sábado, 4 de junho de 2022

Para ler e reflectir... com muitas interrogações!


NOTA
https://www.publico.pt/2022/06/04/sociedade/noticia/escola-nao-ha-professores-aulas-conhecimento-base-ha-2008861
Daniela Carmo (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia) 4 de Junho de 2022,

Nesta escola não há professores nem aulas. “O conhecimento é a base, mas há muito mais do que isso”

A Brave Generation Academy é um projecto educativo que nasceu em Portugal e pretende ir além da simples transmissão de conhecimento. “Quando eu e a minha esposa fomos à primeira reunião com a learning coach da Inês, sentimos, pela primeira vez em tantos anos de ensino, que a pessoa com quem nós estávamos a falar conhecia a nossa filha.”

 
Foto Fundador da BGA diz que o método de ensino tem de ser 100% focado no aluno Daniel Rocha


O relógio ainda não marca as 10h nesta manhã de quinta-feira em que o sol pouco se mostra. Na sala, um grande espaço aberto dividido numa espécie de ilhas com mesas e que este mês se vestiu de arco-íris (em alusão ao Pride Month, LGBTI+), contam-se meia dúzia de caras, já com os computadores ligados à sua frente. Pouco a pouco os aprendizes (learners, como por ali lhes chamam) chegam ao Hub da Brave Generation Academy (BGA), do Centro Cultural de Belém. Falamos de uma escola que não é bem uma escola: não há aulas, nem professores e os alunos são aprendizes. Alguns deles, enquanto chegam, vão mastigando os últimos pedaços do pequeno-almoço.

O entusiasmo é partilhado por todos de cada vez que uma nova cara entra pela porta que, por enquanto, fica aberta. Dão os bons dias, alguns cumprimentam-se com um aperto de mão e conversam. Quando assim decidem, sentam-se e começam a estudar. Na última mesa do canto direito, mesmo encostada à parede do fundo, encontramos Lucas e Fausto, de 15 e 14 anos respectivamente.

Estão ambos a ligar-se, por via Zoom, para assistir à lição de Português. É assim que funciona a aprendizagem por ali, feita através de um ecrã de computador. Mas isso não significa que os aprendizes não tenham de ir “à escola” diariamente. Eles são, aliás, encorajados a passar pelo menos cinco horas diárias no Hub, dessa forma convivem, conversam, conhecem os colegas, interagem. Voltamos à aula de Português, o tema de hoje: podcasts. Alguns minutos depois de ouvirem a course manager (cargos que exigem formação em ensino para leccionar), Fausto e Lucas têm liberdade para ouvir alguns minutos de programas que foram deixados na plataforma online da disciplina.

Lucas, que entrou na BGA em Setembro último, escolheu as disciplinas sobre as quais pretende aprender, num total de sete, à semelhança do que acontece com todos os learners. Antes de integrar a academia estudava numa escola pública. Que mudanças? “Tudo”, responde quase sem pensar. E pega no exemplo concreto da aula de hoje. “O tema é a comunicação e as diferentes formas de chegar às outras pessoas. A Isabel [course manager] vai sempre buscar formas diferentes, quase subentendidas, para dar a matéria, não é como na minha antiga escola”, explica o jovem.   

 
A Brave Generation Academy dá liberdade aos aprendizes para escolherem as disciplinas Daniel Rocha

Academia pretende ser um lugar de partilha e colaboração entre todos Daniel Rocha

Cada aprendiz avança ao próprio ritmo Daniel Rocha

 

Ao recordar o sistema de ensino anterior diz que “era tudo mais rígido”, por exemplo, na avaliação, nos horários, nas próprias metodologias lectivas, no contacto com o professor. Se, por um lado, agora tem liberdade para escolher o que quer e quando quer fazer, algo que não acontecia no ensino tradicional público, por outro lado, a responsabilidade também aumentou. “Nós somos os responsáveis pelo nosso sucesso, ou insucesso”, começa por explicar.

Flexibilidade de horário exige responsabilidade

“Onde antes sentia muita pressão, de repente, deixei de sentir e isso também me faz falta”, sublinha. Lucas decidiu entrar na BGA para experimentar um modelo diferente daquele a que estava habituado na escola pública e, volvido quase um ano lectivo, já tomou a decisão de mudar de escola novamente no próximo ano. “Não é por não gostar de aqui estar, mas não se enquadra no que eu quero. Eu gosto de desporto e, por isso, quero ir para a escola profissional no próximo ano.”

Já Luke Gomes (17 anos), que se junta à conversa, quer continuar na BGA “até não poder mais”. Há ano e meio que chegou da África do Sul com o resto da família e encontrou em Portugal um lugar onde permanecer. “A segurança” é o principal motivo, algo que no país de origem não encontra tendo em conta a criminalidade elevada.

Luke não assiste à lição de Português como os outros dois jovens, é mais velho e está num nível diferente. Por isso, trabalha agora de forma autónoma. Começou por escolher Geografia como uma das disciplinas a estudar, mas algum tempo depois percebeu que não é uma matéria que lhe dê gosto aprender e acabou por alterá-la. A BGA permite-lhes fazer essa escolha.

