi.

Foi à margem da escola. Apesar da escola. Se tivessem sido um produto da escola seriam trabalhadores acéfalos, que servem todo o mercado, vendendo a vida para ganhar a vida, mantidos num tripálio, sem sentido nenhum, sem realização pessoal, sem desenvolvimento de talentos... As salas de aula são cemitérios de talentos.

O professor Agostinho da Silva costumava dizer que esta escola tinha a mesma função de uma fábrica militar: formando um exército de mãos para servir as necessidades do mercado, autómatos que garantem o funcionamento desta sociedade.



Trabalhamos, ainda, como se isto fosse o séc. XIX. É preciso pensar numa alternativa, agora. Se daqui por dez anos, 80% dos empregos actuais deixarão de existir, cada um tem de ser um designer da sua própria formação, tem que ter um projecto de vida. Isso não acontece na sala de aula, não acontece. Há um livro do Charles Dickens, o Tempos Difíceis (Hard Times, 1854), que, logo nas primeiras páginas, descreve um sistema educativo que, com diferenças pontuais, é igual ao que existe hoje, em Portugal (a obsessão pelos factos rigorosos, a cultura do silêncio e da humilhação, o professor no palanque). Como é que tudo fica igual, passados 200 anos?

É uma, das duas únicas instituições que não mudaram nos últimos 200 anos: a Escola e a Igreja.

Temos aqui um problema sério, porque há muitos obstáculos à mudança, e o primeiro obstáculo sou eu, é cada um dos professores, é a cultura profissional. Formataram-nos numa cultura e nós reproduzimo-la, reproduzimos um modelo social do séc. XIX.

Depois, há a sociedade, que pensa que a escola tem que ser como sempre foi. Os pais acham que sim. 'Acham', é achismo...

Depois, os alunos. Quando fui trabalhar para a universidade, tive alunos que queriam que eu desse aula, então perguntei:

- Porquê? O que é que querem ser?

- Nós queremos é dar aula e manter a disciplina, responderam.

- Então mudai de profissão, porque ides ser pessoas infelizes e ides fazer os alunos infelizes.

Que é que é isso? Dar aula e manter a disciplina? Isso é séc. XVIII! É a Prússia Militar, que foi uma das criadoras desta escola. Militar. Já Maria Montessori, em 1907, dizia que a escola da modernidade (esta que nós temos aí) é a que gera competitividade, é a origem remota de todos os conflitos, de todas as guerras. Têmo-la aí, na Europa, no séc. XXI.

Não é por acaso: é a educação familiar, a educação social e a educação escolar que estão na base desses atitudes, desses valores. É, também, uma nova visão do mundo que vem com a Open Learning, uma nova Visão do mundo e da educação.

Vai ser difícil penetrar nesse mercado, que está povoado de fake news, de particulares que não são mais, ou até são menos, do que a escola pública.

Quais são esses princípios? Fomentar a Autonomia, a Solidariedade?

Sim, a Autonomia é um conceito relacional: ninguém é autónomo sozinho, ninguém aprende sozinho, muito menos com um computador. Computador não tem alma, não tem espírito, não dialoga, está programado.

A diferença, fundamental, é que nesta escola, a Open Learning, todos têm direito à educação. Na outra escola não: olha para os centros de explicações, cheios, olha para o burnout dos professores, olha para o suicídio juvenil, basta olhar para aí para perceber que aquilo não funciona.

Há diferenças fundamentais e a primeira é essa: é que eles aprendem mesmo.

O que está escrito na Constituição da República Portuguesa é que a educação é um direito de todos. As escolas particulares, ou públicas, não cumprem esse direito. Muitos miúdos não aprendem, ficam analfabetos, literais ou funcionais. A escola está à margem da lei, não cumpre a lei.

As escolas têm projectos educativos e não cumprem esse projectos educativos, a prática nas escolas é o contrário daquilo que está escrito, está tudo fora da lei e assim não se aprende.

Não será porque a escola pública está, hoje em dia, demasiado focada em dar resposta a problemas sociais demasiado graves?



A escola tem de ter um tipo de currículo que não seja esse que aí está, um currículo de pronto-a-vestir, como diria um amigo meu, o João Formosinho [professor catedrático e presidente da Associação Criança], é coisa de pronto-a-vestir, igual para todos...

Pergunto. Alguma vez precisaste de usar a raiz quadrada na tua vida?
Não [o entrevistador não se recorda. Assim como assim, não a saberia fazer sem uma visita ao Google]...

