terça-feira, 14 de junho de 2022

“A escola é uma seca”

 

Intervenção 
do Doutor Francisco Gomes
na Feira do Livro do Funchal  



Muito boa tarde e parabéns ao autor pelo brilhante trabalho que hoje é apresentado.

O livro do Professor André Escórcio constitui um dos raros exemplos de uma obra que vale antes sequer de começarmos a ler a primeira página.

E isto tem a ver com aquilo que a obra é na sua essência: um trabalho sério de um pensador íntegro que, de mente e coração abertos, rompeu com a demagogia de reflectir sobre a Educação com base em impulsos pseudo-modernos e politicamente correctos, mas, pelo contrário, ousou pensar a Educação nas linhas daquilo que a mesma pode e deve ser, isto é, um processo de crescimento físico e mental que assume, sem receios, o objectivo de transformar o mundo numa comunidade de gente bem formada e que trabalha, com determinação e gosto, para se transcender no alcance desse privilégio colectivo que é a felicidade.

Um trabalho desta abrangência e desta profundidade só nos poderia chegar pelas mãos de um homem como o Professor André Escórcio e não é difícil perceber porquê.

É porque pensar a Educação requer tempo, ponderação e a humildade de estar disposto a aprender com as lições que nos são transmitidas por aquilo que se tem vindo a passar dentro das nossas escolas, dentro das nossas salas de aula e dentro de cada aluno e de cada professor.

Por isso, pensar a Educação não se coaduna com a pressão que é típica de quem quer, de quatro anos em quatro anos, dizer que, antes, tudo estava mal e que, agora, tudo é brilhante.

É também porque pensar a Educação requer a paciência e a objectividade para olhar para os factos, para os testemunhos de quem vive a Escola e de quem faz a Escola na sua dimensão humana, respeitando os sentimentos, as opiniões e as ilações que são passíveis de extrair dos testemunhos de quem está na linha da frente e de quem, nessa linha da frente, testemunha o que o autor caracteriza tão bem como o “desencontro inevitável que está instalado entre a escola e a vida”.


Por isso, pensar a Educação não se compagina com a apetência para massajar os dados, moldar as estatísticas e reduzir aquele processo a números que não medem (e que nunca medirão) a dimensão Humanista de uma área onde, como o autor aponta, “qualquer coisa de podre está lamentavelmente instalada”.

Minhas senhoras e meus senhores,

Neste livro, está um percurso de décadas. Um percurso muito pessoal e de alguém que percebeu, há muito, que um país que se divorciou da delicada tarefa de educar, não serve para nada, da mesma forma que um país que forma os seus e depois os exporta por qualquer preço, não é um país de verdade.

É, porventura, um Estado a prazo ou, por demasiadas vezes, um manicómio em auto-gestão.

Mas, de uma maneira ou de outra, é um país está a odiar-se e a suicidar-se, pois não entende as sementes que anda a jogar à terra e os frutos que, para prejuízo de todos nós, já tem vindo a colher.

E o que são esses frutos?

O autor é claro: “Uma escola onde ninguém é feliz.”

Mas – e atenção – quem pensa que este trabalho se limita a pensar a Educação de um ponto de visto teórico ou fundamentado em exercícios hipotéticos de experimentalismo intelectual ficará certamente desiludido. A esses, que porventura adoram se banhar em discussões estéreis sobre currículos, programas, organigramas, padronizações do sistema e uma suposta meritocracia que não existe - a esses, definitivamente, não recomendo a leitura desta obra. Pois a mesma é um trabalho que, recusando mediatismos, aponta, com rigor e visão estratégica, caminhos práticos e exequíveis para reformas que tardam.


E que este importantíssimo livro, pelo qual devemos estar gratos, nos chegue quando estamos a sair de uma crise pandémica, que suspendeu a vida durante dois anos, não é coincidência nenhuma.