Temos de aprender coisas diferentes, temos de ir atrás daquilo de que gostamos e não apenas focar naquilo em que somos fracos, mas antes naquilo em que somos bons para ficamos ainda melhores. É assim que somos notados no mundo Tim Vieira, fundador da BGA

A academia, cuja mensalidade é de 450 euros (20% dos alunos dispõe de uma bolsa de estudo atribuída pela própria BGA), segue o Currículo Internacional Britânico para alunos a partir dos 12 anos. Ou seja, a base académica incide nos Lower Secondary (12 a 14 anos), IGCSEs (14 a 16) e A-Levels (16 a 18 anos) do modelo britânico. De acordo com Tim Vieira, empresário sul-africano (e luso-descendente) e fundador e CEO da Brave Generation Academy, há três pilares que norteiam aquele modelo de ensino: o conhecimento, as capacidades/ habilidades e a comunidade.
Desenvolver além do conhecimento

Além das actividades lectivas — que por si só pretendem já desenvolver a capacidade de autonomia, a auto-regulação ou a responsabilidade através de um modelo mais focado no estudante que define todo o plano de aprendizagem — existem diferentes clubes que os jovens podem integrar de forma a desenvolver outras capacidades (por exemplo, de inteligência emocional, fotografia, negócios, artes, entre outros). “O conhecimento é a base, mas há muito mais do que isso e é por isso que o nosso segundo pilar são as skills. Temos de aprender coisas diferentes, temos de ir atrás daquilo de que gostamos e não apenas focar naquilo em que somos fracos, mas antes naquilo em que somos bons para ficamos ainda melhores. É assim que somos notados no mundo”, defende Tim Vieira.

Quanto ao terceiro pilar, a comunidade, o pressuposto é o de interagir com o meio em que cada Hub está inserido, por exemplo através de projectos de voluntariado. “Nunca podemos estar felizes se não trabalharmos com a nossa comunidade, se não fizermos coisas positivas para a nossa comunidade.”

Lucas e Fausto integram um clube que leva aulas de português a pessoas refugiadas afegãs. O clube tem lugar na Casa Pia e os dois jovens, a par de mais três colegas, despendem cerca de duas horas por dias, duas vezes por semana nesta actividade. Ambos concordam que é um projecto positivo e que lhes tem permitido conhecer novas realidades. “Eu acho que isso faz parte deste sentido de comunidade. No fim, eles são mais felizes”, diz Tim Vieira.

   
Método de ensino actual é “desconectado” do mercado de trabalho

Nuno Fernandes é pai de uma das aprendizes do pólo de Cascais e não estava satisfeito com o tipo de ensino anterior, num colégio privado. Crítico do modelo de ensino tradicional, defende que “o método aplicado, seja público ou privado, é absolutamente desconectado com as necessidades que os jovens têm de enfrentar no mercado de trabalho”.

Além disso, um dos pontos que destaca e a que dá importância é que os learning coaches realmente conhecem quem está à sua frente. “Quando eu e a minha esposa fomos à primeira reunião com a learning coach da Inês, sentimos, pela primeira vez em tantos anos de ensino, que a pessoa com quem nós estávamos a falar conhecia a nossa filha.”

E exemplifica: “Conhecia-a não só numa perspectiva de que está bem a Inglês, menos bem em Matemática, etc. Foi mais do que isto, foi dizer que ela está com determinadas dificuldades ao nível social, mas por outro lado manifesta muita autodisciplina, muita iniciativa na parte da aprendizagem, por exemplo. Ou seja, [a learning coach] é alguém que conhece a nossa filha além do resultado académico e isto faz muito sentido. Faz-me sentir que ali a minha filha tem uma oportunidade muito mais rica de se desenvolver enquanto ser humano com alguém que a ajuda, em vez de ser alguém que de tempo a tempo faz uma avaliação.”

No Hub do CCB encontramos Kayla Harnage, uma das learning coaches (e não professora), que nos explica que tem como função, além de ajudar os aprendizes em dúvidas que surjam, garantir que “existe um bom ambiente de ensino”. E esse bom ambiente reflecte-se na proximidade que têm uns com os outros, assim como no retorno que os pais sentem.

"A educação está sempre a mudar"

Natural dos Estados Unidos da América, onde se licenciou em comunicação intercultural, Kayla está há mais de três anos em Portugal e sempre quis trabalhar na área da educação. Deu várias aulas e explicações de diferentes línguas antes de chegar a solo português e entrar para a BGA em Janeiro último. “A beleza desta academia é dar-lhes espaço para eles [os aprendizes] serem o que quiserem. A educação está sempre a mudar e ter a oportunidade de aqui estar é mover-me na direcção certa.”

Para a learning coach, na “escola dita normal” o “professor não tem tempo nem espaço para se focar e ter intencionalidade com cada um dos alunos” devido ao elevado número de estudantes que cada turma tem. “Acho incrível que possamos estar a fazer o que fazemos com os learners ao investir tempo neles para que possam ser o que quiserem. É importante que descubram quem são, as suas forças, as suas fraquezas, os sonhos.”