Eu já perguntei a milhares e milhares: ninguém precisou. Então para que é que isso está no currículo? Se eu quiser saber a raiz quadrada, se eu precisar, pego no meu iPhone e, em cinco minutos, aprendo.

Sabes porquê? porque eu aprendi a aprender.
É esse o principal propósito da escola? Ensinar a aprender?

É um deles, vou explicar-te.

Tudo parte de um axioma: escolas são pessoas. Não são prédios... NÃO são prédios! São pessoas... As pessoas são os seus valores. Esses valores determinam princípios da acção que, eticamente, a pessoa desenvolve. Chegados aqui, temos a necessidade de rever o que é um professor. Professor não é aquele que prepara projectos para os outros; é aquele que constrói projetos com os outros. Porque a minha liberdade não termina onde começa a liberdade do outro: a minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro.


O professor faz planificação de aulas; O tutor, da Open Learning e de outras escolas, não faz planificação de aula, porque aula é inútil. O tutor não vai planificar, o tutor ensina o outro a gerir a sua vida, a planificar a sua vida, a gerir o seu tempo, o espaço, a construir um projeto de vida pessoal a partir das vocações, dos talentos, que cada um tem. E todos nós somos diferentes.

«Porque a minha liberdade não termina onde começa a liberdade do outro: a minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro.»

Os professores dão aulas; os tutores organizam roteiros de estudo de tripla dimensão curricular, onde não é concebido um currículo... É produzido currículo e conhecimento, a partir, sempre, de uma necessidade concreta, através da pesquisa. Os tutores têm que ensinar os alunos a saber seleccionar a informação.

Se o aluno for sozinho, pesquisar, investigar, ele perde-se na Internet... tanta informação, tanta fake news, ele perde-se...

O aluno tem que saber seleccionar a informação pertinente; ao seleccionar a informação pertinente, tem de a criticar e analisar (é esta que eu preciso!); depois, tem de ter outro processo complexo de pensamento, que é o de sintetizar; ao sintetizar, comparar com outras informações: a comparação; tem de saber avaliar essa informação; ao avaliá-la, está a construir uma evidência da aprendizagem.

Ele aprendeu. Ele transformou uma necessidade num processo de pesquisa; de um processo de pesquisa, trabalhou a informação; e agora, comunica a produção desse conhecimento: socializa essa comunicação.

Quando sinto que já sei. Quando eu sinto que já sei algo, eu partilho com os outros. Isso é a avaliação através de evidências de aprendizagem: há todo um processo de pesquisa, de metacognição, de pensar sobre o pensar, que ajuda o ser humano a saber procurar, a saber estudar, a aprender a aprender.

Como é que a Open Learning School inclui a tecnologia no seu processo de aprendizagem? 

Esta conversa seria muito diferente há 20 anos, quando não havia Internet e os computadores eram, ainda, coisas muito rudimentares.

Em todas as escolas com que eu trabalho, e a Open Learning é uma delas, os alunos trabalham a todo o momento com computador, com iPhone, com tablet, com tudo o que é tecnologia digital.

É através da tecnologia que os alunos vão recolhendo informações e vão aprendendo, ao contrário de escolas que eu conheço em que quando chego, por exemplo, durante o intervalo, toca a campainha (PRRrrriIIiin) e as crianças e os jovens saem, pegam no telemóvel, sentam-se no chão e passam o tempo de intervalo agarrados às redes sociais e a jogos idiotas. Toca outra vez (PPRrriiiIInn), e voltam todos para dentro, têm é que deixar ficar cá fora o telemóvel.

Uma loucura.

As tecnologias digitais têm de estar ao serviço da humanização, do acto de aprender e de ensinar, humanizar. Aquilo que está a acontecer é uma desumanização, ainda maior de algo que já era, em si, desumano.

Os telemóveis devem estar presentes em todos os momentos? Acesso constante a um computador?

Nós aprendemos em qualquer lugar, não precisamos de uma sala de aula... Nós aprendemos na observação de uma floresta, na conversa com uma pessoa, numa biblioteca, no centro cultural, numa igreja, numa praça, desde que tenhamos acesso à informação.


O digital é excelente nesse aspecto. A Open Learning não está apenas dependente do digital: há o papel, há o livro, há a pessoa, há o espaço diferente onde eu aprendo.