Durante esse tempo, de uma forma mais visível ou mais discreta, assumimos o compromisso de fazer parte de uma nova construção, de repensarmos estratégias, de sermos diferentes e de agirmos diferente relativamente aos outros e a tantos aspectos da sociedade.

Mas o confinamento passou e nós voltamos às ruas como delas tínhamos saído: enormes na pegada que deixamos no carbono, cheios de protagonismo e até aborrecidos com o tempo que nos parece ter sido roubado e que urge compensar.

A Escola também está de volta. Sobreviveu.

Da noite para o dia, teve de responder ao maior desafio da sua existência moderna. Mas sobreviveu! E nunca será demais recordar que os grandes responsáveis não foram as tutelas, nem as autarquias.

Os grandes responsáveis foram os professores.

Não abandonaram os seus alunos e imediatamente iniciaram o trabalho nas suas casas, com os seus próprios meios e com as condições que tinham ao seu dispor: o seu computador, o seu ‘tablet’, o seu telemóvel, a sua Internet e a sua energia eléctrica.

Mais! Exerceram a sua profissão no seu espaço familiar e íntimo, com os alunos a entrar virtualmente pela casa dentro, sem que ninguém lhes tivesse sequer pedido licença para abdicar da sua privacidade.

Mas, se há problemas que o profissionalismo, a competência, a dedicação e a paixão dos professores ainda resolvem ou vão disfarçando, há muito outros que, como este livro sabiamente indica, perduram no tempo, delapidando um sector que é nevrálgico, mas vítima constante da inépcia da parte de quem mais deveria fazer para preparar o futuro.


Destaco, destas ponderadas e profundas páginas, seis desafios que se colocam à Educação e para o qual o autor muito nos sensibiliza.

O primeiro desafio é também o mais básico: o facto da generalidade dos professores nem um lápis tem da escola. Pagam as suas ferramentas de trabalho com os salários que recebem, e, com o apoio das mesmas, dão o melhor para, dia e noite, estarem disponíveis para os alunos e para os encarregados de educação.

Não são mentira os telefonemas que recebem dos pais às oito, nove e dez da noite e os quais atendem para que os assuntos sejam resolvidos.

Não são mentira os e-mails que recebem dos alunos a essas mesmas horas (e até mais tarde), mas que respondem para que as dúvidas fiquem esclarecidas e para que os trabalhos sejam validados.

Sobre estes esforços – que permitem que o Sistema de Ensino funcione, apesar das lacunas elementares que perduram – nem uma palavra de reconhecimento público, nem um galardão.

E este livro ajuda-nos a perceber que é também por causa de atitudes dessas que o espírito de missão e de entrega que caracteriza a generalidade dos professores é também, e tantas vezes, desconsiderado e secundarizado pela opinião pública.

O segundo desafio é o da tecnologia, e, sem qualquer desprimor para com as facilidades comunicacionais que as novas plataformas trouxeram, este livro convida-nos a não esquecer que a Educação é, acima de tudo, um acto relacional. E é só através dessa relação humana que a escola poderá conseguir lutar para garantir os cuidados, a protecção, os afectos, a igualdade de oportunidades e os estímulos que potenciam um desenvolvimento individual e coelctivo.


Por isso, insistir de forma simplista na revolução tecnológica ou até no Ensino não-presencial faz, como tem feito, com quem muitos fiquem para trás – ou porque não têm computador, ou porque não têm acesso à rede, ou porque têm necessidades especiais que não se coadunam com tal modelo de aprendizagem, ou, simplesmente, porque os seus pais têm de optar entre adquirir um computador ou por comida em cima da mesa.

Minhas senhoras e meus senhores,

Este livro sensibiliza-nos, e muito, para o facto de que, em vez de insistirmos na noção de que a tecnologia é uma panaceia para uma Educação em crise, seria muito mais útil e importante recuperar a relação pedagógica, a qual é o único canal para conquistar o que o autor pertinentemente classifica como uma escola “que assegura a curiosidade de cada aluno”.

