terça-feira, 5 de maio de 2020

DESABAFO - "PIEDOSAS INTENÇÕES"


Tantos que eu conheci ao longo da vida, pessoas de coluna inquebrável, estudiosos, curiosos e criativos, de rigor extremo, sem necessidade de se colocarem em bicos de pés para serem notados, de uma extraordinária motivação intrínseca, de uma auto-confiança contagiante, de uma objectividade e transparência que me fizeram respeitar e até seguir, pessoas ousadas pelo conhecimento que transportavam, que tinham foco e determinação, que irradiavam felicidade e esperança, apesar de se saberem em contramão em função dos contextos políticos, económicos, financeiros, culturais e sociais.


Convivi com pessoas com distintas formações académicas, pessoas interessantes e a quem muito devo, pessoas que desejavam que os seus sectores profissionais conseguissem novos enquadramentos, mas de todo impossível. Apenas porque existiam poderosas condicionantes. Não deixaram de ser felizes, não perderam a adrenalina para um corre-corre no sentido da desejada mudança de paradigma, só que os vários poderes castravam a sabedoria que transportavam. Alguns, até, foram subtilmente perseguidos, pela sua frontalidade e conhecimento. Foram atirados para a margem, enquanto o barco seguia guiado pelas estrelas, jamais pelos instrumentos que a ciência disponibilizou. Não perderam a sua paz interior e nunca, mesmo nunca, trocaram a sua liberdade por posições viciadas de coluna vergada, deixando a cabeça entre os joelhos. Na minha profissão docente, por exemplo, vi autênticos gatinhos que se olhando ao espelho, viam um leão projectado na imagem. O que fazer? Deixá-los gozar o momento que é sempre efémero. 
No essencial, eu diria que as pessoas que me marcaram, seguiram o "Cântico Negro" de José Régio, que relembro:

"(...) 
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
—Sei que não vou por aí!"

De facto, os seres humanos dispensam "piedosas intenções".
Apenas um desabafo de circunstância.
Ilustração: Google Imagens

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