Uma das grandes diferenças é que a aprendizagem pode acontecer em múltiplos locais e não só nas quatro paredes de uma sala de aula. Também acontece dentro de salas, também acontece em casa, claro...
Há umas semanas, ouvia uma entrevista do antigo ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, que falava sobre como o nosso sistema escolar, para além dos chumbos, tinha, no seu âmago a total desigualdade dos exames. Como é que uma sociedade como a nossa, que está sempre a referir-se à integração escolar tem, como base do seu modela, esta fixação com os exames e os testes?
É tratar igual aquilo que é completamente diferente.

A (des)igualdade dos exames nacionais


Também neste domínio a escola está fora-da-lei (totalmente fora da lei!), e eu posso afirmá-lo e confirmá-lo. Sei que este discurso não é comum, mas eu também não me preocupo com isso: faço afirmações e fundamento-as.

Um teste, um exame, pouco (ou mesmo nada) avalia. Avalia, sim, a capacidade de memória a curto prazo, a capacidade de reter informação para colocar num teste e... esquecer. Se tu fizeres o mesmo teste passado um mês, a nota desce... O que está na lei é que a avaliação deve ser formativa, contínua e sistemática. Ora, um teste não é formativo, um teste não é contínuo (é periódico) e não é sistemático (porque incide numa parte de uma matéria de uma disciplina)... Ou seja, está fora-da-lei.


Pior ainda, os professores dão a nota final a partir das notas de testes. A nota de teste é feita numa escala intervalar, de variável contínua, mas a nota de pauta, de um a cinco, é uma escala ordinal variável.

Um exame de acesso ao ensino superior não é só uma coisa... É um instrumento de darwinismo social, que desvia o jovem uma centésima daquele que seria o seu destino enquanto profissional e pessoa realizada socialmente.

Como é que funciona a avaliação contínua na Open Learning? Não poderá ser demasiado subjectiva?

Não. Ela funciona em três dimensões curriculares: a dimensão da subjectividade, a dimensão da comunidade e a dimensão da consciência planetária universal.

As crianças, os jovens e os adultos vão partir de necessidades concretas, fazendo o levantamento de tecnologias sociais, saberes populares, tudo o mais que está na sua comunidade, para dar resposta a um problema ou uma necessidade comunitária: esse é o currículo de comunidade.

Vou dar um exemplo: uma menina entrou numa salinha onde eu estava, numa escola, e disse para a pessoa que lá estava

- Oh fulana (que era a tutora), acho que já sei fazer raiz quadrada (repara: eu acho que já sei fazer);

- Mas porque é que tu foste aprender raiz quadrada?, perguntou a tutora;

- Olha, é que o meu pai pediu ajuda para projectar um campo de jogos: marcações para a linha de penalty, para o lançamento da bola de basquetebol... e ele não sabe. Nós fizemos um projecto, estou a trabalhar com mais três amigos e, no meio de tudo, estudámos o que era o segmento de recta; o que era um ângulo recto, agudo, obtuso; aprendemos a fazer uma circunferência; a calcular a área de um círculo; o que era o quadrado; o que era um cubo; acabámos na raiz quadrada.

A tutora pegou no telemóvel e pôs a câmara a gravar o que estava a acontecer. Gravou-a enquanto descrevia as planificações diárias do seu trabalho. A menina descreveu uma semana inteira de trabalho em cinco minutos, explicou tudo, tudo a ser gravado

- E agora o que é que queres?, perguntou a tutora;

- Quero que me passe uma raiz quadrada para ver se tudo aquilo que eu fiz, eu aprendi.

A turora passou uma raiz quadrada de seis dígitos (por exemplo, 390497) e a criança rapidamente resolveu a raiz quadrada. A tutora assistiu, confirmou que está certa e mostrou para a câmara. E agora?

- Agora que já sei vou para lá, para ajudar.

A rapariga desfez uma necessidade social da própria comunidade. Quando ela sai, a tutora pára a gravação, manda para a plataforma digital de aprendizagem, para o arquivo daquela criança, com a data e a prova de aprendizagem que ela mostrou através da construção de todo o conhecimento e a manifestação da produção de uma raiz quadrada.

Resta só acrescentar a idade da menina: 6 anos.

É uma ocorrência diária?