Pelo contrário, insistir em plataformas que não estão ao alcance de todas as famílias, ainda mais numa sociedade com níveis crescentes de pobreza, é fazer com que o modelo de Educação se converta, ele mesmo, num canal para o aprofundamento das assimetrias sociais existentes. Ou seja, a escola a espelhar o fosso entre ricos e pobres que corrói e corrompe a nossa fibra humana e de comunidade.

Temos que fazer melhor!

O terceiro desafio é a inaceitável e incompreensível sobrecarga de trabalho que hoje recai nos ombros dos professores, que já não estão na escola apenas para patilhar conhecimentos ou aprofundar a busca pelo Saber. Não!

O professor é psicólogo, é educador para a sexualidade, é conselheiro nutricional, é formador Ético, guia Moral e até polícia.

O professor é funcionário das fotocópias, pois a fotocopiadora está sempre avariada ou porque não há papel.

O professor é agente de Acção Social, pois organiza recolha de alimentos para as famílias dos alunos mais carenciados.

O professor é funcionário da limpeza, pois a higienização das instalações e dos materiais pedagógicos não se faz sozinha e os poucos auxiliares que existem estão ocupados no outro lado da escola ou, simplesmente, de baixa.

O professor é técnico de ocupação de tempos livres, pois idealiza e materializa actividades extra-curriculares que procuram estimular o desenvolvimento dos alunos.

O professor é burocrata, pois passa uma porção irracional do seu tempo a preencher papelada inútil que só serve para certos terceiros fazerem brilharetes.

O professor é pai e mãe, pois as famílias estão, numa confrangedora generalidade, alienadas do processo educativo, olhando para a escola como uma espécie de entreposto onde depositam os filhos o mais cedo possível e de lá os recolhem o mais tarde possível.

E, no meio de tudo isto, alguém ainda pensa que os professores têm o tempo e a disponibilidade mental para ensinar?

Não! Muito pelo contrário! A situação é tal que, na maioria das nossas escolas, no meio das tantas folhas, tabelas e exigências, ensinar transformou-se numa mera e triste nota de rodapé.

Temos que fazer melhor!

O quarto desafio que este livro nos traz é o facto de que as escolas são, todos os anos, sem excepção, brindadas com orientações que introduzem naquelas instituições um quadro de indefinição, confusão, desorientação e incertezas.

A juntar a isto, e falando concretamente dos tempos mais recentes, as escolas têm que lidar com disposições legais que, na prática do contexto escolar, valem uma tábua rasa.

Ou não se sabia que era totalmente impossível andar atrás de cada aluno para saber se tem a máscara posta ou tirada?

Ou não se sabia que era totalmente impossível cumprir distanciamento social em turmas com vinte e cinco ou trinta alunos?

Ou não se sabia que era totalmente impossível manter três metros de distância nas aulas de Educação Física?

Claro que se sabia!

Temos que fazer melhor!

O quinto desafio que este livro nos apresenta é o de perceber que a escola é um centro de formação, no qual deve ser nutrido o respeito pela capacidade de pensamento dos intervenientes, pelo quadro de Valores que formam a nossa identidade e pela integridade moral, que deve ser estimulada e acarinhada.

A escola não é um centro de doutrinação, onde os programas e os currículos estão orientados para certas directrizes filosóficas, estéticas e até ideológicas que são consideradas desejáveis e boas por quem assumiu que manda na Educação. Este problema é uma questão demasiado séria, pois choca directamente com o tipo de cidadãos que estamos a produzir e o que eles e elas irão, por sua vez, considerar bom ou mau na vida quotidiana.


Temos que fazer melhor!

O sexto desafio que o autor nos lança é o de corrigir o problema estrutural que existe no Ensino, nomeadamente a sua desadequação para preparar um país de futuro.

O Sistema de Ensino tradicional, que é o praticado na esmagadora maioria das escolas públicas, foi construído para servir as necessidades de uma sociedade industrial.