A ideia é partilhada pelo próprio fundador da BGA: “O ensino tem de ser 100% focado no aluno. Os learners são os mais importantes em tudo isto e, sem dúvida, que estamos a fazer a coisa certa porque os vemos a sorrir, a terem mais confiança e a quererem vir para o Hub, a quererem estudar.”
"Ele agora já gosta da escola"

Esse entusiasmo com a aprendizagem não passou indiferente a Gabriel Becker que notou uma grande mudança no comportamento do filho. “Ele agora já gosta e quer vir à escola”, refere o empresário francês, que esta manhã está também no Hub a dinamizar um workshop de negócios.

Faz-me sentir que ali a minha filha tem uma oportunidade muito mais rica de se desenvolver enquanto ser humano com alguém que a ajuda, em vez de ser alguém que de tempo a tempo faz uma avaliação Nuno Fernandes, pai

O grupo é integrado por meia dúzia de aprendizes, que se sentam nos sofás no canto esquerdo do pólo, ao lado da mesa de Lucas e Fausto, que já estão na fase final e a debater com a course manager a matéria dos podcasts. Entre os membros do workshop estão Manuel e Ricardo, de 18 e 17 anos, cujo objectivo é desenvolver uma aplicação móvel para a BGA e outras escolas que a queiram utilizar.

Mas não falam só de negócios e de empreendedorismo. Agora, Gabriel Becker está a lembrá-los da importância de cumprirem com os tempos de entrega dos trabalhos, algo que dá boleia a outro tema: a confiança. “Se nunca cumprirem com as deadlines, se se atrasarem, ninguém vai confiar em vocês”, alerta o empresário. E Rodrigo, learning coach, chama a atenção dos aprendizes que parecem meio distraídos. “Oiçam isto que é importante, têm de ter esta responsabilidade”, alerta. Trocam mais algumas ideias, em inglês, que é a língua usada sempre nos Hubs, e o workshop termina.

Do lado direito da sala, a lição de português dos mais novos também chega ao fim. Lucas passa para Inglês. “Estou mais atrasado do que queria e vou-me dedicar um bocadinho a isso agora.” E Manuel e Ricardo ocupam os lugares da mesa central para passarem eles a assistir à lição de Português que dali a minutos se inicia. Antes disso, brincam com colegas que já ali estavam sentados. Riem.
Aprendizes podem trocar de Hub em todo o mundo

Entre eles encontramos Keily, de 20 anos. Natural de Moçambique, a jovem integrou aquele Hub há um mês, mas já conhecia a academia de Maputo, onde estudava desde Setembro. A BGA é um projecto além fronteiras: em Portugal existem 36 e 21 no estrangeiro, em países como a África do Sul, Moçambique, Namíbia, Espanha ou Reino Unido, entre outros. “O outro Hub era mais pequeno e aqui já conheci novas pessoas, novas realidades. Apesar de ainda estar aqui há pouco tempo, já fiz bons amigos e acho que isso é um bom sinal”, abona Keily.

No futuro, a jovem quer fundar uma organização não-governamental “para ajudar crianças de diferentes países na educação, como um learning coach”. “Não sei se quero ir para a faculdade, mas quero viajar, quero ganhar bagagem, quero trabalhar, fazer estágios e conhecer novas realidades. Acho que é isso que realmente nos educa.”

Apesar de ainda não saber se vai continuar os estudos, Keily vai fazer os A-levels — os exames finais no sistema de ensino britânico equivalentes ao fim do ensino secundário e que servem também para o acesso ao ensino superior — no próximo mês de Novembro, tal como Manuel e Ricardo, e assim terminar o ciclo de estudos. A avaliação por ali também acontece, apesar das diferenças em relação ao modelo tradicional. Além dos exames finais, têm ao longo do percurso avaliações aos diferentes módulos, que podem ser, por exemplo, mensais. Mas defendem que essa avaliação não é feita para dar uma nota, mas antes perceber que o conhecimento foi adquirido. Só passam ao módulo seguinte se tiverem um aproveitamento de pelo menos 80%.

De acordo com Tim Vieira, a BGA não pretende representar “uma cisão para com o ensino tradicional”. “O conhecimento está na base, é ele que abre portas para o futuro.” E como são os próprios a escolher o que querem aprender, os desafios que querem enfrentar, situações de ansiedade extrema no momento da avaliação são praticamente inexistentes. “Não há nenhuma vantagem em ter um estudante que tem ansiedade e que está a tomar remédios para conseguir lidar com a escola e com as emoções. Não é preciso isso, há outras maneiras. Eu acredito mesmo muito que ter uma criança ocupada a fazer o que gosta de fazer, a criança vai estar bem.”

Quanto à avaliação e tendo em conta que a BGA existe há pouco mais de um ano, ainda não é possível fazer um balanço em relação ao sucesso do projecto. Mas Tim garante que “80% dos aprendizes está à frente dos objectivos”. Até ao momento, 40 alunos já fizeram exames. Os resultados vão chegar em Agosto deste ano. Em Novembro será a vez de Keily, Manuel e Ricardo. Acabou a lição de português dos mais velhos. No pólo do CCB voltam-se a contar menos caras: é hora de almoço.

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