Cada criança, cada jovem, faz a sua planificação, diariamente, com o seu tutor: diz onde vai estar, o que vai estar a fazer e com quem vai estar no dia seguinte, as horas, etc...
Não será, num momento como este, em que ainda são precisas notas de acesso ao ensino superior, em que as notas, e as notas dos exames, determinam o futuro dos jovens, demasiado perigoso para não estar a ensinar estas crianças a fazer testes e exames?

Os rankings das escolas só «confundem e distorcem a realidade»


O ensino superior é um direito. É um direito! Devia ser obrigatório até ao final da universidade. É um absurdo haver exame de acesso, que não avalia absolutamente nada, nada, é apenas um embuste. Para além disso, é um instrumento de darwinismo social.

Houve um período na história da educação portuguesa em que não houve exame de acesso. Qual foi o argumento para introduzir estes exames? É que as notas do secundário, sem exame de acesso, eram menores... depois quando introduziram os exames de acesso, as notas pioraram... O problema não está aí, está no facto de que nem na universidade se pratica a avaliação.

Perguntava mais especificamente sobre as crianças da Open Learning e de outras escolas com modelos alternativos... alternativos. Não será um problema para o aluno que nunca fez testes, ser, em certo ponto do seu percurso, forçado a fazê-los?

Já nos apontavam esse problema há 40 e tal anos. Diziam: mas estes alunos não fazem teste... depois como como é que é, vão ser capazes de responder bem às perguntas? Completamente.

Aliás, deixa-me que te conte um pequeno episódio. Eu falo sempre da minha prática... Quando foi feita a primeira prova de aferição, há 22 anos, em 2000, exactamente, eu fui aplicador da prova. Como os nossos alunos não faziam testes, fui pedir um teste à EB 2 3: um teste de sexto ano, os nosso alunos ainda estavam no quarto. Iam fazer na segunda-feira seguinte a prova de português.

Levei o teste e fizemos cópias para aqueles que queriam ver o que era um teste (porque eles nunca tinham visto um teste na vida deles, excepto alguns que tinham vindo de outras escolas).

- Olhem, o teste é isto. É um texto com perguntas de interpretação, perguntas de gramática e uma composição escrita, só isso, só que são só 50 minutos;

- Porque é que são 50 minutos? perguntaram eles;

- Meus filhos, não sei.. ninguém sabe... eu já perguntei, ninguém me soube dizer, são 50, pronto, acabou;

- Se acabarmos antes dos 50, podemos ir embora?

- Não, tens de ficar aqui, a perder tempo... acabou! toca de fazer... (Estava a ficar zangado já com aquilo).

Conseguiram gerir bem as regras arbitrárias dos testes?

Olharam para o teste e voltaram a chamar-me. Era um texto retirado do Cavaleiro da Dinamarca, da Sophia de Mello Breyner (como eles não têm livros de estudo, didácticos, eles lêem obras completas, já tinham lido os livros todos da Sophia).

- Olha aqui esta pergunta, o que foi que o cavaleiro viu ao longe? E tem aqui cinco linhas, é para passar o cavaleiro viu ao longe, x, y, z, etc... que está no primeiro parágrafo? É? Não, professor... eu faço uma setinha aí e depois a pessoa vai ver em cima... está aqui, não vou estar aqui a perder tempo a passar...

Eu fiquei louco. Era para passar, tinham de o fazer... Expliquei-lhe o que era um item de transcrição simples, o que era escolha múltipla, tudo isso. Estávamos a perder tempo.

- Toca de fazer! fiquei encostado à mesa e eles a olhar para mim.

- O que é que foi?

- Oh professor, o que é que está aí a fazer? Vá embora, vá trabalhar, a gente olha para o relógio e quando passarem os 50 minutos, a gente leva-lhe as provas.

- Não, eu tenho que ficar.

E diz um moço que estava lá há 2, ou 3, meses: eu sei porque é que fica, fica para não deixar copiar! Um aluno dos meus pergunta-me: o que é que ele disse? O que é copiar?

O que é copiar...

Foi aí que caí em mim. Eu estava ali a representar o papel do professor que fica na sala, no dia do teste, no pressuposto que aqueles jovens são potencialmente desonestos, ou seja, mesmo que o professor esteja calado, o não-verbal fala mais alto, está a transmitir valores: o valor da falsidade, da mentira, da corrupção.

Tiveram bom resultado nesses testes de aferição?

Sim, os melhores. Eu estava no Conselho Nacional de Educação, à época. Estive a orientar os correctores e tive acesso, os nossos tiveram os melhores resultados. Eram praticamente 100% de respostas certas.