Como tal, os alunos eram (e ainda são) forçados a receber grandes quantidades de informação estandardizada, que têm de memorizar de forma mecânica, pois serão posteriormente testados através de exames padronizados.

Nesta lógica, o Ensino torna-se num mero sistema que tem na conformidade e na concordância as noções que levam a bons resultados académicos e a uma mente supostamente inteligente.

Mas, e como o autor indica, nada poderia ser mais errado!

O mundo em que hoje vivemos é muito mais acelerado e complexo do que era, e, como tal, o mercado de trabalho das próximas décadas será muito diferente daquele de há algumas décadas atrás.

Portanto, para enfrentar os desafios desta nova vida, as crianças e os jovens que hoje realizam a sua formação não precisam de conformidade e concordância e metodologias ditas adequadas, as quais só levarão ao agravamento das taxas de abandono e à subida na proporção de estudantes considerados ‘especiais’, ‘hiper-activos’ ou com ‘défice de atenção’ porque, simplesmente, não se enquadram nos padrões definidos como normais. Pelo contrário, precisamos de um Ensino que potencie e valorize as competências que são fundamentais para a vida e para o trabalho numa sociedade globalizada, nomeadamente competências de comunicação, competências colaborativas, competências digitais, criatividade na resolução de problemas complexos e pensamento crítico.


A juntar a isto, precisamos de um Ensino que invista mais na determinação, na perseverança, no auto-conhecimento, no optimismo e no reconhecimento do valor que existe nas diferenças entre os seres humanos.

Pelo contrário, insistir nas ideias de sempre é insistir nos crimes que andam a matar a escola.

Aliás, como o autor sugere, a escola morre.

E os professores sabem-no.

E é também por isso que a classe não se rejuvenesce. Em breve, não teremos professores suficientes. E, também assim, pagamos o preço de lideranças sem competência, nem visão, para tornar a carreira docente atractiva para os bons e para os melhores.

A escola morre.

E os alunos sabem-no.

E é também por isso que o abandono escolar é uma realidade.

Apresar das exigências serem cada vez menores e de ser praticamente impossível para um professor chumbar um aluno nos dias que correm – ou seja, estamos totalmente focados no facilitismo e em criar uma geração de medíocres – muitas das nossas crianças e jovens continuam a espelhar uma apatia preocupante e que é comprometedora do futuro.

A escola morre.

E os pais sabem-no.

E é também por isso que estão fartos que lhes peçam que contribuam para fundos de maneio para a aquisição de material escolar básico.

Fartos que os filhos cheguem a casa a queixar-se da ‘qualidade’ das refeições nas cantinas.

Fartos dos pavilhões em que chove dentro.

Fartos das janelas da sala que não fecham e levam a constipações e gripes.

Fartos dos edifícios que, há anos, são deixados ao abandono.

Assistem à falência do Ensino público e sabem, lá no fundo, que, por muito motivados que estejam os professores, eles e elas, só por si, não têm a capacidade para fazer a mudança.

Intenções? Sim, estão lá. Mas, no inferno, também.

Minhas senhoras e meus senhores,

Numa era em que tanto gostamos de falar dos modelos seguidos nos outros países, o autor deste brilhante trabalho sabiamente recorda-nos que era bom que percebêssemos que não precisamos de copiar nada, nem ninguém.

Precisamos, só e apenas, de fazer o que o Professor André Escórcio nos desafia a fazer neste livro:

Olhar com carinho para o que temos

Valorizar o que de bom ainda conservamos

Avançar para a mudança cuja urgência conhecemos

Perceber que a Educação é a argamassa que nos une

E sentir, com responsabilidade e respeito, que, enquanto não pensarmos a Educação, nunca poderemos, nem conseguiremos, pensar um país.

Muito obrigado, Professor André Escórcio, pelo muito que as suas palavras nos ensinam.

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