sábado, 8 de julho de 2023

A resposta adequada

 


No passado dia 6, quinta-feira, o jornalista David Spranger publicou na newsletter diária do JM o seguinte texto:

[…] a Assembleia Regional determinou que o horário dos professores até ao 1.º ciclo vai reduzir mais. Das 25 horas semanais, passarão para 24 aos 50 anos, para 22 aos 55 anos e para 18 aos 60 anos. Mas queriam mais, porque há colegas que têm já na normalidade apenas 22 horas e as reduções levam até um horário de 14 horas semanais. E no final, já no exterior, sindicalistas rodearam o secretário regional, com mais um rol de reivindicações, sempre tendo como equivalência outros camaradas. Não será a hora de se compararem com outras classes? As que nunca despertam do pesadelo?

Como é óbvio, o SPM não poderia ficar indiferente a jornalismo de tão má qualidade, pelo que, hoje, lhe enviou, como resposta, o texto que aqui anexamos.

Exmo. Senhor
jornalista David Spranger

Escrevemos-lhe a propósito do teor do seu texto sobre a aprovação, na ALRAM, da 4.a alteração ao ECD-RAM que permitirá aos professores do 1.o ciclo e aos educadores usufruírem de reduções da componente letiva, a partir dos 50 anos, que integrava a newsletter Há pesadelos e... pesadelos, enviada, ontem, para os subscritores do JM.

Como pretendia, aquele excerto terá o condão de revoltar toda a gente: a opinião pública, em geral, – porque encontrar alvos para descarregar as frustrações da vida alivia sempre – e os docentes, em particular, por constatarem que uma franja dos órgãos da comunicação social continua a alimentar o mito de uma profissão privilegiada, que trabalha pouco, ganha muito e vive à margem das dificuldades do comum dos cidadãos. Com uma agravante: quem o faz fá-lo de forma cáustica e com uma sobranceria moral, intencionalmente, dirigida a provocar danos na imagem pública da classe docente.

No entanto, Sr. jornalista, o mito dos professores calaceiros e, consequentemente, o seu texto, carecem de qualquer fundamento, quando confrontado com o quadro legal em que se insere aquela medida da ALRAM e, sobretudo, com a realidade. Vejamos:
  • o horário legal dos educadores e dos professores do 1.o ciclo não é de 25 horas semanais, mas, como certamente saberá, de 35 horas, como a função pública, em geral;
  • o horário destes profissionais, e do comum dos professores, é constituído por três componentes: a letiva, a de estabelecimento e a de trabalho individual;
  • é certo que a componente letiva é de 25 horas, o que significa que esse é o horário semanal em que estes profissionais trabalham, diretamente, com as crianças e os alunos;
  • componente de estabelecimento é de 4 horas, sobrando, apenas, 6 horas para a componente individual, o que significa que é nestas 6 horas que estes profissionais têm de o preparar as atividades das 25 horas com as crianças ou os alunos, o planificar a sua participação nas atividades da escola; o elaborar testes e fichas de avaliação, o corrigir esses testes e fichas de avaliação, o preparar as adaptações para as crianças e alunos com necessidades educativas especiais, o elaborar relatórios diversos (são mesmo muitos), 
  • o ...
  • Significa tudo isto que, na grande maioria dos casos, estes profissionais só conseguem cumprir todas as exigências inerentes às suas responsabilidades profissionais ultrapassando os seus horários legais, sem que, por isso, recebam qualquer compensação financeira.
  • Voltando à alteração de ontem do ECD-RAM, na ALRAM: 
    • o que lá se aprovou não foi a redução dos horários dos professores do 1.o ciclo e dos educadores de infância, mas a redução da componente letiva dos seus horários, a partir dos 50 anos, como forma de minimizar o desgaste de quem, diariamente, lida com gente muito nova cheia de vida e de energia e lida não individualmente, mas em conjunto, em salas com 15, 18, 20, 25 crianças / alunos, tendo de dar vinte respostas, em simultâneo; 
    • a consequência desta importante medida não é a redução do horário de trabalho destes profissionais, mas uma reorganização do mesmo, que continua a ser, conforme exige a lei, de 35 horas semanais; assim, a redução num lado (na componente letiva) é compensada com um aumento noutro.
É certo que a opinião pública não tem conhecimento do que não vê, mas não quer isso dizer que não existe. No entanto, se ao cidadãos comum se pode desculpar a superficialidade da análise do que não conhece nem quer conhecer, já não poderá haver a mesma condescendência com quem tem a obrigação de analisar a realidade com o objetivo de informar, com rigor, e de ajudar a acabar com preconceitos e mitos que prejudicam a vida em sociedade.

Por isso, Sr. Jornalista, a sua e a nossa responsabilidades não são as de qualquer pessoa que verte verborreias nas redes sociais.

Por isso, nós, cidadãos informados, sabemos que o Sr. Jornalista não trabalha só quando escreve as notícias ou outros textos, como a dita newsletter; sabemos que mais importante do que o momento da escrita é o tempo gasto a investigar à procura da verdade, seja em fontes credíveis, seja no terreno a ouvir os visados, seja em debates sérios com os pares.

Por isso, quando assistimos a uma peça de teatro, sabemos que aquele grupo gastou horas infindas a ensaiar um texto que levou dias, anos ou meses, a escrever e, posteriormente, a encenar. Sabemos que o preço do nosso bilhete não paga todo o trabalho envolvido e, por isso, estamos de acordo que o erário público financie aquele grupo, sob pena de ter de fechar portas e ficarmos mais empobrecidos culturalmente.

Por isso, sabemos, para falar do que, neste momento, há de mais mediático, que qualquer futebolista não se faz craque nos curtos 90 minutos dos jogos oficiais, mas, antes, em horas e horas, meses e meses, anos e anos, de treinos intensos, tantas vezes individualmente, fora de horas. Dizem que foi assim com o Cristiano Ronaldo, e nós acreditamos, porque sabemos que, por mais pródigo que possa ser Deus nas qualidades atribuídas a cada ser humano, elas desaparecerão, pela certa, se não forem, continuamente, exercitadas. É a sábia parábola dos talentos de que nos falou o Mestre dos mestres.

Enfim, Sr. Jornalista David Spranger, poderíamos dar exemplos suficientes para as newsletters do JM deste e do próximo ano, mas julgamos que, se quiser, poderá testar a nossa argumentação no mais exigente dos crisóis jornalísticos.

Nesse sentido, não queremos acabar sem lhe lançarmos um repto: porque não dar a conhecer, em reportagens jornalísticas sérias, o que fazem os educadores e os professores do 1o ciclo e dos demais níveis de ensino, nas 10 horas semanais que escapam a quem olha a escola de fora, mas que fazem parte das vidas reais dos docentes. Se precisar do Sindicato dos Professores da Madeira para isso, teremos todo o gosto em estabelecer contactos com os nossos colegas e em ajudar noutras diligências que considere necessárias.

Talvez, dessa forma, descubra que, também nesta profissão, há quem não desperte do pesadelo e perceba que, nela, os sonhos que existem são mais os que estes profissionais conseguem despertar nas crianças e nos alunos e não tanto os que nela vivem

Ficamos ao seu dispor.

Francisco Salgueiro de Oliveira
Coordenador da direção

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