Nós temos ex-alunos com 60 anos, são pessoas realizadas, pessoas sociáveis, pessoas com um quadro de valores que nos orgulha. Todos entraram na universidade (aqueles que quiseram). Muito mais do que entrar na universidade, elas são pessoas, cidadãos, de pleno direito, são autónomas, são responsáveis, são solidárias.

A falta de professores sente-se um pouco por todo o mundo ocidental. Em Portugal, apenas 1% dos profissionais, numa média de todos os graus de escolaridade, tem menos de 30 anos. Como é que se mobiliza uma sociedade a aderir, de novo, à escola?





Não há falta de professores. Ou melhor, há falta de professores e há uma fartura de dadores de aula.

Em 1971/72, tive a minha primeira crise profissional. Dava aula, como qualquer pessoa, dava aula porque tinha feito o meu estágio, de vários anos, ouvindo aula, por isso dava aula. O modo como o professor aprende, é o modo como o professor ensina. Eu dava aula, mas percebi que nem todos aprendiam.

Sendo a educação um direito de todos, criei um dilema moral: se eu continuasse a dar aula, eles não iriam aprender... Eu resolvi esse problema, deixando de estar na sala de aula.

Mais tarde, encontrei uma turma de analfabetos que era o lixo da escola. Perguntei porque é que não tinham aprendido a ler e eles disseram que todos os anos (eles tinham já 14 anos, estavam prestes a sair), as pessoas lhes tentavam ensinar o A E I O U, o PA PE PI PO PU. Olhei para aquilo e fiquei na segunda crise.

Eu tinha, perante mim, uma turma, enorme, de jovens analfabetos, que tinham sido ensinados durante seis anos pelo A E I O U, o PA PE PI PO PU. A Cartilha Maternal.

Era isso que eu sabia fazer. Agora, a pergunta é: se eles continuassem a ensinar com essa metodologia, eles iriam aprender? Não... Já tinham feito seis tentativas.

Se eu continuasse a fazer isso, seria anti-ético. Eu tomei uma decisão ética, deixei de ser professor para ser tutor (ou melhor, professor-tutor). Foi uma decisão ética e é essa a decisão que as pessoas têm que tomar. Não são coitadinhos. Têm de tomar uma decisão ética e dizer: eu vou mudar a minha prática (juntamente com os outros, claro, sozinho não se consegue nada).

Se os professores não são responsáveis, quem é responsável é um burocrata ministerial, que determina que eles façam deste ou daquele modo, o responsável passa a ser um modelo de gestão e administração errado, em que o diretor de escola recebe uma ordem e, mesmo que não concorde, tem de cumprir, porque tem obediência hierárquica. É uma indignidade. Uma pouca-vergonha.

Os professores têm que ser professores, não podem ser dadores de aula. Têm que dizer que são dignos e que vão ensinar tudo, a todos. Porque isso é possível, é urgente e necessário.
E onde se vão buscar esses professores? Os nossos formandos, nas universidades, aprendem a dar aulas.

Saem de lá já mortos. Não sei, não quero criticar a universidade. Posso-te é dizer que, em Setembro, centenas de professores portugueses, que tomaram a decisão ética de mudar, vão mudar.

Vou informar o ministro e o secretário de estado que isso vai acontecer. Aquilo que a Open Learning vai fazer no particular, vai também acontecer na escola pública. Porque esses jovens e velhos, de todas as idades, que hoje tomam essa decisão ética, vão ter uma formação consentânea com mudança e inovação.
«A cultura começa por todas as pessoas poderem comer o que devem comer, por ter uma casa como devem ter uma casa e por ter um vestuário que querem, depois é que começam a ter interesses culturais», dizia Agostinho da Silva. Como é que uma escola moderna convive com a pobreza e a carência? Acabamos, muitas vezes, por dizer, só, que estas crianças não estão interessadas.




A pergunta é: porque é que as crianças não estão interessadas? Essa é que é a pergunta.

É exatamente neste tipo de escolas, como a Open Learning e as escolas públicas que eu acompanho, que se dá a igualdade de oportunidades. A escola é um berço de desigualdades (conforme ela funciona), um berço de desigualdades.

Eu trabalhei em escolas rodeadas de muitas favelas, com jovens que já estavam fora da escola, analfabetos aos 13, 14 anos, todos eles, todos eles, aprenderam tudo. Ou seja, demos-lhes a oportunidade de serem úteis à sua comunidade, em ter uma vida digna, através de uma nova educação.

O que é preciso hoje, não é arranjar projectinhos para as escolas ou fazer mais umas pesquisas... Já está tudo pesquisado, falta é fazer o que é preciso! Hoje! Não é a melhorar esse sistema, esse sistema está morto há muito tempo! É preciso uma nova construção social, uma construção social de aprendizagem e educação. É essa nova construção social que vai substituir a que está aí há 200 anos e que só cria desigualdade: infelicidade nos professores e desinteresse nos alunos.

Essa nova construção social já está pensada ao nível da socialização, da história da educação, da filosofia da educação, há muitos anos, só que as escolas não são geridas pela pedagogia.

O que me apraz, neste momento, saber, é que há muitos directores de agrupamento que me pedem ajuda, muitos professores, muitas famílias, que tomaram consciência da necessidade de mudar. E vão mudar.

Agostinho da Silva entendia que, neste momento, ainda não era possível concretizar essa tal escola do futuro. Seria ainda necessário criar uma espécie de escola mista. É possível uma escola moderna sobreviver numa economia de mercado?

Os nossos alunos estão preparados para respeitar regras, ou seja, dançar conforme a música, mas não se esquecem daquilo que são, mesmo dentro desta selva capitalista que nós temos aí, o capitalismo selvagem. Aquilo que é preciso pensar é que o sistema não muda todo, de um só modo, e que as escolas não mudam todas ao mesmo tempo. Mudam aqueles que tomam consciência e tomam decisões éticas.

Em Setembro, o que vamos fazer é avançar com turmas piloto em várias escolas. O resto vai continuar a dar as suas aulas, os seus costumes, e que deus os proteja (e nos perdoe, não é), mas nós vamos trabalhar com aqueles que tomaram uma decisão ética.

São eles que vão dar o exemplo (acabamos como no início, sobre o exemplo), vão dar exemplo daquilo que deve ser feito. Tudo vai ser avaliado pelos próprios agrupamentos e pelo Ministério.
Esse passo era indispensável?

Temos necessidade de uma nova construção social.

Já estou na recta final. Daqui a pouco tempo, vou ficar só com o Open Learning e mais algumas escolinhas, outros que façam porque eu já estou com quase 72 anos e tenho direito a parar um pouquinho. Mas hei-de morrer em chão de escola, com certeza, porque é assim que os professores se devem comportar.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Quem quer ser professor?

 

A pergunta foi feita pelo Professor José Gabriel num artigo publicado na sua página de facebook, o qual tive o prazer de transcrever neste blogue. Concordo com a generalidade do texto, porque muito incisivo, claro e oportuno. No quadro do actual sistema educativo ali ficou o retrato fiel das consequências de muitos anos de ausência de visão sobre o futuro.




Porém, permito-me aprofundar um pouco o problema. Em síntese, o drama que hoje Portugal vive tem causa no pensamento estrutural sobre como deve ser desenhada a escola para os tempos da IV Revolução Industrial. Se o país mantiver o pensamento herdado da I Revolução Industrial é óbvio que, tendencialmente, a situação se agravará. Cada vez serão menos os que estarão na disposição de exercer a nobre profissão que assenta na provocação da curiosidade e, por conseguinte, na aprendizagem. 


Este sistema está em "morte cerebral", mas os políticos continuam a acreditar que sobreviverá através dos "cuidados intensivos". Não sobreviverá, digo eu.
O sistema está morto.

Faltam professores, pois faltam, mas atenção, faltam em função de uma escola que continua a basear a aprendizagem no conhecimento fragmentado, na falsa convicção que separando as disciplinas obterá êxito. No livro "A Escola é uma seca" transcrevi o que sublinhou o Professor David Rodrigues: "afirma-se que os jovens devem ser empreendedores, dinâmicos, criativos, autónomos, capazes de resolver problemas (...) mas defende-se a escola transmissiva, directiva e uniformizadora". Compaginando esta posição com o que disse a escritora Clarice Lispector (1920/1957), "o óbvio é a verdade mais difícil de enxergar". Ora bem, mudem a estrutura do sistema e, certamente, o país terá os professores suficientes para as necessidades. O problema é ter coragem política para mudar.

Aliás, tudo isto não é novo. Há mais de 20 anos o jornal Público (28.01.2002) titulou:


O SISTEMA EDUCATIVO PORTUGUÊS TEM DE MUDAR DE ALTO A BAIXO 

Texto do Jornal: "Tudo tem de mudar no sistema educativo português e os próximos 20 anos são a grande oportunidade de recuperar 20 décadas de atraso educativo, conclui um estudo exaustivo sobre a educação em Portugal, intitulado "O Futuro da Educação em Portugal, Tendências e Oportunidades - Um Estudo de Reflexão Prospectiva".


Sobre esse estudo escrevi: 
"O que mudou? Nada. O pensamento político e a estrutura mantêm-se exactamente iguais. As rotinas são as de ontem, talvez com um pouco de mais burocracia, muita da qual apenas passou do papel para o computador. A sala, a aula, o teste, a avaliação, a retenção ou a progressão de ano, mantém a característica de um sistema qual vaca sagrada! Tudo igual, apenas com umas pinceladas aqui e ali, uns projectos bem intencionados, não digo que não, mas aquilo que é fundamental permanece inalterável.

Tudo igual, não é bem assim. Em alguns aspectos piorou. Hoje temos um sistema educativo onde as crianças estão ao serviço dos adultos e não os adultos ao serviço das crianças. Paulatinamente, roubaram-lhes o tempo para ser criança, fecharam-nas em espaços de tempo inteiro, escolarizando e "curricularizando" o que deveria ser do domínio do lazer e do jogo enquanto mola impulsionadora do crescimento, impondo desde muito cedo uma excessiva ocupação do tempo e uma nociva competição como se a educação fosse uma corrida. Neste arrastão, perpetrado por adultos, levam os pais à frente, eles que acabam por contribuir para o agravamento dos factores de stress (...)".

Tudo isto a propósito do título: "Quem quer ser professor?" A actual preocupação do governo, para suprir as "necessidades", de abrir aos licenciados sem componente pedagógica, a possibilidade de leccionarem (mesmo que em último recurso) disciplinas curriculares, constitui um retrocesso anterior a Abril de 1974. É mais um sinal da falência do sistema educativo, quando se prefere a política do penso rápido em detrimento de uma actuação nas causas do problema. É o sistema que está morto, creiam senhores políticos.

Ilustração: Google Imagens.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Quem quer ser professor?


Por
José Gabriel, 
in Facebook, 
15/08/2022



(Algumas das ideias deste texto têm subjacente as alterações legislativas recentes que permitem que os detentores de qualquer licenciatura possam exercer a função docente. Ver notícia aqui. )

Foram anos – sobretudo a partir do final dos anos 90 - a agredir e diminuir a profissão, anos em que, para lamber o traseiro aos eleitores tudo foi permitido aos politiqueiros, toda a arrogância analfabeta foi atirada contra quem trabalhou na sua formação científica e pedagógica - a ordem dos termos corresponde mesmo a uma hierarquia.


E, ainda assim, eles, os professores, espalharam-se pelo país, viveram e trabalharam em vilas e cidades onde os seus alunos, na maioria, tinham já mais escolaridade que os pais e geriram os conflitos que essa realidade implica. Eles trabalharam num país em que pouco mais de 1% da população em idade escolar chegou ao Ensino Secundário, em que os níveis de analfabetismo operativo atingiam uma grande percentagem da população – nos anos 70 ultrapassava os 30%.

Eles tiveram as costas largas, de tudo foram acusados e considerados culpados - menos daquilo que realmente fizeram, que foi tirar este país do vil e triste estado de iliteracia funcional em que vivia e ao qual parece querer regressar.

Foram amados e odiados, bajulados e agredidos. Tiveram o apoio e encorajamento de muitos pais e alunos e a hostilidade de outros tantos. De tudo tiveram de retirar alguma coisa de positivo e de educativo, em todos os casos tiveram de racionalizar a sua frustração sob pena de enlouquecer. Não raramente, diminuíram-se a si próprios por excesso de escrúpulo ou insegurança nos eventos que viviam. Por verem excepções transformadas em regra sempre que os garnisés de serviço tudo contaminavam com o preconceito da negatividade.

Tiveram ministros que não teriam habilitações para dar uma aula no Ensino Público, tiveram outros que nunca foram mais que ratos de gabinete ou políticos de aviário, outros ainda que ganharam a sua legitimidade em comentários televisivos de programas de treta. Tiveram alguns, poucos, que realmente cuidaram.


Avisaram, oh como avisaram, que o aviltamento da profissão, a desqualificação científica e desagregação dos programas e do sistema escolar democrático iam afastar os melhores da vocação de professor em todos os níveis de ensino. Viram espalhar por todo o país uma imitação de ensino para a docência, pseudo licenciaturas que desprestigiam o conhecimento, mas favorecem os votos locais, enquanto subfinanciavam as que tudo faziam para manter uma qualidade digna.

Poucas profissões essenciais para o progresso do país foram tão agredidas pelos vários governos como os docentes. O resultado aí está: o governo, borrado de medo com a situação que se desenha a curto prazo, começa - e continuará - a tomar medidas à pressa e, como tal, desastrosas.

Parece que há quem queira recuar aos tempos idos em que Salazar dava a qualquer licenciatura habilitação para disciplinas das quais os graduados sabiam menos que os seus alunos – não estou a exagerar, como os profissionais bem sabem. Bem-vindos ao resultado de décadas de estupidez, eleitoralismo e indigência governativa. Não por causa da democracia, mas apesar dela.

Eis o produto do vosso senso comum sobre os “cursos que não dão para nada”, “ai filha, porque vais para a faculdade de Letras?”. Aí tendes o resultado. Temos a maior percentagem de licenciados em Direito por metro quadrado da Europa, mas se uma escola quer um professor de Grego ou Latim bem pode procurar de vela. De Matemática, só os que para lá foram por amor à arte. De Ciências, tendes o resultado de “ó filho, se queres ir para aí vai para engenharia que sempre ganhas a vida”.

À situação a que chegamos não é estranha a escolha feita pelo poder sobre a gestão da Escolas. Escolheram, em vez de uma gestão democrática com o controlo e ajuda dos pares dentro de cada organização, uma gestão submissa, permeável às pressões dos vários grandes, médios e pequenos poderes, politicamente servil e intelectualmente medíocre. Porquê? Porque os melhores – com honrosas e corajosas excepções - se afastam, por não quererem submeter-se a esta vil tristeza. Isto não é exclusivo do sector do Ensino; veja-se o que se passa na Saúde, nomeadamente na gestão hospitalar.

Chegou, pois, a vossa vez, ó formados na universidade do Grande Coiso, na Escola Ensine Tudo Sem Aprender Nada, ó licenciados em Sociologia do Mobiliário Urbano que sempre sonhastes dar Filosofia e Psicologia. É que reina de novo aquela mentalidade que vos impede de projetar uma ponte ou tratar de um doente mas, para ensinar, qualquer um serve.

Há anos, quando o governo da altura bajulava pedagogos finlandeses – os nossos governos gostam muito dos exemplos “lá de fora” – uma das especialistas finlandesas presentes, teve este desabafo: “Nós temos, de facto, algumas experiências de sucesso; mas o que invejamos aos portugueses é eles terem os professores licenciados”. Pois é. Ou pois era. Mas vai deixar de ser. Ou melhor: os professores até podem ser licenciados, mas de que nos vale ter um engenheiro mecânico, por ilustre e competente que seja na sua profissão, a locionar História ou Literatura Inglesa? - sei que o exemplo é caricatural, mas quem já viveu coisas semelhantes compreende onde quero chegar.

É isto. Voltamos ao tempo dos bacharéis que para tudo serviam por “terem estudos”. Voltamos ao tempo dos Abranhos. A culpa? É dos professores, claro. Não é sempre? ...

Nota: este texto reflete, como penso ser notório, a experiência de um professor do Ensino Secundário. E também sindical e associativa.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A escola é uma seca


Continuo a receber um agradável retorno na análise ao livro que publiquei no início deste ano. Trata-se de um livro, entre outros, sobre a mesma temática. Porém, agrada-me, sobremaneira, os comentários que muitos me fizeram chegar, baseados na necessidade de uma profunda reflexão sobre o sistema educativo vigente. No final do mês de Agosto estará disponível na Feira do Livro de Lisboa. Entretanto, está em curso a preparação de mais um ano escolar. Oportunidade para todos reflectirem sobre a escola que oferecemos aos jovens face àquela que eles desejam.

Quem estiver interessado pode adquiri-lo através das plataformas:

 
Pode, ainda, ser adquirido:

Livraria Esperança - Funchal
FNAC - Madeira

Ou endereçando o pedido para o seguinte e.mail:

joaoandreescorcio@gmail.com